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sexta-feira, 30 de julho de 2021

Notícias de última hora: Tribunal Constitucional rejeita ataque ao Partido Comunista Alemão (DKP)

Manifestação nos 50 anos do DKP.

O Tribunal Constitucional Federal rejeitou hoje a tentativa de colocar em risco a existência do Partido Comunista Alemão (DKP) por meios burocráticos e de proibi-lo de concorrer às eleições para o Parlamento.

O motivo é uma bofetada retumbante para  o Comissário Eleitoral Federal e também confirma que o DKP é um partido político ativo, por exemplo, é feita referência ao comício DKP no 80º aniversário do ataque à União Soviética.

Esta decisão não é apenas o resultado dos nossos argumentos jurídicos e políticos, mas sobretudo o resultado da grande solidariedade nacional e internacional que temos recebido. Nós agradecemos do fundo do coração! Este exemplo mostra como a solidariedade é importante e o que ela pode fazer.

Para nós, esta solidariedade e o sucesso são um mandato para irmos à campanha eleitoral com todas as nossas forças, para lutarmos pelo nosso conteúdo político e pelo fortalecimento do DKP - especialmente agora. A vitória do DKP é também uma pequena vitória de palco na luta contra o desmantelamento dos direitos democráticos, contra a reestruturação reacionária do Estado - aqui devemos continuar a lutar juntos.

DKP

Fonte: https://dkp.de/wahlen

Edição: Página 1917.

Partido Comunista Alemão não foi admitido às eleições e será privado do seu status de partido político

 


Aos Partidos Comunistas e Operários 

Caros camaradas! 

A seguir, poderão encontrar a declaração do presidente do Partido Comunista Alemão, Patrik Köbele, sobre a notificação do Comissário Eleitoral Federal de que o PCA não será admitido às eleições para o Bundestag [Parlamento], em setembro, e ao mesmo tempo será privado do seu status de partido político. A alegada apresentação tardia das demonstrações financeiras é usada como pretexto.

O nosso partido lutará contra estas tentativas de proibição indireta do partido: para isso, precisamos da vossa solidariedade. Pedimos, portanto, declarações de solidariedade dos Partidos Comunistas e Operários.

Comentando as ações do Comissário Eleitoral Federal, o presidente do DKP, Patrik Köbele, disse:

 

“O que está a tentar-se com tudo isto é uma proibição fria do partido. Nós, como comunistas, estamos familiarizados com estas ações. Em 1933, o Partido Comunista foi proibido pelos fascistas e, em 1956, pela justiça de Adenauer. Devem ter muito medo de nós, para que isso seja agora concretizado por meios burocráticos, em 2021.

Claro que usaremos todos os meios legais. Temos a certeza de que esta tentativa falhará.

A privação do status de partido seria uma tentativa de levar o nosso partido à ruína financeira. Este é um dos vários escândalos em que foram feitas tentativas de arruinar organizações progressistas, retirando o seu status de organização sem fins lucrativos.

Esta tentativa faz parte da crescente criminalização e difamação das forças de esquerda e da instrumentalização da pandemia do coronavírus para o desmantelamento da democracia e dos programas sociais.

Não se trata apenas da candidatura eleitoral dos comunistas, razão pela qual apelamos a todas as forças democráticas para se oporem a esta tentativa de proibição fria do partido.”

Fonte: https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/partido-comunista-alemao-nao-foi-154275


segunda-feira, 26 de julho de 2021

Gramsci (Documentário, 1958)

   

   A partir das "Cartas da prisão" e de informações biográficas históricas, o documentário propõe uma reencenação poética da personalidade humana e intelectual de Antonio Gramsci. Das paredes da casa penal de Turi, onde Gramsci, condenado pelo tribunal especial, passou muitos anos, as imagens nos remetem à sua Sardenha natal e aos anos de seus estudos em Torino. São então relembrados os anos de guerra e os anos atormentados do primeiro pós-guerra e do fascismo, e com eles a atividade intelectual e política de Antonio Gramsci, que rapidamente o transformou em uma figura de destaque na vida política e cultural nacional e internacional. Os "Cadernos da prisão" nascem na cela da prisão de Turi. Até o fim, como atesta sua última carta ao filho, seus pensamentos se voltam para os homens e os acontecimentos de suas vidas.

Direção: Piero Nelli , 1958.


 

domingo, 25 de julho de 2021

domingo, 18 de julho de 2021

Carta aos Operários Americanos*

 Lenin (20-08-18)

   [...] O proletariado assimila agora, entre os horrores da guerra imperialista, de forma completa e evidente, a grande verdade que ensinam todas as revoluções, a verdade legada aos operários pelos seus melhores mestres, os fundadores do socialismo moderno. Esta verdade consiste em que não pode haver uma revolução com êxito sem esmagar a resistência dos exploradores. O nosso dever, quando nós, os operários e camponeses trabalhadores, tomámos o poder de Estado, era esmagar a resistência dos exploradores. Orgulhamo-nos porque o fizemos e continuamos a fazê-lo. Lamentamos não termos feito com suficiente firmeza e decisão.



   Nós sabemos que em todos os países é inevitável uma resistência raivosa da burguesia contra a revolução socialista e que ela crescerá à medida que cresce esta revolução. O proletariado quebrará esta resistência, ele amadurecerá definitivamente para a vitória e para o poder no decurso da luta contra a burguesia que opõe resistência.

   Que a imprensa burguesa corrupta grite aos quatro ventos acerca de cada erro cometido pela nossa revolução. Não temos medo dos nossos erros. Pelo fato de a revolução ter começado, os homens não se tornam santos. As classes que durante séculos foram oprimidas, embrutecidas e mantidas pela violência nas garras da miséria, da ignorância e do asselvajamento não podem fazer a revolução sem erros. E é impossível, como já tive uma vez ocasião de assinalar, fechar o cadáver da sociedade burguesa num caixão e enterrá-lo. O capitalismo morto apodrece e decompõe-se entre nós, contaminando o ar com miasmas, envenenando a nossa vida, envolvendo aquilo que é novo, recente, jovem e vivo com milhares de fios e laços daquilo que é velho, podre e morto.

   Por cada cem erros nossos, sobre os quais gritam aos quatro ventos a burguesia e os seus lacaios (incluindo os nossos mencheviques e socialistas-revolucionários de direita) há dez mil atos grandiosos e heroicos — tanto mais grandiosos e heroicos quanto são simples, invisíveis, ocultos na vida quotidiana dum bairro fabril ou duma aldeia perdida, são realizados por pessoas que não estão acostumadas (e não têm a possibilidade) a gritar aos quatro ventos sobre cada êxito seu.

   Mas ainda que fosse o contrário — embora eu saiba que tal suposição não é verdadeira — ainda que por 100 atos justos nossos houvesse 10 000 erros, mesmo assim a nossa revolução seria, e será perante a história mundial, grande e invencível, pois pela primeira vez não é a minoria, não são apenas os ricos, não são apenas as pessoas instruídas, mas uma verdadeira massa, uma enorme maioria dos trabalhadores, que constroem eles próprios a nova vida, resolvem as questões mais difíceis da organização socialista com a sua experiência.

   Cada erro neste trabalho, neste trabalho sincero e consciencioso de dezenas de milhões de simples operários e camponeses para reestruturar toda a sua vida, cada erro desse vale milhares e milhões dos êxitos «sem erros» da minoria exploradora, dos êxitos em lograr e iludir os trabalhadores. Pois só através de tais erros os operários e camponeses aprenderão a construir a nova vida, aprenderão a passar sem os capitalistas, só assim eles abrirão o caminho — através de milhares de obstáculos — para o socialismo vitorioso.

   Cometem erros ao fazer o seu trabalho revolucionário, os nossos camponeses, que de um só golpe, numa só noite, de 25 a 26 de Outubro (velho estilo) de 1917, aboliram toda a propriedade privada da terra e estão agora, de mês para mês, superando dificuldades imensas, corrigindo-se a si próprios, a cumprir na prática a tarefa dificílima de organizar novas condições de vida económica, de lutar contra os kulaques, de garantir a terra para os trabalhadores (e não para os ricos), de passar à grande agricultura comunista.

   Cometem erros ao fazer o seu trabalho revolucionário os nossos operários, que nacionalizaram agora, em alguns meses, quase todas as grandes fábricas, e estudam, através de um duro trabalho quotidiano, a nova obra de gestão de ramos inteiros da indústria, que organizam as empresas nacionalizadas, superando a gigantesca resistência da rotina, do espírito pequeno-burguês, do egoísmo, que lançam, pedra a pedra, os alicerces de novas relações sociais, de uma nova disciplina do trabalho, de um novo poder dos sindicatos operários sobre os seus membros.

   Cometem erros ao fazer o seu trabalho revolucionário os nossos Sovietes, criados já em 1905 pelo poderoso ascenso das massas. Os Sovietes de operários e camponeses são um novo tipo de Estado, um novo tipo, superior, de democracia, são a forma da ditadura do proletariado, o meio de administrar o Estado sem a burguesia e contra a burguesia. Pela primeira vez a democracia serve aqui para as massas, para os trabalhadores, deixando de ser uma democracia para os ricos, como continua a ser a democracia em todas as repúblicas burguesas, mesmo nas mais democráticas. Pela primeira vez as massas populares cumprem a tarefa, à escala de centenas de milhões de pessoas, da realização da ditadura dos proletários e semiproletários — tarefa sem cujo cumprimento não se pode sequer falar de socialismo.

   Que os pedantes ou os homens incuravelmente cheios de preconceitos democrático-burgueses ou parlamentares abanem perplexamente a cabeça a propósito dos nossos Sovietes de Deputados, detendo-se, por exemplo, na ausência de eleições diretas. Essas pessoas não esqueceram nem aprenderam nada no período das grandes viragens de 1914-1918. A união da ditadura do proletariado com a nova democracia para os trabalhadores, da guerra civil com a mais ampla participação das massas na política — tal união não pode ser conseguida imediatamente e não cabe nas formas triviais do democratismo parlamentar rotineiro. Um novo mundo, o mundo do socialismo — eis o que se nos apresenta nos seus contornos sob a forma de República Soviética. E não admira que este mundo não nasça já pronto, não saia de uma vez, como Minerva da cabeça de Júpiter.

   Enquanto as velhas constituições democrático-burguesas exaltavam, por exemplo, a igualdade formal e o direito de reunião, a nossa Constituição Soviética proletária e camponesa rejeita a hipocrisia da igualdade formal. Quando os republicanos burgueses derrubavam tronos, então não se preocupavam com a igualdade formal dos monárquicos com os republicanos. Quando se trata de derrubamento da burguesia, só traidores ou idiotas podem reclamar uma igualdade formal de direitos para a burguesia. Não vale um tostão a «liberdade de reunião» para os operários e camponeses se todos os melhores edifícios estão em poder da burguesia. Os nossos Sovietes tiraram aos ricos todos os bons edifícios, tanto nas cidades como nas aldeias, entregando todos estes edifícios aos operários e camponeses para as suas uniões e assembleias. Eis a nossa liberdade de reunião --- para os trabalhadores! Eis o sentido e o conteúdo da nossa Constituição Soviética, da nossa Constituição Socialista!

   E eis porque todos nós estamos tão profundamente convencidos de que, quaisquer que sejam as desgraças que caiam sobre a nossa República dos Sovietes, ela é invencível.

   Ela é invencível porque cada golpe do imperialismo enraivecido, cada derrota que a burguesia internacional nos inflige, levantam para a luta novas e novas camadas de operários e camponeses, ensinam-nos ao preço dos maiores sacrifícios, temperam-nos, geram um novo heroísmo de massas.

   Nós sabemos que a vossa ajuda, camaradas operários americanos, não chegará, talvez, muito rapidamente, pois o desenvolvimento da revolução nos diversos países se realiza sob formas diferentes e a ritmos diferentes (e não pode realizar-se de outra maneira). Nós sabemos que a revolução proletária europeia pode não eclodir ainda nas próximas semanas, por mais rapidamente que tenha amadurecido nos últimos tempos. Nós apostamos na inevitabilidade da revolução internacional, mas isso não significa de modo algum que apostemos como tontos na inevitabilidade da revolução num período determinado e curto. Nós vimos as duas grandes revoluções de 1905 e de 1917 no nosso país e sabemos que as revoluções não se fazem por encomenda nem por acordo. Nós sabemos que as circunstâncias lançaram para a frente o nosso destacamento, o destacamento da Rússia do proletariado socialista, não devido aos nossos méritos, mas devido a um atraso especial da Rússia, e que antes que rebente a revolução internacional é possível uma série de derrotas de diferentes revoluções.

   Apesar disso, sabemos firmemente que somos invencíveis, porque a humanidade não será quebrada pelo massacre imperialista, mas superá-lo-á. E o primeiro país que quebrou as grilhetas da guerra imperialista foi o nosso país. Suportámos duríssimos sacrifícios na luta pela destruição dessas grilhetas, mas quebrámo-las. Estamos fora de dependências imperialistas, levantámos perante todo o mundo a bandeira da luta pelo derrubamento completo do imperialismo.

   Encontramo-nos como que numa fortaleza assediada, enquanto não chegarem em nossa ajuda outros destacamentos da revolução socialista internacional. Mas esses destacamentos existem, são mais numerosos do que os nossos, eles amadurecem, crescem, reforçam-se à medida que prosseguem as atrocidades do imperialismo. Os operários rompem com os seus sociais-traidores, os Gompers, Henderson, Renaudel, Scheidemann, Renner. Os operários avançam devagar, mas firmemente, para a táctica comunista, bolchevique, para a revolução proletária, a única que está em condições de salvar a cultura e a humanidade que se afundam.

   Numa palavra, somos invencíveis, pois é invencível a revolução proletária mundial.

*Trecho da Carta ao Operários Americanos.

Edição: Página 1917.


 

 

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Os Enterros de Inhaúma*

 Lima Barreto (26-08-1922)

   Certamente há de ser impressão particular minha não encontrar no cemitério municipal de Inhaúma aquele ar de recolhimento, de resignada tristeza, de imponderável poesia do Além, que encontro nos outros. Acho-o feio, sem compunção com um ar momo de repartição pública; mas se o cemitério me parece assim, e não me interessa, os enterros que lá vão ter, todos eles, aguçam sempre a minha atenção quando os vejo passar, pobres ou não, a pé ou em coche-automóvel.



   A pobreza da maioria dos habitantes dos subúrbios ainda mantém neles esse costume rural de levar a pé, carregados a braços, os mortos queridos.

   É um sacrifício que redunda num penhor de amizade em uma homenagem das mais sinceras e piedosas que um vivo pode prestar a um morto.

   Vejo-os passar e calculo que os condutores daquele viajante para tão longínquas paragens, já andaram alguns quilômetros e vão carregar o amigo morto, ainda durante cerca de uma légua. Em geral assisto a passagem desses cortejos fúnebres na rua José Bonifácio canto da Estrada Real. Pela manhã gosto de ler os jornais num botequim que há por lá. Vejo os órgãos, quando as manhãs estão límpidas, tintos com a sua tinta especial de um profundo azul-ferrete e vejo uma velha casa de fazenda que se ergue bem próximo, no alto de uma meia laranja, passam carros de bois, tropas de mulas com sacas de carvão- nas cangalhas, carros de bananas, pequenas manadas de bois, cujo campeiro cavalga atrás sempre com o pé direito embaralhado em panos.

   Em certos instantes, suspendo mais demoradamente a leitura do jornal, e espreguiço o olhar por sobre o macio tapete verde do capinzal intérmino que se estende na minha frente.

   Sonhos de vida roceira me vêm; suposições do que aquilo havia sido, ponho-me a fazer. Índios, canaviais, escravos, troncos, reis, rainhas, imperadores - tudo isso me acode à vista daquelas coisas mudas que em nada falam do passado.

   De repente, tilinta um elétrico, buzina um- automóvel chega um caminhão carregado de caixas de garrafas de cerveja; então, todo o bucolismo do local se desfaz, a emoção das priscas eras em que os coches de Dom João VI transitavam por ali, esvai-se e ponho-me a ouvir o retinir de ferro malhado, uma fábrica que se constrói bem perto.

   Vem porém o enterro de uma criança; e volto a sonhar.

   São moças que carregam o caixão minúsculo; mas assim mesmo, pesa. Percebo-o bem, no esforço que fazem.

   Vestem-se de branco e calçam sapatos de salto alto. Sopesando o esquife, pisando o mau calçamento da rua, é com dificuldade que cumprem a sua piedosa missão. E eu me lembro que ainda têm de andar tanto! Contudo, elas vão ficar livres de um suplício; é o do calçamento da rua do Senador José Bonifácio. É que vão entrar na Estrada Real; e, naquele trecho, a prefeitura só tem feito amontoar pedregulhos, mas tem deixado a vetusta via pública no estado de nudez virginal em que nasceu. Isto há anos que se verifica.

   Logo que as portadoras do defunto pisam o barro unido do velho trilho, adivinho que elas sentem um grande alívio dos pés à cabeça. As fisionomias denunciam. Atrás, seguem outras moças que as auxiliarão bem depressa, na sua tocante missão de levar um mortal à sua última morada neste mundo; e, logo após, graves cavalheiros de preto, com o chapéu na mão, carregando palmas de flores naturais, algumas com aspecto silvestre, e baratas e humildes coroas artificiais fecham o cortejo.

   Este calçamento da rua Senador José Bonifácio, que deve datar de uns cinquenta anos é feito de pedacinhos de seixos mal ajustados e está cheio de depressões e elevações imprevistas. É mau para os defuntos; e até já fez um ressuscitar.

   Conto-lhes. O enterro era feito em coche puxado por muares. Vinha das bandas do Engenho Novo, e tudo corria bem. O carro mortuário ia na frente, ao trote igual das bestas. Acompanhavam-no seis ou oito caleças, ou meias caleças, com os amigos do defunto. Na altura da estação de Todos os Santos, o cortejo deixa a rua Arquias Cordeiro e toma perpendicularmente, à direita, a de José Bonifácio. Coche e caleças põem-se logo a jogar como navios em alto-mar tempestuoso. Tudo dança dentro deles. O cocheiro do carro fúnebre mal se equilibra na boleia alta. Oscila da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, que nem um mastro de galera debaixo de tempestade braba. Subitamente, antes de chegar aos "Dois Irmãos", o coche cai num caldeirão, pende violentamente para um lado; o cocheiro é cuspido ao solo, as correias que prendem o caixão ao carro, partem-se, escorregando a jeito e vindo espatifar-se de encontro às pedras; e - oh! Terrível surpresa! Do interior do esquife, surge de pé - lépido, vivo, vivinho, o defunto que ia sendo levado ao cemitério a enterrar. Quando ele atinou e coordenou os fatos não pôde conter a sua indignação e soltou uma maldição: "Desgraçada municipalidade de minha terra que deixas este calçamento em tão mal estado! Eu que ia afinal descansar, devido ao teu relaxamento volto ao mundo, para ouvir as queixas da minha mulher por causa da carestia da vida, de que não tenho culpa alguma; e sofrer as impertinências do meu chefe Selrão, por causa das suas hemorroidas, pelas quais não me cabe responsabilidade qualquer! Ah! Prefeitura de uma figa, se tivesses uma só cabeça havias de ver as forças das minhas munhecas! Eu te esganava, maldita, que me trazes de novo à vida!"

   A este fato, eu não assisti, nem ao menos morava naquelas paragens, quando aconteceu; mas pessoas dignas de toda a confiança me garantem a autenticidade dele. Porém, um outro muito interessante aconteceu com um enterro quando eu já morava por elas, e dele tive notícias frescas, logo após o sucedido, por pessoas que nele tomaram parte.

   Tinha morrido o Felisberto Catarino, operário, lustrador e empalhador numa oficina de móveis de Cascadura. Ele morava no Engenho de Dentro, em casa própria, com razoável quintal, onde havia, além de alguns pés de laranjeiras, uma umbrosa mangueira, debaixo da qual, aos domingos, reunia colegas e amigos para bebericar e jogar a bisca.

   Catarino gozava de muita estima, tanto na oficina como na vizinhança.

   Como era de esperar, o seu enterro foi muito concorrido e feito a pé, com um denso acompanhamento. De onde ele morava, até ao cemitério de Inhaúma, era um bom pedaço; mas os seus amigos a nada quiseram atender: Resolveram levá-lo mesmo a pé. Lá fora, e no trajeto, por tudo que era botequim e taverna por que passavam, bebiam o seu trago. Quando o caminho se tornou mais deserto até os condutores do esquife deixavam-no na borda da estrada e iam à taverna "desalterar". Numa das últimas etapas do itinerário, os que carregavam, resolveram de mútuo acordo deixar o pesado fardo para os outros e encaminharam-se sub-repticiamente para a porta do cemitério. Tanto estes como os demais - é de toda a conveniência dizer - já estavam bem transtornados pelo álcool. Outro grupo concordou fazer o mesmo que tinham feito os carregadores dos despojos mortais de Catarino; um outro, idem; e, assim, todo o acompanhamento dividido em grupos, tomou o rumo do portão do campo-santo, deixando o caixão fúnebre com o cadáver de Catarino dentro abandonado à margem da estrada.

   Na porta do cemitério, cada um esperava ver chegar o esquife pelas mãos de outros que não as deles; mas nada de chegar. Um, mais audaz, após algum tempo de espera, dirigindo-se a todos os companheiros, disse bem alto:

- Querem ver que perdemos o defunto?

- Como? perguntaram os outros, a uma voz.

- Ele não aprece e estamos todos aqui, refletiu o da iniciativa.

- É verdade, fez outro.

Alguém então aventou:

- Vamos procurá-lo. Não seria melhor?

E todos voltaram sobre os seus passos, para procurar aquela agulha em palheiro...

   Tristes enterros de Inhaúma! Não fossem essas tintas pinturescas e pitorescas de que vos revestis de quando em quando de quanta reflexão acabrunhadora não havíeis de sugerir aos que vos veem passar; e como não convenceríeis também a eles que a maior dor desta vida não é morrer...

*Publicado em Careta, Rio, 26-08-1922.

Fonte: Feiras e Mafuás, Brasiliense, 1956.

Edição: Página 1917.

 

 

 

 

segunda-feira, 12 de julho de 2021

Não há solução para as classes trabalhadoras no capitalismo. O caminho é destruí-lo.

Artigo sobre conjuntura do Coletivo Cem Flores (09/07/2021).

A crise econômica, sanitária e social que avança mais profundamente desde o início de 2020, atinge a nós, trabalhadores/as, de todas as formas. A pandemia já ceifou mais de 4 milhões de vidas em todo o mundo, sendo mais de meio milhão no Brasil. Nada indica que será superada no curto prazo. Quem mais está morrendo é a nossa classe, sem a possibilidade de isolamento social e sem acesso a serviços médicos de qualidade.



O desemprego, a fome e a miséria estão muito mais presentes em nossos lares e de nossos irmãos e irmãs de classe. A ilusão que o capitalismo sempre tentou nos vender, de que com o trabalho duro a vida iria melhorar, mais do nunca está descartada. Quanto mais se trabalha, menos se ganha! E o pouco que ganha, a carestia corrói!

O avanço na exploração capitalista é o “novo normal” aos que ainda têm emprego. Essa ofensiva burguesa se expressa, entre outros, nas alterações nas relações de trabalho, iniciadas com os acordos dos pelegos da CUT e de outras entidades sindicais pelegas na década passada (negociado sobre o legislado, redução de jornada com redução de salário, layoff etc.), referendadas pelos governos do PT, institucionalizadas com a reforma trabalhista no governo Temer e “normalizadas” a partir do avanço da crise no ano passado.

Para a outra grande parte dos/as trabalhadores/as sobrou a instabilidade constante do trabalho informal, com suas jornadas intermináveis e pouquíssimo remuneradas ou o sofrimento cotidiano do desemprego e da falta de perspectivas de renda para sustentar suas famílias.

À brutalidade da pandemia, da fome, do desemprego e da miséria se somam a violência da repressão e o avanço das hordas fascistas. A repressão das classes dominantes e do seu estado (seja legal, ou seja, forças armadas, polícias e seguranças privadas, ou ilegal, mas cumprindo a mesma função, milícias, crime organizado, grupos paramilitares, jagunços etc.) mata e reprime mais do que nunca, buscando nos deixar intimidados/as e com medo de reagir a esse avanço brutal da burguesia pela retomada de seus lucros e para manutenção de sua vida de luxo e ócio.

As crises capitalistas, como a que estamos vivendo, são sempre oportunidades para maior concentração e centralização do capital e aprofundamento da exploração e da miséria que caem sobre a classe operária e os/as trabalhadores/as em todo o mundo. Todas as nossas pequenas conquistas, obtidas nos momentos conjunturais de expansão capitalista, são rapidamente destruídas e a sanha assassina do capital avança ainda mais sobre nós.

A lição que tiramos dessa batalha é uma lei férrea do capitalismo: mesmo as pequenas reformas, resultado de nossa luta – e não de dádivas da burguesia, de seu estado e governos – serão transitórias se o capitalismo não for destruído.

Não há solução possível para nós dentro do sistema que vivemos. Não há reforma capitalista possível que possa alterar o aprofundamento da exploração, da miséria, da fome. A solução para o povo está na revolução contra esse regime de exploração, contra os patrões e seus lacaios.

Essa revolução só pode ser construída pela luta das massas, a partir do estágio realmente existente em cada conjuntura. Hoje, no Brasil, essa luta tem ocorrido em diversas formas de resistências coletivas e independentes.

Mutirões, ações de solidariedade, de ajuda mútua, movimentos coletivos de organização e resistência pela sobrevivência (saúde, alimentação, cuidados aos idosos e às crianças…) surgiram em vários pontos do país e são um importante exemplo disso. Mesmo ainda embrionários, demonstram a capacidade e o poder que o povo tem para enfrentar seus inimigos e construir seu próprio caminho, de forma coletiva e autônoma, sem depender das falsas soluções apresentadas pela burguesia, pelo estado ou seus instrumentos políticos. “Soluções” que sempre buscam substituir a ação organizada das massas pela atuação dos ditos “representantes”, na verdade burocratas imbuídos da missão de paralisar esses movimentos e deixá-los inofensivos frente ao Estado e aos patrões.

As poucas, mas importantes, resistências nos locais de trabalho também mostram que a indignação da classe operária está viva. A dificuldade de ampliar essa indignação provém da posição oportunista ainda hegemônica no movimento sindical, posição de nosso inimigo de classe. Superar essas posições na classe operária e fortalecer a posição revolucionária é tarefa imprescindível para mudarmos esse quadro.

Os focos de resistência coletiva e independente nas fábricas, nas concentrações operárias, na periferia das cidades e no campo, de fato, são ainda pequenos exemplos, muito aquém do necessário para sairmos dessa dura situação. Mas as lições que eles trazem devem ser desenvolvidas e estimuladas. A classe operária, trabalhadores/as, moradores/as da periferia, camponeses/as estamos todos/as aprendendo na conjuntura atual uma lição fundamental na luta de classes: ninguém irá lutar por nós! Façamos nós, com nossas mãos, tudo o que a nós nos diz respeito!

Essa é a postura e o sentido das ações que os comunistas devem adotar na conjuntura atual. Encontrar na crise, que expos todas as contradições insuperáveis do capitalismo, o caminho da organização independente do proletariado e romper as ilusões com o estado, os partidos e movimentos burgueses. Seguir o rumo que a classe operária e as classes trabalhadoras sabem por instinto, o do enfrentamento ao inimigo de classe e da construção dos instrumentos políticos para esse enfrentamento.

Esse instinto da classe operária na luta de classes, se estiver integrado ao marxismo, ciência que é resultado da luta do proletariado, pode iluminar nossa marcha, transformar essa rebeldia ainda espontânea e pontual em ação organizada e generalizada de enfrentamento ao inimigo, já que nos permite analisar concretamente a realidade atual e identificar as ações para a transformação revolucionária.

Todas as tentativas de fazer os/as trabalhadores/as desviarem desse objetivo só servem aos inimigos de classe. As falsas soluções de que essa horrível conjuntura em que vivemos se resolveria elegendo outro representante burguês, que se apresenta como salvador da pátria, nós já conhecemos. Ela foi aplicada neste país várias vezes, e por muitos anos, e nos levou para onde estamos hoje! Na verdade, essa ilusão com as soluções ofertadas pelos inimigos só serviu para reforçar os grupos da extrema-direita e nos desarmar no enfrentamento a eles.

Na conjuntura atual, de desgaste desse governo de extrema-direita e de seu presidente fascista e corrupto (corrupto como todos os governos burgueses), de ofensiva dos patrões e aprofundamento da podridão capitalista, o caminho não pode ser o de acreditar nas ilusórias mudanças do “gestor de plantão” do capital. O caminho só pode ser o de avançar na organização e na consciência das formas de resistência reais, concretas, que a classe operária e os/as trabalhadores/as devem desenvolver para se apropriar e se constituir como força independente.

Sabemos que o caminho é longo, mas isso não pode ser uma justificativa para a escolha de um “atalho” que na verdade nos afasta de nosso objetivo real: a destruição do capitalismo. O longo caminho deve ser a base que indica a necessidade de construir desde já, junto à classe operária e aos/às trabalhadores/as, os alicerces políticos, teóricos, ideológicos e organizativos que façam com que nosso objetivo se aproxime cada dia mais. Trabalhar no sentido da revolução e não no sentido que nos afasta dela!

A rendição aos interesses burgueses, colocando nas mãos deles a solução dos problemas que afligem nossa classe, situação que eles criaram para garantir seus lucros e sua existência como capital, não é uma saída e sim uma falsa alternativa para nos paralisar e nos desarmar, novamente, no combate que devemos travar.

As “frentes amplas” propostas pela dita “esquerda” nos colocam a reboque de interesses políticos oportunistas, interesses burgueses daqueles que acham que é possível prolongar ainda mais esse sistema apodrecido. Grupos que querem voltar aos espaços de poder para, mantendo e garantindo a exploração capitalista, retomarem seus privilégios, perdidos com o crescimento da extrema-direita. Essas propostas de “frentes amplas” nos paralisam e impedem de ver a realidade objetivamente, o que é necessário para enfrentar essa situação.

A frente ou a unidade que devemos construir é aquela que une a classe operária e os/as trabalhadores/as, os criadores de toda a riqueza existente, na luta contra os patrões e seu estado, aquela unidade que aponte como único caminho objetivo a superação do modo de produção capitalista, a substituição dessa sociedade pelo socialismo, onde quem produz a riqueza possa desfrutar dessa riqueza.

Não há alternativa fora do enfrentamento na luta de classes. E quanto mais cedo conseguirmos entender e agir a partir desse princípio central, mais rapidamente conseguiremos construir as condições que nos libertarão dessa maldita escravidão que é a sociedade capitalista.

Fonte: https://cemflores.org/2021/07/09/nao-ha-solucao-para-as-classes-trabalhadoras-no-capitalismo-o-caminho-e-destrui-lo/

Edição: Página 1917.

sexta-feira, 9 de julho de 2021

O Épico e o Trágico na História do Haiti

Jacob Gorender (08/03/2004)

Neste preciso momento, em que escrevo a resenha de um livro notável sobre o Haiti, o país caribenho esteve assolado por uma rebelião sangrenta, que obrigou o presidente Jean Bertrand Aristide a abandonar o cargo e se refugiar no exterior.


 

Em dois séculos de história, no entanto, Aristide foi o primeiro governante haitiano a exercer o poder após conquistá-lo pela via eleitoral, em 1994. Encontrava-se no segundo mandato, que não conseguiu completar, acusado de corrupção, de arbitrariedades e de violências.

No início do século XIX, o Haiti era a colônia mais produtiva das Américas e a primeira a conquistar a Independência nacional, em 1804. Como explicar então que não tenha tido uma trajetória progressista, mas, ao contrário, se tornasse o país mais pobre do continente, talvez um dos mais pobres do mundo?

Além de produzir café, anil, cacau, algodão e outros gêneros, o Haiti produzia sobretudo o açúcar, em condições mais competitivas do que as outras colônias da época. Nessa produção, empenhavam-se meio milhão de escravos, a maioria africanos, na proporção de dois terços.

O autor da obra aqui resenhada nos dá informação minuciosa, de leitura fluente, sobre as características da escravidão haitiana e sobre a guerra da Independência, ajudando-nos a encontrar a chave da indigência subsequente do país. “O Haiti é aqui”, escreveu Caetano Veloso, na letra de uma de suas canções. Seria o mesmo que escrevesse “a miséria é aqui”, referindo-se, desta vez, ao Brasil.

Cyril Lionel Robert James (que costuma assinar suas obras como C.L.R. James) nasceu na ilha de Trinidad em 1901, onde veio a falecer em 1989. Teve oportunidade de receber educação acima da média dos conterrâneos, praticou o jornalismo, jogou críquete e escreveu sobre este esporte não só reportagens como também um livro (Beyond a Boundary), em 1963.

Tinha interesses bastante diversificados e um deles, o mais importante, dirigia-se à política. Na Inglaterra, ligou-se ao Independent Labour Party e à IV Internacional, dirigida por Leon Trotski. Em Os jacobinos negros já se evidencia a adesão ao marxismo. Na década de 1950, foi atraído pelo nacionalismo africano, encarando-o como solução para a questão do negro. Em 1977, escreveu Nkrumah and the Ghana revolution, obra marcada por esta visão otimista. Mas o fracasso do nacionalismo africano levou-o a abandonar a política.

Um dos livros mais conhecidos de C.L.R James é, precisamente, The Black Jacobins. Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution(1). A Boitempo teve a feliz iniciativa de colocar a obra ao alcance do leitor brasileiro em tradução para o português, geralmente correta e elegante, assinada por Afonso Teixeira Filho(2).

Na verdade, esta é a segunda resenha que faço do livro de James. A primeira se insere no texto de A escravidão reabilitada e se baseou na leitura da tradução italiana(3). Esta, por sua vez, baseada na tradução portuguesa editada pela Boitempo, é mais extensa e detalhada.

James, o que não se deve censurar, manifesta entusiasmo incontido pelo episódio histórico que aborda. Não obstante, semelhante entusiasmo o induz, no Preâmbulo datado de 1980, ao anacronismo de situar a rebelião dos escravos do Haiti, no começo do século XIX, ao nível dos movimentos operários da segunda metade do século XX. Argumenta que as reivindicações dos escravos seriam análogas às de um trabalhador contemporâneo(4). Penso que se trata de equívoco. Os escravos podiam reivindicar dias de descanso, glebas para cultivo próprio de gêneros alimentícios, jornadas de trabalho menos estafantes etc. Mas não poderiam reivindicar, como o trabalhador moderno, aumento de salário, remuneração conforme as tarefas cumpridas ou as peças produzidas, aposentadoria, previdência social etc. As rebeliões, no começo do século XIX, no continente americano, só podiam ter caráter antiescravista e anticolonialista. No mundo atual, o cenário internacional é sacudido pelas lutas anticapitalistas e anti-imperialistas. Trata-se de etapas históricas profundamente diversas. Não obstante, o anacronismo não prejudica o texto que se segue ao Preâmbulo.

segunda-feira, 5 de julho de 2021

O Oportunismo e a Falência da II Internacional

 Lenin (janeiro/1916)

"Do reconhecimento de uma guerra como guerra de libertação nacional decorre uma tática, do seu reconhecimento como guerra imperialista decorre outra. O manifesto aponta claramente essa outra tática. A guerra "provocará uma crise econômica e política" que deverá ser "aproveitada": não para atenuar a crise, não para defender a pátria, mas, pelo contrário, para "sacudir" as massas, para "apressar a queda do domínio do capital"."

 


 

A II Internacional deixou realmente de existir? Os seus representantes mais autorizados, como Kautsky e Vandervelde, negam-no obstinadamente. Nada aconteceu além de uma ruptura das relações; tudo está bem; tal é o seu ponto de vista.

A fim de esclarecer a verdade, vejamos o manifesto do congresso de Basileia de 1912, que se refere precisamente à atual guerra mundial imperialista e foi adotado por todos os partidos socialistas do mundo. Deve-se assinalar que nenhum socialista ousará, em teoria, negar a necessidade de uma avaliação histórica concreta de cada guerra.

Agora que a guerra eclodiu, nem os oportunistas declarados nem os kautskistas se resolvem nem a negar o manifesto de Basileia nem a confrontar com as suas exigências o comportamento dos partidos socialistas durante a guerra. Por quê? Pois porque o manifesto os desmascara inteiramente a uns e a outros.

Nele não há nem uma única palavrinha sobre a defesa da pátria, nem sobre a diferença entre a guerra ofensiva e a guerra defensiva, nem uma palavra sobre tudo que afirmam agora aos quatro ventos os oportunistas e os kautskistas(1) da Alemanha e da quádrupla Entente. O manifesto não podia falar disso, dado que aquilo que ele diz exclui absolutamente qualquer emprego desses conceitos. Ele indica de maneira absolutamente concreta uma série de conflitos econômicos e políticos que prepararam esta guerra durante decênios, que se tinham revelado plenamente em 1912 e provocaram a guerra de 1914. O manifesto recorda o conflito russo-austríaco a propósito da "hegemonia nos Balcãs", o conflito entre a Inglaterra, a França e a Alemanha (entre todos estes países!) a propósito da sua "política de conquista na Ásia Menor", o conflito austro-italiano a propósito da "aspiração ao domínio" na Albânia, etc. O manifesto define numa palavra todos esses conflitos como conflitos no terreno do "imperialismo capitalista". Deste modo, o manifesto reconhece com toda a clareza o caráter espoliador, imperialista, reacionário, escravista desta guerra, isto é, o caráter que transforma a admissibilidade da defesa da pátria numa insensatez do ponto de vista teórico e num absurdo do ponto de vista prático. Está em curso uma luta dos grandes tubarões para devorar "pátrias" estrangeiras. O manifesto tira as conclusões inevitáveis de fatos históricos indiscutíveis: esta guerra não pode ser "justificada por qualquer pretexto de interesse popular"; ela é preparada "a bem dos lucros dos capitalistas e das ambições das dinastias". Seria "um crime" se os operários "começassem a disparar uns contra os outros". Assim diz o manifesto.

A época do imperialismo capitalista é a época do capitalismo maduro e mais que maduro, do capitalismo que está em vésperas da sua derrocada, que amadureceu o suficiente para dar lugar ao socialismo. O período de 1789 a 1871 foi a época do capitalismo progressista, em que na ordem do dia da história estava o derrube do feudalismo e do absolutismo, a libertação do jugo estrangeiro. Nesse terreno, e só nele era admissível a "defesa da pátria", isto é, a defesa contra a opressão. Este conceito poderia ainda hoje ser aplicado a uma guerra contra as grandes potências imperialistas, mas seria absurdo aplicá-lo à guerra entre as grandes potências imperialistas, à guerra na qual se trata de saber quem pilhará mais os países balcânicos, a Ásia Menor, etc. Não é por isso de espantar que os "socialistas" que reconhecem a "defesa da pátria" na presente guerra evitem o manifesto de Basileia como o ladrão evita o lugar do roubo. É que o manifesto demonstra que eles são sociais-chauvinistas, isto é, socialistas em palavras e chauvinistas na realidade, que ajudam a "sua" burguesia a pilhar países estrangeiros, a subjugar outras nações. O que é essencial na noção de "chauvinismo" é a defesa da "sua" pátria mesmo quando as ações desta visam escravizar as pátrias alheias.

Do reconhecimento de uma guerra como guerra de libertação nacional decorre uma tática, do seu reconhecimento como guerra imperialista decorre outra. O manifesto aponta claramente essa outra tática. A guerra "provocará uma crise econômica e política" que deverá ser "aproveitada": não para atenuar a crise, não para defender a pátria, mas, pelo contrário, para "sacudir" as massas, para "apressar a queda do domínio do capital". Não se pode apressar aquilo cujas condições históricas ainda não amadureceram. O manifesto reconhecia que a revolução social é possível, que as premissas para ela amadureceram, que ela virá precisamente em relação com a guerra: as "classes dominantes" temem "a revolução proletária", declara o manifesto, invocando o exemplo da Comuna de Paris e da revolução de 1905 na Rússia, isto é, os exemplos das greves de massas, da guerra civil. É uma mentira afirmar, como faz Kautsky, que a atitude do socialismo para com esta guerra não foi esclarecida. Esta questão não só foi discutida como foi decidida em Basileia, onde foi adotada a tática da luta proletária revolucionária de massas.

É uma revoltante hipocrisia passar em silêncio, totalmente ou nas partes mais essenciais, o manifesto de Basileia e em lugar dele citar discursos de dirigentes ou resoluções de certos partidos que, em primeiro lugar, foram proferidos antes de Basileia, em segundo lugar não eram decisões dos partidos de todo o mundo, em terceiro lugar referiam-se a diferentes guerras possíveis, mas não à presente guerra. O fundo da questão está em que a época das guerras nacionais entre as grandes potências europeias foi substituída pela época das guerras imperialistas entre elas e em que o manifesto de Basileia teve pela primeira vez de reconhecer oficialmente esse fato.

Seria um erro pensar que o manifesto de Basileia é uma declamação oca, uma fraseologia oficial, uma ameaça pouco séria. É assim que gostariam de apresentar a questão aqueles que esse manifesto desmascara. Mas isso é falso. O manifesto é apenas o resultado de um grande trabalho de propaganda de toda a época da II Internacional, é apenas um resumo de tudo aquilo que os socialistas lançaram entre as massas em centenas de milhares de discursos, artigos e apelos em todas as línguas. Ele apenas repete aquilo que escreveu, por exemplo, Jules Guesde em 1899, quando fustigava o ministerialismo(2)dos socialistas em caso de guerra: ele falava da guerra provocada pelos "piratas capitalistas" (En garde!, p. 175); apenas repete aquilo que escreveu Kautsky em 1909 em O Caminho do Poder, onde reconhecia o fim da época "pacifica" e o início de uma época de guerras e revoluções. Apresentar o manifesto de Basileia como fraseologia ou como um erro significa considerar como fraseologia ou como um erro todo o trabalho socialista nos últimos 25 anos. A contradição entre o manifesto e a sua não aplicação é tão intolerável para os oportunistas e kautskistas porque ela revela a profundíssima contradição no trabalho da II Internacional. O caráter relativamente "pacifico" do período de 1871 a 1914 alimentou o oportunismo primeiro como estado de espírito, depois como tendência e finalmente como grupo ou camada da burocracia operária e dos companheiros de jornada pequeno-burgueses. Estes elementos só podiam submeter o movimento operário reconhecendo em palavras os objetivos revolucionários e a tática revolucionária. Eles só podiam conquistar a confiança das massas através da afirmação solene de que todo o trabalho "pacífico" constitui apenas uma preparação para a revolução proletária. Esta contradição era um abcesso que alguma vez haveria de rebentar, e rebentou. Toda a questão consiste em saber se se deve tentar, como fazem Kautsky e Cia, reintroduzir de novo esse pus no organismo em nome da "unidade" (com o pus) ou se, para ajudar à completa cura do organismo do movimento operário, se deve, o mais depressa possível e o mais cuidadosamente possível, livrá-lo desse pus, apesar da temporária dor aguda causada por esse processo.

E evidente a traição ao socialismo por parte daqueles que votaram pelos créditos de guerra, entraram para os ministérios e advogaram a ideia da defesa da pátria em 1914-1915. Só os hipócritas podem negar este fato. É necessário explicá-lo.

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