Renildo Souza e Jorge Almeida*
Em
seus primeiros 27 anos, processo coletivizou terras, alfabetizou milhões,
enfrentou cerco imperialista e semeou a solidariedade internacional.
Expectativa de vida dobrou. Avanço chinês não começou com reformas pró-mercado
Neste 1º de outubro,
comemora-se os 72 anos da fundação da República Popular da China (RPC). Naquele
dia de 1949 completou-se a conquista do poder político pelo exército
revolucionário, mas a luta começou bem antes, com a fundação do Partido
Comunista da China (PCCh) em 1921, que está comemorando seus 100 anos de vida.
Mas, se formos acreditar na
imagem amplamente preponderante hoje, parece que tudo na China começou a partir
das reformas pró-mercado iniciadas em 1978, sob a direção de Deng Xiaoping.
Quase que só ouvimos falar sobre esse período “pós-reformas de mercado”.
A impressão é de que, antes
disso, só havia atraso, miséria, fome generalizada, analfabetismo, estagnação
econômica, retrocesso tecnológico, anarquia social e violência política.
Assim, este artigo procura
comemorar a vitória da Revolução Chinesa, destacando o período “esquecido” no
qual, apesar das grandes dificuldades enfrentadas num tipo inédito de
revolução, ocorreram grandiosas conquistas.
Mesmo correndo um risco de
simplificações condicionadas pelo espaço limitado, esperamos levantar questões
que contribuam com quem deseja conhecer e entender melhor o que vem ocorrendo
hoje.
Esse tipo de imagem ocorre
por haver um certo consenso entre os liberais, parte da grande burguesia
mundial e nacional e suas mídias. Mas também pela representação construída pelo
próprio PCCh, setores nacional-desenvolvimentistas e parte da esquerda brasileira,
inclusive marxistas. Uns por desconhecerem a história da China pós-1949.
Outros, por preferirem fazer interpretações que facilitem a defesa da conversão
da China ao capitalismo, sob a forma do chamado “socialismo de mercado” ou
“socialismo com as características chinesas”.
Mas, se a China se
transformou numa grande potência, foi porque, antes de tudo, em 1949, começou
uma transição ao socialismo a partir da conquista do poder político. Processo
que durou 29 anos, até o início das reformas que, independentemente das
intenções originais do grupo pró-mercado no PCCh, acabaram levando a China ao
capitalismo com as características singulares que tem.
Um
pouco de história
O processo revolucionário na
China ganhou uma nova dinâmica depois que o PCCh, sob a direção de Mao
Tse-tung, reviu a estratégia anterior, influenciada pela Terceira Internacional
e o PCUS (Partido Comunista da URSS), já dirigidos por Josef Stalin.
A nova estratégia partia de
uma profunda e inovadora análise da realidade social e histórica chinesa, de
sua ampla predominância rural, camponesa e pobre. Definia os latifundiários, o
imperialismo e a grande burguesia comerciante como principais inimigos sociais
e políticos e a formação de uma frente revolucionária tendo o proletariado como
classe dirigente, o campesinato, que era a ampla maioria do povo explorado,
como classe principal, e a burguesia nacional, que tinha um peso muito pequeno
na vida econômica e política, como uma classe aliada, mas sem protagonismo.
O início da Grande Marcha em
1934 foi um marco estratégico decisivo, pois foi uma reconfiguração da
estratégia do PCCh com a prioridade da luta revolucionária a partir do campo
para a cidade, consolidando a liderança de Mao Tse-tung no partido.
O objetivo primeiro da
revolução era a expulsão do imperialismo e a construção de uma “Nova
Democracia” com uma ampla reforma agrária antilatifundiária (com a
nacionalização estatal da terra e sua distribuição em posses para os
camponeses), uma democratização da vida política, além de um forte estímulo ao
processo de desenvolvimento nas forças produtivas. Como instrumento
revolucionário, foi formado o Exército de Libertação Popular (ELP), que era
dirigido pelo PCCh.
Ao contrário do que é
propalado, o objetivo da revolução nunca foi o de construir uma república
burguesa para desenvolver o capitalismo. Ao contrário, sempre foi o de, a
partir das condições próprias e particulares da China, desenvolver um processo
de transição ao socialismo.
A vitória do processo passou
por momentos táticos variados, que incluíram acordos com o Kuomintang (partido
originalmente nacionalista, mas que foi se tornando instrumento aliado do
imperialismo ocidental), seguidos de um rompimento e guerra contra o
Kuomintang, de nova “Frente Unida” contra invasão do imperialismo japonês e
novo rompimento após a Segunda Guerra Mundial, quando o objetivo da conquista
do poder, e derrubada do Kuomintang, veio para pauta imediata.
Nesse processo anterior, é
importante ressaltar dois aspectos: 1) Os comunistas chineses receberam apoio
da URSS mas, em diversos momentos, a direção chinesa não seguiu a orientação e
preferências políticas do PCUS, que não acreditava na capacidade PCCh derrotar
o Kuomintang e o imperialismo, e preferia uma aliança mais duradoura com Chiang
Kai-chek (chefe do Kuomintang); 2) na medida em que ia avançando nas áreas
rurais, já iam conquistando o poder de fato regionalmente, fazendo uma reforma
agrária, empoderando o campesinato (material, política e militarmente) e o povo
explorado e oprimido das regiões e iniciando um processo real e concreto de
governo. Nesse processo, Mao Tse-tung consolidou sua liderança no partido, no
exército e entre o povo.
O
novo poder revolucionário
Após a conquista do poder em
1º de outubro de 1949, o partido e o governo iniciaram um processo de
reconstrução nacional que tinha como objetivo a transição ao socialismo.
Foi feita a
nacionalização/estatização da terra (com distribuição da posse da terra para os
camponeses) e dos grandes meios de produção e da infraestrutura, impulsionando
o desenvolvimento das forças produtivas e a industrialização. Garantida ampla
liberdade sindical e direito de greve aos trabalhadores e os direitos das
mulheres, rompendo o arraigado patriarcalismo tradicional chinês. Em 1953, foi
lançado o 1º Plano Quinquenal e, já no início da década de 1950, a grande e a
média burguesias na China se tornaram residuais.
Mas foram muitos percalços
no caminho, a começar pela pobreza e o analfabetismo do povo e o muito baixo
desenvolvimento das forças produtivas, o conservadorismo cultural nas relações
sociais e políticas, e a luta pela consolidação territorial da China
continental só se concluiu em 1950.
O novo governo enfrentou
também o isolamento internacional, já que as potências imperialistas
continuaram reconhecendo o governo títere montado por Chang Kai-chek na ilha de
Taiwan, onde manteve o nome de “República da China”.
Houve, ainda, a necessidade
de intervir diretamente com tropas na guerra da Coreia, já em 1950, contra as
tropas imperialistas dos EUA e em apoio à revolução coreana, além do apoio à
revolução vietnamita desde 1949.
Ao mesmo tempo, com a URSS
houve uma relação tensa desde a fundação da RPC, em continuidade com as
divergências já existentes anteriormente. Por um lado, a URSS contribuiu
significativamente no apoio econômico, técnico, tecnológico e militar para um
primeiro impulso industrializante chinês.
Por outro lado, tentava
tutelar o processo chinês, o que nunca foi aceito pelo PCCh. Essas divergências
se aprofundaram no final da década de 1950, quando a URSS formalizou uma
concepção considerada pelo PCCh como de abandono do internacionalismo e da via
revolucionária ao socialismo (trocada pela via pacífica) e de interferir nos
assuntos internos da China e de outros países. O rompimento foi completo,
chegando a ocorrer conflitos militares, na fronteira entre os dois países, no
fim dos anos 1960.
O PCCh passou a caracterizar
a URSS como um capitalismo de estado, denunciar a burocratização do Estado
soviético, a interrupção de sua transição ao socialismo e de ter abandonado o
marxismo, trocado por um “revisionismo”, e de ter uma relação
“social-imperialista” com outros países.
Além disso, a China passou a
competir com a URSS internacionalmente, apoiando movimentos revolucionários de
outros países, especialmente os de libertação nacional, na Ásia, África e
América Latina. Com isso, o isolamento da China aumentou ainda mais.
Ao mesmo tempo, o PCCh
manteve uma linha de fazer avançar a revolução e a transição ao socialismo de
modo ininterrupto e que combinasse dialeticamente o desenvolvimento das forças
produtivas com a revolução nas relações de produção e no modo de vida.
Isso implicava uma
combinação do desenvolvimento industrial, da ciência e da tecnologia (nunca
negligenciados pelo PCCh no período chamado “maoísta”), via empresas estatais,
com o empoderamento econômico e político do povo, principalmente via as
“comunas” rurais e a produção coletiva, além da luta ideológica contra as
heranças retrógradas e conservadoras, feudais e burgueses, existentes na
sociedade e no estado e mesmo dentro do PCCh e do ELP.
Dois grandes acontecimentos
históricos foram marcantes nesse processo. O primeiro foi o “Grande Salto à
Frente” (2º Plano Quinquenal, 1958), que tinha o objetivo principal de avançar
o processo de industrialização, de várias formas, através de uma ampla
mobilização da força de trabalho e do incentivo político às iniciativas das
massas trabalhadoras.
O outro foi a “Grande
Revolução Cultural Proletária” (iniciada em 1966), com forte apoio na
juventude, que visava combater as heranças ideológicas burguesas e conservadoras
e o burocratismo presentes no Estado e no partido e, ao mesmo tempo, através
desta luta, combater a ala direita do PCCh, que defendia uma linha economicista
de exclusividade do desenvolvimento das forças produtivas, favorecendo o
desenvolvimento de relações sociais burguesas, ligadas às relações de produção
de tipo capitalistas, que, já naquela época, era a linha defendida por Deng
Xiaoping.
Ambos os grandes movimentos
tiveram resultados contraditórios. Por um lado, o projeto do “Grande Salto à
Frente” traçou metas que superestimavam as condições objetivas e subjetivas
existentes. Conseguiu conquistas importantes (mas abaixo das metas) e acabou
desorganizando em parte o processo produtivo e, como consequência disso, e de
uma confluência com desastres naturais não esperados, houve uma queda da
produção de alimentos, a fome, sacrifícios e perdas significativas de vidas
humanas.
Já a “Revolução Cultural”
gerou um clima de forte instabilidade política e social, chegando a sair do
controle no partido, com exageros e sectarismos, e gerando muitos conflitos de
massa com uso de violência, inclusive mortes.
Por outro lado, também deve
ser criticado o “Culto à Personalidade” de Mao Tsé-tung, que foi se
desenvolvendo.
Entretanto, apesar de toda
essa instabilidade e momentos de forte crise, como a guerra da Coreia, o
rompimento com a URSS, o “Grande Salto à Frente” e a “Revolução Cultural”, num
período de pouco mais de 27 anos, o resultado foi muito positivo, com grande
crescimento econômico e avanço social e cultural.
Vejamos
alguns dados
Apesar de todas as
dificuldades que ocorreram, entre 1952 e 1978 (início das reformas
pró-mercado), a produção industrial aumentou numa média de 9,4% ao ano. Como
expressão disso, a produção de carvão cresceu 9 vezes, a de aço 32 vezes e a de
energia multiplicou-se 36 vezes.
Durante aqueles 27 anos, o
PIB chinês cresceu numa média de 6,2% ao ano, sendo que, nos últimos 10 anos
antes das reformas pró-mercado, o PIB cresceu, em média, 6,8% ao ano.
Durante esse período, a
população chinesa cresceu 57%, de 540 milhões para 950 milhões de habitantes e
a expectativa de vida dobrou de 35 para 68 anos.
Isso foi reflexo da melhora
exponencial na produção e nas condições de vida, alimentação, saúde e educação,
direitos sociais e radical diminuição da desigualdade. Assim, a fome foi
eliminada e houve uma significativa ampliação do mercado interno, da capacidade
de produção e consumo de bens de consumo populares.
A juventude engajada na revolução. |
Além disso, a China iniciou uma moderna indústria aeroespacial, enviando satélites ao espaço sideral, construindo uma potente Força Armada e fazendo testes nucleares, que foram necessários e suficientes para e inibir qualquer aventura militar imperialista, como as que aconteceram nos vizinhos Coreia e no Vietnã e outros países asiáticos.
Enfim, neste período a China
consolidou um efetivo Estado soberano, depois de “Cem anos de Humilhação”.
Portanto, o que veio após 1978 não partiu do zero. Ao contrário, partiu de
grandes avanços já conquistados.
Mao Tsé-tung tinha
consciência do risco de restauração do capitalismo na China e lutou contra isso
enquanto pode. Sabia que o grande partido operário socialista alemão tinha sido
corroído pela hegemonia burguesa e se adequado ao capitalismo, e que, na sua maneira
de ver, também havia acontecido um retrocesso na transição ao socialismo na
URSS. Portanto, o que ainda não tinha ocorrido na China, poderia vir a
acontecer se fosse vitoriosa a linha de Liu Shaoqi, Deng Xiaoping e Xi
Zhongxun, pai de Xi Jinping¹.
Note-se que, apesar de
grandes conflitos e uma disputa muito dura após o “Grande Salto à Frente” e a
“Revolução Cultural”, ocorreram muitos afastamentos de lideranças da ala
direita do partido de posições de direção partidária e do Estado. Mas, como
regra, sem medidas de condenações à prisão e muito menos execuções de
dirigentes como havia acontecido no período stalinista na União Soviética. A
maioria dos dirigentes da linha pró-desenvolvimento das relações capitalistas
foi afastada dos postos dirigentes, mas se manteve no partido em posições nas
bases partidárias e vinculados ao processo produtivo, muitos deles deslocados
para o trabalho no campo.
Não foi o que aconteceu após
a morte de Mao em 1976, quando lideranças da ala esquerda do partido,
especialmente do chamado Grupo de Xangai, foram presas e duas delas condenados
à morte, como Jiang Qing, membro do Secretariado do PCCh e companheira de Mao
Tse-tung desde a Grande Marcha e que, posteriormente, teve a pena reduzida a
prisão perpétua e morreu oficialmente por suicídio, em 1991.
O
novo período da dominância do capital
Como sabemos, a China hoje é
a segunda potência mundial, tem o maior PIB industrial, é a maior exportadora
de mercadorias, grande exportadora de capitais, disputa a vanguarda tecnológica
e tem a terceira capacidade bélica.
Mas, especialmente, nesta
comemoração do 1º de outubro, cabe lembrar que o modelo atual foi uma ruptura
com a transição ao socialismo desenvolvida sob a direção de Mao Tse-tung e
discutir sobre a realidade da China atual, segundo o conceito de modo de
produção. É crucial esclarecer a natureza do sistema social construído na China
a partir de 1978.
A transição do capitalismo
ao socialismo depende, entre outros aspectos, do nível de desenvolvimento das
forças produtivas e da direção política dos trabalhadores, através do Estado e
de suas próprias organizações. Assim, mercado, propriedade privada e relação
com o mercado mundial podem ser fatores necessários à transição, como uma
tarefa complexa.
Entretanto, na China, depois
de 1978, o Partido-Estado deflagrou reformas que resultaram na predominância da
propriedade privada dos meios de produção e prevalência da lógica de acumulação
de capital. Em vez de crescente regulação da economia pela planificação no
sentido do socialismo, os investimentos, a produção e o emprego são regulados
pela lei do valor, segundo a finalidade do lucro.
Nesse cenário de prevalência
da propriedade privada, há um caso exemplar, neste exato momento, sobre os
limites da regulação estatal diante do impulso próprio da acumulação de
capital: a crise da Evergrande.
Trata-se da segunda maior incorporadora imobiliária da China, com centenas de milhares de empregados. Esta gigantesca empresa privada entrou em colapso com dívidas impagáveis de cerca de US$ 300 bilhões de dólares. É patente que não se trata de um caso isolado, pois o endividamento grassa por muitas empresas e governos locais.
É evidente que não é um
problema que surgiu agora, decorre de um processo em que as condições, os
recursos e as oportunidades foram colocadas tanto pelo mercado quanto pelo
Estado para a ascensão da Evergrande. A cadeia de dívidas em cascata, em
profusão, como se fosse uma pirâmide financeira, não foi contida pela mão do
Estado. De certa forma, o Estado foi capturado pela ação da empresa. Não havia
interesse de controle nesse sentido. Imóveis, obras de infraestrutura e
projetos de urbanização são necessários para o crescimento econômico e
empregos.
Nos limites das reformas de
mercado, a forte e indiscutível regulação estatal chinesa serviu à implantação
da economia capitalista, através de políticas industriais e tecnológicas,
subsídios, incentivos fiscais, apoio às exportações, ao lado de mão de obra
abundante, disciplinada e educada. Por isso, por exemplo, a China foi o país
que mais atraiu capitais estrangeiros em 2020, superando os Estados Unidos.
Construiu-se, desde 1978,
uma espécie de capitalismo de Estado, mas, na tentativa de provar que o regime
ainda é socialista, recorre-se geralmente à argumentação sobre o poder de
regulação e controle do Estado na economia, apontando para a propriedade
estatal dos gigantescos conglomerados empresariais na produção e dos bancos. No
entanto, este suposto predomínio estatal na economia é tão questionável quanto
a operação reducionista que assimila socialismo a estatismo.
Há diferentes avaliações do
tamanho dos setores privado e estatal na China, mas o traço comum, entre todas
elas, é a predominância de empresas privadas. “Quanto as empresas estatais
contribuem para o PIB e o emprego da China?”, pergunta o economista Chunlin
Zhang (2019). Em suas estimativas, ele conclui “que a participação das estatais
no PIB da China deve ser de 23-28% e sua participação no emprego pode estar em
qualquer lugar entre 5% e 16% em 2017”.
As empresas estatais na
indústria aumentaram sua produção em termos absolutos, no entanto, eles
encolheram rapidamente em um sentido relativo, ao considerar que entre 1978 e
2015, o produto industrial do país cresceu 47 vezes, enquanto o produto das
estatais cresceu 12 vezes, segundo Nicholas Lardy (2018).
No relatório do Quarto Censo
Econômico Nacional, com dados do final de 2013 ao final de 2018, foi registrado
que, neste último ano, mais de 84% das empresas chinesas eram privadas, sendo
as outras estatais ou coletivas. Mas, 15,7% dos trabalhadores ocupados estavam
em empresas estatais (China Daily, 2019).
Já pela análise de Branko
Milanovic, “o papel do estado no PIB total, calculado a partir do lado da
produção, é improvável que exceda 20%, enquanto a força de trabalho empregada
nas estatais e empresas de propriedade coletiva é de 9% do emprego rural e
urbano total” (Milanovic, 2019, p. 89).
A
China sob Xi Jinping
As novas circunstâncias na China
e no mundo exigiram novas formas de tratamento dos desafios chineses, segundo o
governo de Xi Jinping. No decorrer da administração do presidente Hu Jintao
(2003-2013), os líderes do PCCh tornaram-se plenamente conscientes do fato de
que os antagonismos entre as classes sociais estavam se intensificando, ao lado
das realizações econômicas significativas do desenvolvimentismo.
Claramente, nem Hu Jintao
nem Xi Jinping reconheceriam isso. Pelo contrário, o slogan favorito era
Sociedade Harmoniosa e Xi não se cansa de falar em Prosperidade Comum. O
discurso público continua a propagar ilusões. No entanto, na prática, os
líderes chineses estão sendo obrigados a voltar sua atenção para as explosivas
desigualdades sociais de renda e riqueza, num país onde 1% das pessoas
concentram 30% da riqueza, bem como eles aumentaram as referências ao marxismo.
Em fevereiro de 2021, o
governo comemorou a vitória pela erradicação da pobreza absoluta na China. Mas
as desigualdades e a pobreza permanecem alarmantes, como o primeiro-ministro
chinês Li Keqiang reconheceu quando disse que 600 milhões de pessoas têm uma
renda mensal de apenas ¥ 1.000 (US $141) que, segundo ele, é suficiente, com
dificuldades, para apenas alugar um quarto em uma cidade de tamanho médio
(China Daily, 2020).
“Expansão desordenada de
capital” é o que vem acontecendo em alguns setores da China, nas palavras da
reunião do Bureau Político do Comitê Central do PCCh em dezembro de 2020. Mas
foi o próprio sistema Partido-Estado que impôs as reformas e políticas que
levaram à “desordem”, ou seja, à realidade capitalista, com oligopólios,
superlucros e irregularidades jurídicas e até a ascensão de bilionários
nativos. Agora, o PCCh decidiu adotar medidas antitruste e prevenir os chamados
distúrbios do capital de expansão. Assim, o governo implementou medidas
regulatórias antitruste (contra a Ant, o braço financeiro do Alibaba, em 2020;
outras grandes empresas de tecnologia como a Tencent; a Didi Global, um serviço
de transporte tipo Uber; e escolas de reforço, em 2021).
A liderança chinesa deve
explicar se eles acreditam que há uma expansão ordenada, harmoniosa e
equilibrada dentro da economia capitalista, com mercado, propriedade privada,
lucros. Com as políticas antitruste, as autoridades estão aparentemente
buscando objetivos diferentes: aumentar o escrutínio governamental sobre as
empresas, regular a concorrência, limitar as aquisições e fusões, evitar a
dependência financeira e seus riscos para as empresas chinesas em relação aos
mercados financeiros dos Estados Unidos e bloquear potenciais vulnerabilidades
de segurança cibernética. O conflito com os Estados Unidos levou a China, em
busca de autonomia, a aumentar a regulamentação de suas áreas tecnológicas e
financeiras.
O novo cenário político na
China, com o presidente Xi no comando, indica que os líderes chineses estão
sendo forçados a lidar com os limites, contradições e perigos que aparecem
quando o grande capital está dominando o navio. Os efeitos do processo para
formar uma classe extremamente poderosa de chineses capitalistas, que possuem
corporações que centralizam grandes quantidades de capital, estão gradualmente
transbordando da economia para a política, ideologia e cultura.
*Renildo Souza é professor dos programas de pós-graduação em
Relações Internacionais e Economia da UFBA. Autor de “Estado e Capital na
China”, EDUFBA, 2018.
Jorge
Almeida é professor associado de Ciência Política e dos
programas de pós graduação em Ciências Sociais e Ciência Política da UFBA.
¹Pouco lembrado, Xi Zhongxun
ocupou cargos importantes até a Revolução Cultural, quando foi afastado de
funções dirigentes. Depois do início das reformas de mercado, voltou a posições
dirigentes no partido e no estado, sendo um dos mais entusiastas da nova linha.
Referências:
China Daily. (2019, November
28). Over 84% of companies in China are private.
http://www.china.org.cn/business/2019-11/28/content_75457219.htm
China Daily. (2020, June
10). Challenge remains as nations tries to scrap
absolute poverty. https://www.chinadaily.com.cn/a/202006/10/
WS5ee02eafa310834817251f8b.htm
CHUNLIN, Zhang. How Much Do
State-Owned Enterprises Contribute to China’s GDP and Employment? World Bank,
Washington, DC. July 15, 2019. Disponível em:
http://hdl.handle.net/10986/32306. Acesso em 20 dez. 2020.
LARDY, Nicholas. Private
sector development. In: GARNAUT, Ross.; LIGANG, Song; CAI, Fang. (Eds.).
China’s 40 years of reform and development. Canberra: Australian National
University Press, p. 329-342, 2018.
______. The state stikes
back. The end of economic reform in China? Washington, DC: Peterson Institute for International
Economics, 2019.
MILANOVIC, Branko. Capitalismo, nada más: el futuro del sistema que domina
el mundo. Barcelona: Taurus, 2020.
Edição: Página 1917
Fonte: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/revolucao-chinesa-72-o-papel-indispensavel-de-mao/
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