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sábado, 31 de outubro de 2020

Carta à Comissão Executiva do PCB

Sobre a carta de Mariguella à direção do PCB, de 1966, podemos dizer que ela guarda muitas atualidades, face a adaptação à democracia burguesa por parte dos partidos, que se dizendo "comunistas", seguem praticando o mesmo reboquismo político ideológico típico de organizações pequeno-burguesas. (nota do editor)


Carlos Marighella

1 de Dezembro de 1966

Prezados Camaradas



Escrevo-lhes para pedir demissão da atual Executiva.

Os contrastes de nossas posições políticas e ideológicas é demasiado grande e existe entre nós uma situação insustentável.

Na vida de um combatente, é preferível renunciar a um convívio formal a ter de ficar em choque com a própria consciência.

Nada tenho a opor aos camaradas pessoalmente.

No trabalho sob o título "Luta interna e dialética", publicado na Tribuna de Debate e em um folheto, procurei tornar clara a ideia que tenho sobre a necessidade do tom pessoal na luta interna.

Na verdade, nenhuma pessoa por si só está em condições de determinar a marcha da história, coisa que compete, sem nenhuma dúvida e antes de mais nada às massas trabalhadoras.

O que torna ineficaz a executiva é a sua falta de mobilidade, é não exercer o comando efetivo e direto do Partido nas empresas fundamentais do país, é não ter atuação direta entre os camponeses.

O centro de gravidade do trabalho executivo repousa em fazer reuniões, redigir notas políticas e elaborar informes. Não há assim ação planejada, a atividade não gira em torno da luta. Nos momentos excepcionais, o Partido inevitavelmente estará sem condutos para mover-se, não ouvirá a voz do comando, como já aconteceu em face da renúncia de Jânio e da deposição de Goulart.

Solicitando demissão da atual Executiva — como o faço aqui —, desejo tornar público que minha disposição é lutar revolucionariamente junto com as massas e jamais ficar à espera das regras do jogo político burocrático e convencional que impera na liderança.

1. A Circulação da Ideias

Uma das questões em que a Executiva se mostra temerosa e conservadora é quanto ao aparecimento de livros e à circulação de ideias.

Acerca de um ano e meio publiquei o livro Por que resisti à prisão.

A experiência das lideranças passadas em matéria de lançamento de livros não é boa. As direções executivas dificultavam ou impediam tal coisa por meio de subterfúgios, retendo originais ou exercendo a censura prévia.

Os camaradas da Executiva atual reclamam, entretanto, que só a posteriori tomaram conhecimento do livro mencionado.

Mesmo assim não o discutiram; sobre ele não emitiram nenhuma opinião, apesar de interpelados por militantes e outros dirigentes.

Agora, passado mais de um ano, os companheiros fazem autocrítica pela omissão e opinam sobre o livro, considerando boa a primeira parte (que faz o relato da prisão). Não concordam, porém, com a segunda parte (que expõe os assuntos ideológicos e políticos), porque esta — segundo pensam — é contra a atual linha do Partido.

Parece estranho condenar uma parte do livro e não condenar igualmente a outra.

As duas partes são indivisíveis. Uma é decorrência da outra. Há uma interação entre elas, uma relação de causa e efeito. A resistência à prisão não teria havido se os motivos políticos expostos no livro não a justificassem.

Os companheiros, porém, não atentam para essa evidência. Entram pelo terreno da abstração e do agnosticismo kantista e separam coisas inseparáveis.

E vão mais além, sustentando a tese de que um membro da liderança não pode escrever, publicamente, discordando.

A tese é stalinista, mas aí a temos de volta.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

O que é o marxismo-leninismo?

 Florestan Fernandes

   Desde o início de suas atividades intelectuais e políticas, Lênin sempre se considerou um marxista – e, o que é mais importante, sempre procurou ser um marxista ortodoxo. Por isso, não se contentou com a rica produção socialista que encontrou à sua disposição como jovem: foi diretamente aos textos de Marx e Engels, estudou-os sistematicamente e aos poucos tentou dominar também os autores que estavam nas raízes da formação do marxismo. A sua primeira obra de grande envergadura, O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, evidencia três coisas:

1 - Completo domínio crítico das teorias econômicas de Marx e do materialismo histórico;

2 - Aplicação exclusiva dessas teorias na descrição e interpretação dos fatos (isto é, sem qualquer modalidade erudita de ecletismo);

3 - As teorias econômicas de Marx forneciam “hipóteses diretrizes”, estando longe de ser a fonte de um dogmatismo estéril: o que assegurava a marcha criadora da investigação, que se abria para a descoberta tanto do que era geral, quanto para o que era peculiar à manifestação do capitalismo na Rússia.



   Esse estilo de trabalho aparece com igual maestria nos escritos especificamente políticos da época, principalmente naqueles em que faz a crítica marxista do “populismo” e “economicismo” no movimento socialista russo. Portanto, as aplicações do marxismo ao plano prático revelam o mesmo espírito de identificação congruente, a um tempo flexível, mas intransigente com os princípios do socialismo revolucionário. Que Fazer?, como obra de síntese e de superação das experiências políticas acumuladas durante o período de formação, constitui a face política das descobertas históricas e econômicas contidas em O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia. Sua total fidelidade ao marxismo não pressupunha a “repetição de Marx” ou a ossificação da dialética, e sim a busca de caminhos novos, que só o marxismo podia desvendar, desde que aplicado de forma precisa, exigente e imaginativa, como um saber vivo, em intrínseca conexão com a vida.

   Na cisão de 1903, vários bolcheviques, mais intimamente associados a Lênin e à sua liderança política, foram designados como “leninistas” (palavra que reaparece em outros contextos e mesmo, de passagem, em escritos de Lênin). No entanto, após a reviravolta de abril e a tomada do poder, o “leninismo” ganhou expressão política, que se acentuou graças á luta pela sucessão de Lênin após sua morte. O “leninismo”, assim entendido, significa pouca coisa: na primeira acepção, “seguidor de Lênin”, no sentido de uma oposição intransigente ao reformismo, e ao oportunismo; na segunda acepção, alguém que fazia profissão de fé diante da natureza revolucionária do partido comunista, da ditadura do proletariado e do Estado soviético (e, implicitamente, no desdobramento das etapas de transição para o socialismo e para o comunismo). Ora, se isso fosse tudo, não haveria razão para o uso crescente da expressão marxismo-leninismo, que finalmente se universalizou e se viu consagrada de modo definitivo. O legado de Lênin transformou o marxismo e é essa transformação que nos interessa aqui.

sábado, 24 de outubro de 2020

Luta Interna e Dialética*

 Carlos Marighella

Todos os partidos do proletariado que foram adiante e obtiveram vitórias — inclusive chegando ao poder — passaram por um processo mais ou menos agudo de luta interna. Isto aconteceu na URSS, na China, em Cuba e outros países.

Mariguella após deixar a prisão, em 31 julho de 1964.
   A experiência histórica brasileira mostra — por sua vez — que todos os passos para a frente em questões de orientação ou de correção da erros, na vanguarda do proletariado, sempre foram acompanhados de intensa luta interna.

   Foi o que se deu em 1942-1945 (período do Estado Novo) e em 1956-1958 (período da discussão do culto à personalidade). É o que se dá agora, no período da derrota imposta ao nosso povo pelo golpe militar-fascista de 1º de abril de 1964.

Que é a luta interna, como e por que ocorre no partido marxista do proletariado?

   A luta interna é o choque que sobrevém no seio do partido, quando se confrontam ideias contrárias, relacionadas com a prática na atividade dos militantes.

   A dialética marxista incumbe-se de explicar o mecanismo da luta interna e sua natureza intrínseca, isto é, sua natureza própria, peculiar.

   A dialética marxista mostra que, no mundo, tudo é inter-relacionado, tudo se desenvolve, quer se trate da natureza, da sociedade humana ou do pensamento. A vanguarda do proletariado brasileiro, que é um organismo social vivo, representando interesses políticos e ideológicos de uma determinada classe, não foge aos princípios da dialética marxista. O que se passa na vanguarda de nosso proletariado obedece às leis fundamentais da dialética marxista. A ideologia do partido é uma ideologia determinada, é a ideologia do proletariado. Sobre ela, porém, exerce uma enorme influência a ideologia burguesa, vinda do exterior.

   O choque é inevitável, sobretudo nos momentos de derrota do proletariado, quando a ideologia burguesa aproveita as brechas ocorridas no seio da vanguarda e penetra mais fundo.

   A derrota do partido marxista do proletariado é — via de regra — consequência de erros que se localizam na incompleta acumulação ideológica no seio da vanguarda ou na influência demasiado acentuada da ideologia burguesa. Outras causas de erros podem subsistir. Mas o fundamental consiste em causas ideológicas.

   Devido, pois, ao papel ativo das ideias na sociedade e no partido marxista do proletariado, a luta interna deve obrigatoriamente ser tratada como luta ideológica, não podendo ser levada a efeito, com resultados positivos, se não obedecer às leis da dialética materialista, aos princípios da filosofia marxista.

   Sob o ponto-de-vista dos princípios, o primeiro cuidado na luta interna é não tratá-la como luta entre inimigos.

   O partido em seu conjunto luta contra os inimigos de classe. Sua finalidade é assegurar a direção da luta de classes dos trabalhadores — e como consequência a direção da luta de todo o povo pela sua libertação, a paz, o progresso, o socialismo.

   A luta interna é chamada luta interna, no partido marxista do proletariado, exatamente para diferençá-la da luta que ele — o partido marxista — trava e dirige em nome dos interesses políticos e ideológicos do proletariado e de todo o povo, contra os inimigos da classe operária e da nação brasileira, contra o imperialismo, contra o latifúndio, contra as classes exploradoras, contra tudo o que freia o progresso, a marcha para a frente.

   A luta interna não é um reflexo da luta de classes nem a própria luta de classes no interior do partido.

   No interior do partido não há tal, porque o partido não é uma organização composta de classes opostas.

   Os membros do partido lutam pelos objetivos de classe do proletariado e esforçam-se por [para] que sua consciência seja uma só — a consciência do proletariado.

   Os conflitos que surgem no partido não provêm de choques de classes diferentes, atuando internamente, mas de influências ideológicas das classes que exteriormente são hostis ao desenvolvimento da consciência de classe do proletariado e de seu partido.

   Os que discordam no interior do partido não são inimigos de classe. As discordâncias são uma contingência dialética do desenvolvimento da consciência e derem ser toleradas e admitidas normalmente.

   Na luta interna não se trata de liquidar quadros. Não se trata de aplicar medidas de coação.

   Quando a luta interna é encarada como luta de classes no interior do partido, estamos em face de um desvio, de um desvirtuamento do marxismo e sua filosofia.

   Ter a luta interna na conta de luta de classes (ou de uma forma de luta de classes) é um procedimento que estimula a prepotência, favorece o clima do culto à personalidade, fomenta o poderio individual ou a luta de grupos.

   É igualmente errôneo considerar a luta interna como luta desordenada, visando a desrespeitar o centralismo democrático, principio diretor da estrutura e funcionamento do partido, onde a unidade e a disciplina permanecem necessária e obrigatoriamente como fundamentos partidários.

   Difundir a intolerância, exercer qualquer tipo da coação, liquidar quadros, fracionar, abalar a unidade e a disciplina, são métodos condenáveis e condenados na luta interna.

   Não sendo uma luta entre inimigos, a luta interna tem que obedecer necessariamente a um método capaz de fazer avançar o partido marxista do proletariado, sem destruí-lo internamente e sem debilitar a sua unidade ou enfraquecê-lo perante o inimigo de classe.

   Dentro do partido não se pode evitar a luta interna. Os que pensam impedir ou deter a luta interna (ou diante dela se omitem) desconhecem a inexorabilidade das leis que presidem ao desenvolvimento social.

   A luta Interna, como qualquer outra luta que diz respeito a relações entre os homens, não é desencadeada por forças cegas, espontâneas. Ao contrário, a luta interna, assim como qualquer outra lei objetiva do desenvolvimento social, manifesta-se através da ação dos indivíduos. Estes, a princípio, podem ser surpreendidos com a manifestação das leis objetivas. Ou podem ser levados a exageros e excessos ao interpretá-las, ou à omissão.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Quando penso em Che: Poder, Revolução e Comunismo.

Leonardo Juárez

8 de outubro de 2020


   As estratégias dos poderosos em relação ao CHE têm passado por um duplo caminho, anulação e apropriação, que, como uma pinça, buscam um objetivo comum, o desaparecimento por meio de sua morte e o encobrimento de seu corpo e, posteriormente, através da banalização, apresentando-nos um Che adoçado, de consumo pós-moderno, com presença em t-shirts, livrarias, discotecas e centros comerciais.

    Desmobilizar e desmoralizar o povo tem sido outro dos objetivos em torno de sua figura, por isso se mostra mais na Bolívia e em La Higuera, do que em Santa Clara e Havana, para admirá-lo, mas no campo da hagiografia como se fosse um santo, longe de ser humano, inacessível para as pessoas comuns, para que ninguém ouse seguir o seu exemplo.

Che Guevara no Congo, em 1965.


   Rever o trabalho de Che vai muito além de qualquer nota, listar algumas das questões que ele abordou exigiria uma menção mínima de sua concepção do humanismo comunista, sua crítica do determinismo (sublinhando o valor da ação consciente de homens e mulheres como sujeitos da história), sua contribuição para a teoria da construção do novo homem, sua insistência em que as correlações de forças não são eternas. A teoria do valor e sua concepção do poder popular como democracia popular também são contribuições significativas que o comandante Guevara nos deixou.

    53 anos após a queda em combate da heroica guerrilha, a polarização socioeconômica que atravessa o mundo não se transformou em polarização sociopolítica, mas começam a se configurar tendências marcantes do momento atual: no "polo do capital", sua classe, sua a intelectualidade, seus partidos, estão limitados a se curvar à hegemonia do capital financeiro internacional e promover, onde quer que queiram controlar o poder, um programa neoliberal claro; a militarização no nível político é imprescindível para que eles possam impor tal programa aos “estados-nação”; e a extensão da guerra com seu fardo de destruição e pilhagem em nível internacional. Em suma, uma política mais agressiva de preservação da dominação será assumida pelas elites.

   Por outro lado, a enormidade das injustiças, as provações múltiplas e diárias dos marginalizados, excluídos e precários de mil maneiras, exige de nós a rejeição vigorosa do espaço confortável proporcionado pelo ceticismo sobre as causas coletivas e nos desafia com um imperativo categórico: como o chamou Che em sua época, um, dois, três Vietnãs, o que hoje significa o impulso de uma insurgência global contra o capital onde a enorme e imperiosa necessidade de restaurar os horizontes com mais força do que nunca se levanta novamente com grande relevância. nossos grandes pensadores, lutadores, mártires e heróis que sonhavam com uma sociedade melhor, mais humana, mais justa, um mundo novo sem explorados ou exploradores, contra a barbárie, pela Revolução e pelo Socialismo.

   O desenvolvimento desta política requer algumas premissas que estiveram no centro das preocupações, reflexões e preocupações do Che, questões centrais como o caráter do poder, o papel do Estado, a soberania nacional, a integração continental e o anti-imperialismo, hoje têm mais validade do que nunca, e obriga-nos à necessária e imperativa articulação continental dos revolucionários, num momento em que os norte-americanos recuam para o que considera seu quintal, e a suave genuflexão para a administração norte-americana dos governos pró-ianques (incluindo os argentinos ) serve a mesa à sua voracidade.

   Estamos passando por uma fase de desenvolvimento histórico, que nos coloca diante do espetáculo “fantástico” da crise capitalista de cunho civilizatório, é bom recuperar o Che para fincar a bandeira na ideia de que devemos construir uma nova forma de organização da sociedade, porque está se tornando cada vez mais claro que o desenvolvimento das forças produtivas não só pode levar à destruição do capitalismo, mas à destruição da espécie humana. 

   A batalha pelo socialismo e pelo comunismo torna-se assim uma luta em legítima defesa e um compromisso com um futuro de justiça para o mundo.

   O marxismo não vem propor à humanidade a solução de todos os seus problemas, suas reivindicações são muito mais modestas como diria Ernest Mandel: dos mil problemas que os homens enfrentaram desde que existem, apenas meia dúzia se propõe a resolver: a ) suprimir a fome mundial, a miséria, a falta de bens necessários à sobrevivência; b) substituir a produção de mercadorias e a economia monetária por uma economia baseada na satisfação direta das necessidades; c) tornar impossível a guerra e o uso massivo da violência; d) eliminar qualquer forma de exploração, opressão, subjugação e violência do homem pelo homem; e) abolir a divisão da sociedade em classes e com ela também sua separação em produtores e administradores, propriedade privada, a luta competitiva que visa o enriquecimento individual e a divisão congruente com ela da humanidade em Estados-nação hostis e alcançar um sistema de cooperação e solidariedade humana geral e universal; f) garantir a cada mulher, homem e criança as premissas materiais e sociais para a plena realização de suas possibilidades humanas.

   Essa meia dúzia de problemas que podemos resolver fariam, sem dúvida, um mundo melhor do que aquele em que vivemos hoje, mesmo que estivesse longe de resolver todos os problemas.

   Em um novo aniversário de sua queda em combate, reafirmamos nosso senso de horizonte, e com Che dizemos que nenhum fracasso, nenhuma derrota parcial diminuirá nossas forças, nem nossas convicções; Por isso, somos otimistas no triunfo definitivo dos povos, que se erguerão brilhantemente sob novos símbolos, sob o símbolo da vitória, sob o símbolo da construção do socialismo, sob o símbolo do futuro.

Fonte:  https://revistacentenario.com/cuando-pienso-en-el-che-poder-revolucion-y-comunismo/

Edição: Página 1917.

 

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Quatro Frases que fazem o nariz do Pinóquio Crescer

Eduardo Galeano

Maio de 2011

1 - Somos todos culpados pela ruína do planeta. 

A saúde do mundo está feito um caco. 'Somos todos responsáveis', clamam as vozes do alarme universal, e a generalização absolve: se somos todos responsáveis, ninguém é. Como coelhos, reproduzem-se os novos tecnocratas do meio ambiente. É a maior taxa de natalidade do mundo: os experts geram experts e mais experts que se ocupam de envolver o tema com o papel celofane da ambiguidade. 

A marcha destrutiva do capitalismo sobre a natureza

Eles fabricam a brumosa linguagem das exortações ao 'sacrifício de todos' nas declarações dos governos e nos solenes acordos internacionais que ninguém cumpre. Estas cataratas de palavras - inundação que ameaça se converter em uma catástrofe ecológica comparável ao buraco na camada de ozônio - não se desencadeiam gratuitamente. A linguagem oficial asfixia a realidade para outorgar impunidade à sociedade de consumo, que é imposta como modelo em nome do desenvolvimento, e às grandes empresas que tiram proveito dele. Mas, as estatísticas confessam. Os dados ocultos sob o palavreado revelam que 20% da humanidade comete 80% das agressões contra a natureza, crime que os assassinos chamam de suicídio, e é a humanidade inteira que paga as consequências da degradação da terra, da intoxicação do ar, do envenenamento da água, do enlouquecimento do clima e da dilapidação dos recursos naturais não-renováveis. A senhora Harlem Bruntland, que encabeça o governo da Noruega, comprovou recentemente que, se os 7 bilhões de habitantes do planeta consumissem o mesmo que os países desenvolvidos do Ocidente, "faltariam 10 planetas como o nosso para satisfazerem todas as suas necessidades." Uma experiência impossível. 

Mas, os governantes dos países do Sul que prometem o ingresso no Primeiro Mundo, mágico passaporte que nos fará, a todos, ricos e felizes, não deveriam ser só processados por calote. Não estão só pegando em nosso pé, não: esses governantes estão, além disso, cometendo o delito de apologia do crime. Porque este sistema de vida que se oferece como paraíso, fundado na exploração do próximo e na aniquilação da natureza, é o que está fazendo adoecer nosso corpo, está envenenando nossa alma e está deixando-nos sem mundo. 

2 - É verde aquilo que se pinta de verde. 

Agora, os gigantes da indústria química fazem sua publicidade na cor verde, e o Banco Mundial lava sua imagem, repetindo a palavra ecologia em cada página de seus informes e tingindo de verde seus empréstimos. "Nas condições de nossos empréstimos há normas ambientais estritas", esclarece o presidente da suprema instituição bancária do mundo. Somos todos ecologistas, até que alguma medida concreta limite a liberdade de contaminação. 

Quando se aprovou, no Parlamento do Uruguai, uma tímida lei de defesa do meio-ambiente, as empresas que lançam veneno no ar e poluem as águas sacaram, subitamente, da recém-comprada máscara verde e gritaram sua verdade em termos que poderiam ser resumidos assim: "os defensores da natureza são advogados da pobreza, dedicados a sabotarem o desenvolvimento econômico e a espantarem o investimento estrangeiro." O Banco Mundial, ao contrário, é o principal promotor da riqueza, do desenvolvimento e do investimento estrangeiro. Talvez, por reunir tantas virtudes, o Banco manipulará, junto à ONU, o recém-criado Fundo para o Meio-Ambiente Mundial. Este imposto à má consciência vai dispor de pouco dinheiro, 100 vezes menos do que haviam pedido os ecologistas, para financiar projetos que não destruam a natureza. Intenção inatacável, conclusão inevitável: se esses projetos requerem um fundo especial, o Banco Mundial está admitindo, de fato, que todos os seus demais projetos fazem um fraco favor ao meio-ambiente. 

O Banco se chama Mundial, da mesma forma que o Fundo Monetário se chama Internacional, mas estes irmãos gêmeos vivem, cobram e decidem em Washington. Quem paga, manda, e a numerosa tecnocracia jamais cospe no prato em que come. Sendo, como é, o principal credor do chamado Terceiro Mundo, o Banco Mundial governa nossos escravizados países que, a título de serviço da dívida, pagam a seus credores externos 250 mil dólares por minuto, e lhes impõe sua política econômica, em função do dinheiro que concede ou promete. A divinização do mercado, que compra cada vez menos e paga cada vez pior, permite abarrotar de mágicas bugigangas as grandes cidades do sul do mundo, drogadas pela religião do consumo, enquanto os campos se esgotam, poluem-se as águas que os alimentam, e uma crosta seca cobre os desertos que antes foram bosques. 

3 - Entre o capital e o trabalho, a ecologia é neutra. 

Poder-se-á dizer qualquer coisa de Al Capone, mas ele era um cavalheiro: o bondoso Al sempre enviava flores aos velórios de suas vítimas... as empresas gigantes da indústria química, petroleira e automobilística pagaram boa parte dos gastos da Eco 92: a conferência internacional que se ocupou, no Rio de Janeiro, da agonia do planeta. E essa conferência, chamada de Reunião de Cúpula da Terra, não condenou as transnacionais que produzem contaminação e vivem dela, e nem sequer pronunciou uma palavra contra a ilimitada liberdade de comércio que torna possível a venda de veneno. 

No grande baile de máscaras do fim do milênio, até a indústria química se veste de verde. A angústia ecológica perturba o sono dos maiores laboratórios do mundo que, para ajudarem a natureza, estão inventando novos cultivos biotecnológicos. Mas, esses desvelos científicos não se propõem encontrar plantas mais resistentes às pragas sem ajuda química, mas sim buscam novas plantas capazes de resistir aos praguicidas e herbicidas que esses mesmos laboratórios produzem. Das 10 maiores empresas do mundo produtoras de sementes, seis fabricam pesticidas (Sandoz-Ciba-Geigy, Dekalb, Pfizer, Upjohn, Shell, ICI). A indústria química não tem tendências masoquistas. 

A recuperação do planeta ou daquilo que nos sobre dele implica na denúncia da impunidade do dinheiro e da liberdade humana. A ecologia neutra, que mais se parece com a jardinagem, torna-se cúmplice da injustiça de um mundo, onde a comida sadia, a água limpa, o ar puro e o silêncio não são direitos de todos, mas sim privilégios dos poucos que podem pagar por eles. Chico Mendes, trabalhador da borracha, tombou assassinado em fins de 1988, na Amazônia brasileira, por acreditar no que acreditava: que a militância ecológica não pode divorciar-se da luta social. Chico acreditava que a floresta amazônica não será salva enquanto não se fizer uma reforma agrária no Brasil. Cinco an os depois do crime, os bispos brasileiros denunciaram que mais de 100 trabalhadores rurais morrem assassinados, a cada ano, na luta pela terra, e calcularam que quatro milhões de camponeses sem trabalho vão às cidades deixando as plantações do interior. Adaptando as cifras de cada país, a declaração dos bispos retrata toda a América Latina. As grandes cidades latino-americanas, inchadas até arrebentarem pela incessante invasão de exilados do campo, são uma catástrofe ecológica: uma catástrofe que não se pode entender nem alterar dentro dos limites da ecologia, surda ante o clamor social e cega ante o compromisso político. 

4 - A natureza está fora de nós. 

Em seus 10 mandamentos, Deus esqueceu-se de mencionar a natureza. Entre as ordens que nos enviou do Monte Sinai, o Senhor poderia ter acrescentado, por exemplo: "Honrarás a natureza, da qual tu és parte." Mas, isso não lhe ocorreu. Há cinco séculos, qua ndo a América foi aprisionada pelo mercado mundial, a civilização invasora confundiu ecologia com idolatria. A comunhão com a natureza era pecado. E merecia castigo. Segundo as crônicas da Conquista, os índios nômades que usavam cascas para se vestirem jamais esfolavam o tronco inteiro, para não aniquilarem a árvore, e os índios sedentários plantavam cultivos diversos e com períodos de descanso, para não cansarem a terra. A civilização, que vinha impor os devastadores monocultivos de exportação, não podia entender as culturas integradas à natureza, e as confundiu com a vocação demoníaca ou com a ignorância. Para a civilização que diz ser ocidental e cristã, a natureza era uma besta feroz que tinha que ser domada e castigada para que funcionasse como uma máquina, posta a nosso serviço desde sempre e para sempre. A natureza, que era eterna, nos devia escravidão. Muito recentemente, inteiramo-nos de que a natureza se cansa, como nós, seus filhos, e sabemos que, tal como nós, pode morrer assassinada. Já não se fala de submeter a natureza. Agora, até os seus verdugos dizem que é necessário protegê-la. Mas, num ou noutro caso, natureza submetida e natureza protegida, ela está fora de nós. A civilização, que confunde os relógios com o tempo, o crescimento com o desenvolvimento, e o grandalhão com a grandeza, também confunde a natureza com a paisagem, enquanto o mundo, labirinto sem centro, dedica-se a romper seu próprio céu.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Que Partido?

Francisco Martins Rodrigues

Setembro/outubro de 1988.                                  

Muito se falou, nos anos da luta contra o revisionismo, da criação de um “partido de tipo novo”, “bolchevique”, “leninista”. Porém, aquilo que, na realidade, o movimento marxista-leninista conseguiu gerar foram partidos sem dúvida mais radicalizados, mas moldados no mesmo unanimismo dogmático dos anteriores. 


Reclamando-se dos “princípios leninistas de partido”, não se atreveram a recriá-los, na maioria dos casos por nem sequer os conhecer. Não é de estranhar por isso que rapidamente perdessem o vigor inicial e se revelassem terreno fértil para o burocratismo e para a proliferação de tendências oportunistas. A dissolução ideológica em que soçobraram resultou do receio a uma verdadeira ruptura com a experiência anterior. 

Hoje, quando se começa novamente a falar na necessidade de criação de um partido comunista, há razão para voltarmos às lições que se podem colher na experiência organizativa dos velhos partidos e dos partidos “M-L” dos anos 70. Com estas breves notas, procuro retomar uma reflexão já iniciada nestas páginas(1), para evitar que amanhã “bolcheviques” de vistas curtas recaiam em velhos erros. 

Unidade para resistir

É sabido, mas muitas vezes esquecido, que o partido comunista, corpo estranho na sociedade burguesa que proclama pretender derrocar, sofre uma tremenda pressão da parte desta para ser digerido e destruído: pressão policial e militar quando necessário, mas também política e ideológica, na atividade legal de todos os dias. Pressão que provém não apenas do aparelho de poder burguês, mas também das cantadas pequeno-burguesas contíguas ao proletariado e das flutuações no seio do próprio proletariado, como resultado da ditadura a que está submetido. 

É essa pressão que causa, nos períodos “normais” de desenvolvimento pacífico da luta de classes, a dificuldade extrema dos comunistas se inserirem na política diária, atuarem ao nível das massas, fazerem uma utilização revolucionária da luta por reformas, sem se deixarem subverter pela tendência envolvente para a adaptação às regras e limites do sistema. As mais das vezes, cria-se um verdadeiro fosso entre os objetivos estratégicos a que o partido procura ser fiel e as necessidades imediatas da táctica. Daí a tendência para surgir em quase todos os partidos comunistas uma ala “esquerdista, sectária, dos que tentam preservar a natureza revolucionária do partido pelo isolamento, e uma ala oportunista (quase sempre maioritária), dos que tentam ganhar influência política adaptando-se ao movimento espontâneo e sacrificando os objetivos revolucionários. 

Compreende-se, nestas condições, que a defesa da unidade do partido em torno do seu programa revolucionário seja para o PC uma exigência vital. A questão está em saber por que meios se alcança essa unidade.

domingo, 11 de outubro de 2020

Lições da greve nos Correios para a luta dos trabalhadores e das trabalhadoras hoje no Brasil*

"A greve ensina os operários a compreenderem onde repousa a força dos patrões e onde a dos operários, ensina a pensarem não só em seu patrão e em seus companheiros mais próximos, mas em todos os patrões, em toda a classe capitalista e em toda a classe operária. Quando um patrão que acumulou milhões às custas do trabalho de várias gerações de operários não concede o mais modesto aumento de salário e inclusive tenta reduzi-lo ainda mais e, no caso de os operários oferecerem resistência, põe na rua milhares de famílias famintas, então os operários veem com clareza que toda a classe capitalista é inimiga de toda a classe operária e que os operários só podem confiar em si mesmos e em sua união. Acontece muitas vezes que um patrão procura enganar, a todo transe, os operários, apresentar-se diante deles como um benfeitor, encobrir a exploração de seus operários com uma dádiva insignificante qualquer, com qualquer promessa falaz. Cada greve sempre destrói de imediato este engano, mostrando aos operários que seu “benfeitor” é um lobo com pele de cordeiro. Mas a greve abre os olhos dos operários não só quanto aos capitalistas, mas também no que se refere ao governo e às leis. […] O operário começa a entender que as leis são ditadas em benefício exclusivo dos ricos, que também os funcionários defendem os interesses dos ricos."

Lênin. Sobre as Greves, 1899.

Manifestação dos trabalhadores dos Correios em Brasília.


A greve dos Correios chega ao fim – os ataques do patrão, não

No dia 21 de setembro ocorreu o julgamento da greve dos trabalhadores e das trabalhadoras dos Correios no Tribunal Superior do Trabalho (TST). O TST não julgou a greve formalmente abusiva e decidiu por um reajuste salarial de 2,6% para a categoria, ao contrário da posição da empresa.

A verdadeira dimensão do julgamento, no entanto, foi contrária, na prática, à greve, mediante multa diária de R$ 100 mil, e contrária à categoria ao cancelar, arbitrariamente, cinquenta cláusulas do Acordo Coletivo, inclusive várias conquistas históricas (algumas de mais de 10 anos), mantendo apenas cláusulas sociais sem impacto financeiro para a empresa.

O imenso ataque patronal contra os/as trabalhadores/as, que se utilizou do fim da ultratividade (garantia de manutenção do acordo coletivo), conquistado pelos patrões na reforma trabalhista de Temer, portanto, tinha sido ratificado também pela dita justiça do trabalho, seguindo o julgamento anterior realizado no STF. O efeito sobre os salários e as condições de trabalho dos/as trabalhadores/as será forte: alguns chegarão a perder quase metade de sua renda mensal, além de terem vários benefícios excluídos.

A decisão do TST foi também, na realidade, uma imposição de volta ao trabalho. Apesar de a greve não ter sido formalmente considerada abusiva, o tribunal ameaçou multar os sindicatos em R$ 100 mil por dia caso os/as trabalhadores/as continuassem a greve. 

Depois de 35 dias, uma das mais longas e fortes greves de 2020 chegou ao fim e a categoria retornou aos seus postos de trabalho, tendo que repor metade dos dias parados e a outra metade cortar de seus próprios salários. 

Mas o inimigo não parou por aí! Nos dias seguintes, o governo veio a público reafirmar a intenção de privatização da empresa. Segundo o Valor Econômico, os militares palacianos já teriam dado aval para a venda, para a abertura total do mercado de correspondências e entregas para monopólios privados (nacionais e internacionais).

A categoria bem sabe o que isso significa: demissões em massa, redução ainda mais violenta de salários e conquistas, bem piores condições de luta. E por isso, na própria greve, já iniciaram uma campanha contra a privatização da empresa e têm consciência da grande chance de que esse seja o próximo ataque do inimigo.

Fazer uma profunda avaliação da greve para continuar a luta!

"Lutar, fracassar, lutar de novo, fracassar de novo, voltar a lutar… até à vitória: eis a lógica do povo."

Mao. Descartar as Ilusões, Preparar-se para a Luta, 1949.

Nesse momento difícil para os trabalhadores e as trabalhadoras dos Correios e para o movimento sindical brasileiro como um todo, várias perguntas têm sido feitas: por que uma greve nacional, com adesão considerável, foi derrotada com tanta virulência do Estado? Que fazer daqui para frente, após tamanho retrocesso nas conquistas da categoria? Como continuar a luta em um cenário cada vez mais avesso às lutas sindicais?

Para responder tais questões, é preciso realizar uma profunda avaliação da greve. E a partir dela, estabelecer diretrizes para reorganizar e reorientar a luta, não só nos Correios, mas em nossa conjuntura de recrudescimento do ataque patronal.

Essa avaliação deve buscar compreender o contexto econômico, político e ideológico, suas características gerais e específicas, no qual a luta dos Correios ocorreu. Só assim chegaremos a conclusões reais que nos darão clareza das condições concretas de nossas forças e do inimigo, como diz Lênin. 

Com essa publicação, o Coletivo Cem Flores visa contribuir com tal avaliação da greve, destacando também suas lições mais relevantes para o atual cenário de luta de classes no país. Buscamos assim colaborar com o debate sindical e fortalecer a organização da luta dos/as trabalhadores/as. Como marxistas, buscamos nos pautar pela “análise concreta da realidade concreta”. E, a partir dos “fundamentos sólidos” dos fatos, contribuir para indicar o sentido que consideramos fortalecer a posição proletária e a luta dos/as trabalhadores/as pela sua emancipação.

Resumidamente, avaliamos que a greve ocorreu em cenário extremamente desfavorável para a luta sindical: pandemia e isolamento social; histórica crise econômica, com elevado desemprego; fortalecimento do governo e da ideologia reacionária e conservadora; refluxo e enfraquecimento das greves e da organização dos/as trabalhadores/as; com destaque para a ausência da posição proletária e a hegemonia das posições burguesas no movimento sindical. 

Grave crise do capital no Brasil 

O país vive hoje uma grave crise econômica que se “somou” à anterior (2014-2016), cuja recuperação ainda não veio. Essa nova crise, de caráter mundial e relacionada com a pandemia do novo coronavírus, causou quedas recordes em vários setores da economia. Com o relaxamento da quarentena e depois de imensos pacotes de estímulo estatal nos últimos meses, alguma melhoria na economia já é verificada de forma geral. No entanto, a previsão hoje é que o PIB caia cerca de 5% em 2020, e que o ano de 2021 não consiga recuperar por completo esse mais novo e violento tombo do capital no Brasil. 

Ou seja, se no início de 2020, a situação econômica do país era de crise, no final de 2020 temos uma situação pior, agravada em diversos aspectos. 

Para empresas públicas, como os Correios, dois aspectos da crise merecem ser destacados.

O primeiro, a piora da situação fiscal do país nesses últimos meses. O Estado se endividou enormemente com medidas emergenciais para sustentar a reprodução do capital, sobretudo em uma crise tão atípica. E, se antes dessa crise, já havia enorme pressão das classes dominantes em fazer o Estado privatizar e reduzir os gastos com seus trabalhadores, tal pressão agora se amplia.

O segundo, o acirramento da concorrência de capitais (públicos e privados). Na crise, capitais (inclusive internacionais) com maior taxa de lucro, novas tecnologias e maiores condições de explorar o trabalhador tendem a vencer seus rivais, incorporando-os ou destruindo-os; restando aos capitais em piores condições buscar realizar fortes ajustes para tentar sobreviver.

O ataque sofrido pelos/as trabalhadores/as dos Correios ocorre em contexto de crise do capital, com o Estado buscando cortar gastos com trabalhadores/as do setor público e preparando suas empresas para prováveis incorporações em monopólios privados.

Piora no mercado de trabalho

A crise desencadeia não só uma ofensiva contra esses trabalhadores/as do setor público, inclusive com o risco de mais privatizações, mas contra as massas trabalhadoras como um todo. 

O corte nos rendimentos e nas conquistas nos Correios, infelizmente, não foi uma exceção nessa crise. Os patrões realizaram nos últimos meses um forte arrocho, com o auxílio de seu Estado. Segundo dados do “Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda” (sic!), do governo federal, no final de setembro, o país tinha quase 20 milhões de “acordos” trabalhistas de corte nos salários ou suspensão de contrato. Sendo a maior parte desses acordos de suspensão ou corte de 70% nos salários! Tendo em vista tamanho “sucesso” (para os patrões) do programa, o governo anunciou que pretende prorrogá-lo pela segunda vez.

Além disso, há o violento aumento do desemprego, que já estava alto antes dessa crise. Segundo dados do IBGE, a taxa de desemprego “clássica” na última semana de agosto estava em 14,3%, totalizando 13,7 milhões de desempregados. A taxa de desemprego mais completa, que leva em conta a subtilização da força de trabalho, estava em 30,1% no trimestre encerrado em julho, ou cerca de 33 milhões de trabalhadores!

Taxa composta de subutilização – trimestres de maio a julho – 2012 a 2020 – Brasil (%)


A piora na renda e nas condições de vida do/a trabalhador/a, no entanto, ainda não ocorreram por completo. Isso porque parte do pacote estatal para amenizar a crise do capital incluiu auxílios emergenciais e complementações salariais. No entanto, tais programas tendem a acabar ou a se reduzir drasticamente nos próximos meses, levando o/a trabalhador/a a depender apenas de um mercado de trabalho praticamente sem vagas, com empregos mais precários e em grande parte informais. Isso sem contar as dificuldades adicionais advindas de uma pandemia ainda sem solução.

A piora generalizada nas condições de trabalho e nos salários e a elevação do desemprego afetam diretamente as condições da luta sindical, como a dos Correios. O desemprego diminui o preço da força de trabalho e aumenta a concorrência entre trabalhadores/as, reduzindo seu poder de barganha e dificultando sua unidade e sua solidariedade. Um mercado de trabalho em condições rebaixadas gera um cenário mais difícil para manutenção de salários e conquistas para todas as categorias.

Esse cenário é estimulado pela crise e é necessário para a recuperação do capital. E certamente foi um determinante fundamental para o ataque patronal nos Correios.

Ofensiva política e ideológica burguesa

A crise traz a necessidade de uma ofensiva em todas as frentes da burguesia contra os/as trabalhadores/as. Essa ofensiva se faz a partir de ataques diretos dos patrões, mas também através de políticas e reformas pró-capital no âmbito do Estado, assim como no âmbito ideológico – o que temos chamado de programa hegemônico da burguesia

Apesar das dificuldades na aplicação desse programa, por conta de conflitos políticos intra-burgueses, e dos desvios que ele teve que sofrer durante a nova crise e pandemia (por exemplo: ampliação do gasto público, inclusive com assistência social), esse programa tem avançado em vários pontos nos últimos anos. Um exemplo foi a aprovação da última reforma trabalhista, base legal do ataque patronal dos Correios. 

Todo o Estado tem colaborado nessa ofensiva de classe burguesa, que ainda está longe do fim. A justiça do trabalho tem tido um papel fundamental: suas decisões legitimam as reformas e são cada vez mais abertamente patronais, impondo o interesse do capital de forma mais virulenta, com auxílio e aval do STF, como ficou escancarado no caso dos Correios!

Essa ofensiva tem reforçado sua própria ideologia, abertamente conservadora, reacionária. Ideologia avessa a qualquer luta de trabalhadores/as, à esquerda no geral, e que também atinge grandes parcelas da população, inclusive entre os/as dominados/as. Ora, nesse âmbito, não só a maior competição entre trabalhadores/as colabora, mas também o recente histórico de governos oportunistas ditos de esquerda, que abriram as portas para um crescimento de ideologias e forças políticas mais à direita. 

Isso se reverteu, na greve dos Correios, em mais dificuldade em gerar unidade e solidariedade com outras categorias e com as massas no geral. Essas últimas tenderam a achar a greve um movimento corporativista de “privilegiados”, que estavam em situação melhor do que a maioria (na informalidade, com salários de fome ou dependentes de um auxílio temporário, sem condições de realizar greves). E isso, claramente, foi estimulado pelo governo, pela imprensa e todos os grupos de direita. 

Enfraquecimento do movimento e da luta sindical

Todo esse cenário prolongado de crise e ofensiva burguesa encontrou as massas trabalhadoras no Brasil profundamente desarmadas: sem partido revolucionário de massa, sob a direção do reformismo e do oportunismo nos movimentos sindical e popular, reduzido nível de organização… E, até o momento, no geral, tem-se reforçado esse enfraquecimento da luta econômica e política dos/as dominados/as.

Um dos principais indicadores dessa realidade é o número de greves no país. Saímos de um ciclo de greves iniciado nos anos de 2012-2013, que foram paulatinamente se tornando mais defensivas com a chegada da crise, para um forte declínio, sobretudo desde o ano passado


A taxa de sindicalização também vem em queda, sem que organizações autônomas de trabalhadores/as estejam se consolidando e se tornando alternativas reais nos locais de trabalho. Essa taxa tem caído inclusive em categorias tradicionais, como na indústria e na administração pública. Em transporte, armazenagem e correio, a queda foi de cerca de 10% nesse mesmo período do gráfico abaixo.


Ou seja, essa greve dos Correios nadou contra a corrente, com poucas greves ocorrendo simultaneamente, pouca probabilidade de novas estourarem, e com um baixíssimo nível de organização dos/as trabalhadores/as.

Esse enfraquecimento também se dá pela ideologia e linha política majoritária no movimento sindical hoje, incluindo aí as federações dos Correios. Há vários anos predomina hegemonicamente nesse movimento, devido à ausência de uma posição revolucionária de massas, uma concepção reformista e oportunista, que se baseia na ilusão de melhoria sociais contínuas no capitalismo e de um Estado “aberto” às exigências concretas dos/as trabalhadores/as. Essa ideologia desarma a luta dos/as trabalhadores/as ao investir sempre nas soluções negociadas com o patrão e o Estado, na tentativa de “convencer” a burguesia de um utópico desenvolvimento capitalista menos brutal, e ao limitar a luta aos parâmetros estabelecidos institucionalmente, acreditando na mediação das estruturas jurídicas, controlando assim a rebeldia e a disposição de combate das bases, impondo-se sempre como supostos representantes que “fazem a luta” pela massa.

Tal ideologia e linha política são incapazes de fortalecer a luta dos/as trabalhadores/as, sobretudo em nossa conjuntura de crise e ofensiva burguesa. Sem sua superação, o avanço dessa luta está comprometido. Por isso que, após essa análise da situação concreta atual e dos determinantes do ataque aos/às trabalhadores/as dos Correios, precisamos pensar os próximos passos da luta e refletir sobre qual posição deve dirigir o movimento.

Que fazer? Os próximos passos da luta à luz das lições da greve

Vimos que a crise e a ofensiva dos patrões e seu Estado tem se revertido em mais desemprego, menos salário, piores condições de trabalho e de luta para os/as trabalhadores/as do país. Esse foi o duro cenário da greve dos Correios. 

Essa greve foi um enfrentamento objetivo e concreto contra várias facetas dessa crise e ofensiva. E a tentativa de fazer o inimigo recuar, as semanas de mobilização e a virulência da empresa e da justiça certamente deixam lições importantes para a categoria e para toda a classe. 

Quais caminhos seguir depois dessa greve? Abaixo destacamos três: reforçar a luta concreta, aprofundar as relações com as massas, dar passos em direção a um novo instrumento de combate.

Reforçar a luta concreta

Não podemos cair na ideologia jurídica segundo a qual são as leis e as decisões judiciais que garantem “direitos” e conquistas para os/as trabalhadores/as. Na realidade, é a força e a luta concreta dos/as trabalhadores/as, que partindo da base, arrancam tais conquistas. Por isso, não podemos nos afastar um centímetro sequer de onde surge nosso poder: dos locais de trabalho, da união e resistência concreta dos/as trabalhadores/as.

Isso não significa desconsiderar toda disputa no âmbito institucional. Mas sim não ter ilusão com conchavos com os de cima, nenhuma ilusão com as instituições e os políticos. Eles servem para nos explorar, acima de tudo, e não para fazer justiça e defender nossos interesses.

Mas diante do enfraquecimento do movimento sindical, do cenário cada vez mais duro, por onde começar? Precisamos em primeiro lugar enxergar e depois reforçar as lutas concretas nos locais de trabalho. Muitas delas vão além do período da data-base, além das instâncias institucionais do movimento sindical.

Tais “pequenas” lutas e batalhas cotidianas (pela menor intensidade e por um melhor tipo do trabalho, pelo descanso, pelas condições do local de trabalho, contra o assédio e cooptação, contra a aplicação concreta de um ataque via “negociação” ou ordem judicial etc.), que surgem no processo trabalho, são fundamentais para a retomada da organização e consciência dos/as trabalhadores/as, para a reconstrução de sua força e confiança. 

As contradições nos locais de trabalho tendem a continuar e até se agravar nessa conjuntura. Eis um terreno fértil para que uma linha justa tome corpo, crie e reforce organizações mais autônomas dos/as trabalhadores/as, essenciais para combates maiores.

Aprofundar as relações com as massas

Reforçar as lutas concretas e locais, sob uma nova orientação política, significa retomar os princípios comunistas de ouvir as massas para aprender com elas; de efetivamente dar o protagonismo a elas; de fugir do paradigma burguês de fazer política (definir-se como “dirigente”, separar-se das massas, pretender “representá-las”, falar por elas, substituí-las); de identificar quem são nossos amigos e nossos inimigos. 

Esse aprofundar das relações com as massas, para os/as lutadores/as e militantes, deve ser um trabalho sistemático e contínuo e partir das condições e demandas reais, e não das desejáveis por eles. Como dizia Francisco Martins RodriguesNão existe pois nenhuma solução mágica para acelerar o espírito revolucionário da massa operária em períodos de refluxo. Ou nos dispomos a intervir no movimento ao nível em que ele se encontra (e não o que nós desejaríamos), ou perdemos os laços com a massa e incapacitamo-nos para a ação revolucionária.”

Essas relações com as massas, e as lutas concretas às quais nos referimos acima, não podem se limitar a uma “categoria” apenas, ou só à luta sindical no sentido estrito. Nos Correios, por exemplo, a luta concreta envolve os/as companheiros/as terceirizados/as dos locais de trabalho (vigilância, limpeza etc.); envolve também os problemas de moradia dos/as trabalhadores/as, de suas famílias (a justiça tirou até o auxílio a filhos com necessidades especiais!) etc. 

Combatendo dessa forma as divisões entre os/as próprios/as trabalhadores/as, vislumbra-se, a longo prazo, uma unidade de classe. Ora, essa unidade precisa ser profundamente reconstruída, concreta e organicamente. Ela não nasce num passe de mágica, a partir de convocações gerais, descoladas da vida dos/as trabalhadores/as, feita por seus supostos “representantes” de tempos em tempos.

Dar passos em direção a um novo instrumento de combate

Mas, por mais importantes que sejam as lutas econômicas e as resistências concretas contra o capital, estas não afetam diretamente as causas da exploração, não são capazes de por si só suprimirem a dominação da classe burguesa. No máximo, minimizam essa exploração temporária e parcialmente. Além da luta sindical e de seus coletivos e organizações, a história demonstra a necessidade de os/as trabalhadores/as construírem instrumentos políticos próprios e independentes, que consigam atravessar os altos e baixos da conjuntura e acumulem forças para incidir de forma revolucionária na luta de classes.

Como ensinava Lênin“Com efeito, as greves ensinaram gradualmente à classe operária, em todos os países, a lutar contra os governos pelos direitos dos operários e pelos direitos de todo o povo. Como já dissemos, esta luta só pode ser levada a cabo pelo partido operário socialista, através da difusão entre os operários das justas ideias sobre o governo e sobre a causa operária.

No quadro geral de crise e ofensiva burguesa que se desdobra há anos e sem perspectiva de fim, a construção desse instrumento se faz ainda mais urgente, seja para alcançar vitórias parciais, seja para ir construindo, a partir do movimento de massas, o caminho para a emancipação dos trabalhadores e das trabalhadoras, o fim desse calvário capitalista de exploração e opressão.

“Nossos inimigos dizem: A luta terminou.
Mas nós dizemos: ela começou.”

Brecht

*Fonte:  https://cemflores.org/index.php/2020/10/02/licoes-da-greve-nos-correios-para-a-luta-dos-trabalhadores-hoje-no-brasil/

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