Índice de Seções

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

POR QUE É QUE AS CRIANÇAS PALESTINIANAS ATIRAM PEDRAS?

SOBRE A MORTE DE RAYAN SULIMAN E O SEU MEDO DE MONSTROS

28.10.22

 Ramzy Baroud 

Embora as crianças palestinianas desenvolvam a consciência política numa idade muito jovem, muitas vezes a sua ação de protestar contra os militares israelitas, entoando cantos contra soldados invasores ou mesmo atirando pedras não são compelidas pela política, mas por algo totalmente diferente: o seu medo de monstros.

Criança palestina presa por soldado israelense.


As crianças do meu campo de refugiados de Gaza raramente tinham medo de monstros, mas de soldados israelitas. Isto é tudo o que conversávamos antes de ir para a cama. Ao contrário dos monstros imaginários no armário ou debaixo da cama, os soldados israelitas são reais, e eles podem aparecer a qualquer minuto – na porta, no telhado ou, como era frequentemente o caso, mesmo no meio da casa.

A recente trágica morte de um menino de 7 anos, Rayan Suliman, um menino palestiniano da vila de Tuqu, perto de Belém, na Cisjordânia ocupada, despertou muitas memórias. O menino com pele cor de oliva, rosto inocente e olhos brilhantes caiu no chão enquanto era perseguido por soldados israelitas, que o acusaram e aos seus amigos de atirar pedras. Ele caiu inconsciente, o sangue jorrou da sua boca e, apesar dos esforços para reanimá-lo, deixou de respirar.

Este foi o fim abrupto e trágico da vida de Rayan. Todas as coisas que ele poderia ter sido, todas as experiências que ele poderia ter vivido e todo o amor que ele poderia ter transmitido ou recebido, tudo terminou de repente, como o menino deitado de bruços na calçada de uma estrada empoeirada, numa aldeia pobre, sem nunca experimentar um único momento de ser verdadeiramente livre, ou mesmo sentir-se seguro.

Ryan Suleiman


Os adultos muitas vezes projetam a sua compreensão do mundo sobre as crianças. Queremos acreditar que as crianças palestinianas são guerreiras contra a opressão, a injustiça e a ocupação militar. Embora as crianças palestinianas desenvolvam consciência política numa idade muito jovem, muitas vezes a sua ação de protestar contra os militares israelitas, entoando cantos contra soldados invasores ou mesmo atirando pedras, não são compelidas pela política, mas por algo totalmente diferente: o seu medo de monstros.

Essa ligação veio-me à mente quando li os detalhes da experiência angustiante que Rayan e muitas crianças da aldeia suportam diariamente.

Tuqu é uma aldeia palestiniana que, era uma vez, existia numa paisagem incontestável. Em 1957, o colonato ilegal judeu de Tekoa foi estabelecido em terras palestinianas roubadas. O pesadelo tinha começado.

As restrições israelitas às comunidades palestinianas nessa área aumentaram, juntamente com a anexação de terras, as restrições de viagem e o aprofundamento do apartheid. Vários moradores, na sua maioria crianças da aldeia, foram feridos ou mortos por soldados israelitas durante repetidos protestos: os moradores queriam ter a sua vida e a sua liberdade de volta; os soldados queriam garantir a contínua opressão de Tuqu em nome da salvaguarda da segurança de Tekoa. Em 2017, um garoto palestiniano de 17 anos, Hassan Mohammad al-Amour, foi baleado e morto durante um protesto; em 2019, outro, Osama Hajahjeh, ficou gravemente ferido.

As crianças de Tuqu tinham muito a temer, e os seus medos eram todos bem fundamentados. Uma viagem diária para a escola,  que Rayan e muitos dos seus amigos faziam, acentuou esses medos. Para chegar à escola, as crianças tinham de atravessar o arame farpado militar israelita, muitas vezes vigiado por soldados israelitas fortemente armados.

Às vezes, as crianças tentavam evitar o arame farpado para evitar o terrível encontro. Os soldados antecipavam isso. "Tentamos caminhar pelos olivais ao lado do caminho, mas os soldados escondem-se nas árvores apanham-nos lá", disse um menino de 10 anos de Tuqu, Mohammed Sabah, citado num artigo de Sheren Khalel, publicado há anos atrás.

O pesadelo está a acontecer há anos. Rayan experimentou aquela jornada aterrorizante durante mais de um ano, de soldados esperando atrás de arames farpados, criaturas misteriosas escondidas atrás de árvores, mãos a agarrar os pequenos corpos, crianças a gritar pelos seus pais, implorando a Deus e correndo em todas as direções.

Após a morte de Rayan em 29 de setembro, o Departamento de Estado dos EUA, o governo britânico e a União Europeia exigiram uma investigação, como se a razão pela qual o menino sucumbiu aos seus medos paralisantes fosse um mistério, como se o horror da ocupação militar israelita e da violência não fosse uma realidade quotidiana.

A história de Rayan, embora trágica além das palavras, não é única, mas uma repetição de outras histórias vividas por inúmeras crianças palestinianas.

Quando Ahmad Manasra foi atropelado por um carro de um colono israelita, e o seu primo, Hassan, foi morto em 2015, a mídia israelita e os apologistas apagaram as chamas da propaganda alegando que Manasra, de 13 anos na época, era uma representação de algo maior. Israel alegou que Manasra foi baleado por tentar esfaquear um guarda israelita, e que tal ação refletia o ódio palestiniano profundo pelos judeus israelitas, outra prova conveniente da doutrinação de crianças palestinianas pela sua cultura supostamente violenta. Apesar dos ferimentos e da pouca idade, Manasra foi julgado em 2016 e condenado a doze anos de prisão.

Manasra vem da cidade palestiniana de Beit Hanina, perto de Jerusalém. A sua história é, em muitos aspetos, semelhante à de Rayan: uma cidade palestiniana, um colonato judeu ilegal, soldados, colonos armados, limpeza étnica, roubo de terras e monstros reais por toda a parte. Nada disso importava para os tribunais israelitas ou para a mídia corporativa. Em vez disso, eles transformaram um garoto de 13 anos num monstro e usaram a sua imagem como  um cartaz da propaganda do terrorismo palestiniano ensinado numa idade muito jovem.

A verdade é que as crianças palestinianas atiram pedras nos soldados israelitas, nem só por causa do seu ódio, supostamente inerente, aos israelitas, nem como atos puramente políticos. Eles fazem isso porque é sua única maneira de enfrentar os seus próprios medos e   ajustar contas com a sua humilhação diária.

Pouco antes de Rayan conseguir escapar da multidão de soldados israelitas e ser perseguido até a morte, houve uma troca entre o seu pai e os soldados. O pai de Rayan disse à Associated Press que os soldados ameaçaram que, se Rayan não fosse entregue, voltariam à noite para prendê-lo juntamente com os seus irmãos mais velhos, de 8 e 10 anos. Para uma criança palestiniana, um ataque noturno de soldados israelitas é a perspectiva mais aterrorizante. O coração jovem de Rayan não podia suportar esse pensamento. Caiu inconsciente.

Médicos do hospital palestiniano de Beit Jala deram uma explicação médica convincente sobre a razão por que Rayan morreu. Um especialista em pediatria falou sobre o aumento dos níveis de estresse causado pelo "excesso de secreção de adrenalina" e aumento dos batimentos cardíacos, levando a uma paragem cardíaca. Para Rayan, os seus irmãos e muitas crianças palestinianas, a culpa é de outra coisa: os monstros que voltam à noite e aterrorizam as crianças adormecidas.

As chances são de que os irmãos mais velhos de Rayan estejam de volta às ruas de Tuqu, de pedras e fisgas na mão, prontos para enfrentar os seus medos de monstros, mesmo que paguem o preço com as suas próprias vidas.

Edição: Página 1917

Fonte: https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/por-que-e-que-as-criancas-palestinianas-221725


quinta-feira, 27 de outubro de 2022

O Dilema das Jaulas

Ney Nunes

"Antes de aceitarmos a imposição para entrar na jaula do leão ou na do tigre, devemos considerar que apesar desses felinos serem bem diferentes, suas garras e mandíbulas são igualmente poderosas."

 



     Quando a contradição e a desorientação predominam, é natural que os argumentos se tornem rasos. Neste segundo turno eleitoral é justamente isso o que presenciamos e de forma ainda mais intensa do que no primeiro. De forma geral, aqueles que se reivindicam à esquerda do petismo dizem que o prioritário é derrotar o fascista nas urnas para impedir um segundo mandato que aprofundaria o “retrocesso civilizatório”. Diante do horror despertado pelo avanço da extrema direita, apontam que existem apenas dois caminhos possíveis: seguir a reboque da frente ampla social-liberal ou sucumbir ao bolsonarismo.

     Em reforço dessa tese, afirmam que os defensores da abstenção ou do voto nulo colocam um sinal de igual entre Lula e Bolsonaro ao não reconhecer que em muitos aspectos os dois candidatos são diferentes: Lula defende a democracia, Bolsonaro a ditadura; Lula respeita a independência dos poderes, Bolsonaro quer manietar o STF e etc. Mas esquecem, de forma conveniente, de verificar as semelhanças. Elas existem e a principal delas é estratégica, os dois candidatos têm como horizonte político atender aos interesses gerais da classe dominante, servindo como administradores do Estado burguês no âmbito da inserção subalterna do Brasil no sistema imperialista, tendo, inclusive, já fornecido suficientes provas disso durante seus mandatos presidenciais.

     Ao falarem de um “retrocesso civilizatório”, estão, na verdade, defendendo a continuidade dessa sociedade burguesa em tempos de barbárie. Ignoram ou, fingem ignorar, que o bolsonarismo (assim como o nazifascismo na Europa dos anos 1930) é subproduto da barbárie capitalista, nasceu dos escombros de nossas derrotas, do retrocesso da consciência de classe, da desorganização e fragmentação do proletariado nos últimos trinta anos de hegemonia socialdemocrata no movimento de massas aqui no Brasil.

     Está mais do que evidente que a burguesia se apresenta dividida nesse segundo turno eleitoral e essa divisão expressa sua crise diante de um capitalismo agonizante que exige doses cavalares de superexploração. A diferença entre os dois blocos burgueses é quanto a melhor forma de manter a dominação político-ideológica sobre as massas, sobre o grau de coerção e consenso necessários para atingir esse objetivo. Mas o horizonte estratégico é o mesmo, ou seja, manter o país atrelado de forma subalterna ao sistema imperialista mundial, preservando assim os seus lucros bilionários e confinando a imensa maioria dos brasileiros na situação de miséria.

     O desfecho dessa verdadeira guerra de classes não virá do resultado dessas eleições burguesas, as batalhas decisivas ainda estão por vir e inevitavelmente serão cada vez mais violentas face ao avanço da barbárie capitalista. O caminho gradual e pacífico desde sempre foi interditado pela burguesia e o imperialismo, ele segue vigente apenas nos devaneios reformistas daqueles que perderam o referencial da luta de classes. Reconstruir o bloco proletário pelo socialismo, independente da burguesia e preparado para o enfrentamento em todos os terrenos, é a única alternativa para não sermos massacrados nesses futuros combates.

     Antes de aceitarmos a imposição para entrar na jaula do leão ou na do tigre, devemos considerar que apesar desses felinos serem bem diferentes, suas garras e mandíbulas são igualmente poderosas.

 27/10/2022  

Edição: Página 1917     

 

    

    

domingo, 23 de outubro de 2022

Solidariedade com o Novo Partido Comunista da Iugoslávia

Partido Comunista da Grécia (KKE) 


         O KKE condena o ataque descarado de grupos fascistas aos escritórios do Comitê Central do Novo Partido Comunista da Iugoslávia em Belgrado.

     O fato de que pela quinta vez no último ano a sede do Comitê Central do Novo Partido Comunista da Iugoslávia seja alvo de ataques de grupos fascistas, sem que nenhuma ação seja tomada por parte das autoridades, demonstra a tolerância explícita ou mesmo o apoio que estes grupos gozam das autoridades de segurança do país.

     Parece que causa raiva que o Novo Partido Comunista da Iugoslávia atue em defesa dos interesses da classe trabalhadora e de outras camadas populares do país, contra as alianças imperialistas da OTAN e da UE, e destaque o socialismo como a única verdadeira solução alternativa para os trabalhadores.

     O governo sérvio tem grande responsabilidade pelos atos descarados dos criminosos fascistas, pois procedeu à reabilitação de milhares de colaboradores nazistas, uma política apoiada pela UE, que se tornou um porta-bandeira do anticomunismo e da reescrita da História, da difusão da teoria inaceitável dos “dois extremos” e do chamado “totalitarismo”.

     O KKE expressa sua solidariedade com o Novo Partido Comunista da Iugoslávia, a Liga da Juventude Comunista da Iugoslávia (SKOJ).

     Exige que o governo da Sérvia tome imediatamente medidas para a proteção da sede do Comitê Central do Novo Partido Comunista da Iugoslávia e para a prisão e punição de indivíduos fascistas responsáveis ​​pelos ataques aos escritórios do Novo Partido Comunista da Iugoslávia Iugoslávia.

Seção de Relações Internacionais do CC do KKE

20.10.2022

 

 

 

 

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Sobre a resolução – delírio bélico - apoiada por ND - SYRIZA - PASOK no Parlamento Europeu

Nota da Delegação do Partido Comunista da Grécia (KKE) no Parlamento Europeu

17/10/2022

Deputados do KKE no parlamento europeu.

     Numa altura em que a guerra imperialista na Ucrânia se intensifica perigosamente, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução (10/07/2022) que é literalmente um delírio bélico. Entre outras coisas, respalda e congratula-se com a decisão da UE e dos Estados-Membros de "aumentar maciçamente a ajuda militar à Ucrânia", apela à criação de "um mecanismo de concessão de empréstimos para fins militaares à Ucrânia" e pede à coordenação entre governos, bem como a entrega de armas à Ucrânia.

     Os grupos políticos que votaram a favor dizem que tudo isso deve ser acelerado "para ajudar a encurtar a guerra". Suas afirmações são provocativas. Eles tentam ignorar o óbvio, que são precisamente essas coisas que estão exacerbando a guerra, dada a escalada desastrosa causada pela anexação russa dos territórios ucranianos de Kherson, Zaporizhzhya, Luhansk e Donetsk.

     A resolução, aprovada com os votos dos deputados da Nova Democracia, SYRIZA e PASOK, e os perigos que ela acarreta, sublinham as responsabilidades assumidas pelo governo da Nova Democracia com o envolvimento do país nos planos dos EUA e da OTAN, o envio de equipamento militar para a Ucrânia e o uso de bases norteamericanas.

     Além disso, a “esquerda” pró-OTAN do SYRIZA é exposta e até mesmo aplaudida pelos eurodeputados do Nova Democracia. Isso revela a natureza hipócrita das falsas referências do Syriza à "paz mundial" e à presença do Syriza em atos anti-guerra, chamados para "enviar material humanitário, não armas", etc. Além disso, não é a primeira vez. O SYRIZA e os outros partidos do arco euro-atlântico foram irremediavelmente expostos pelo apoio às decisões da OTAN, a recente votação parlamentar para a adesão da Suécia e da Finlândia à OTAN, a implementação literal do plano de estabelecimento de bases EUA-OTAN EUA na Grécia.

     Os eurodeputados do KKE votaram contra a desprezível resolução e salientaram que a escalada da participação na guerra imperialista entre a OTAN e a Rússia será paga, em primeiro lugar, pelos povos da Ucrânia e da Rússia com o seu sangue e destruição, mas também o restante dos países da Europa com a carestia insuportável e pobreza energética, com uma nova corrida armamentista.

     É vital e imperativo que o povo grego, através de sua luta independente, exija o fim imediato do envio de material militar para a Ucrânia, o não envolvimento da Grécia da guerra e nos planos euro-atlânticos que multiplicam os perigos para si e seus filhos . Lutar ao lado do KKE, que desde o início, com responsabilidade e firmeza, o exortou a não escolher entre facções de bandidos e a lutar para não pagar as "contas" da guerra e da nova crise iminente do sistema de exploração, para desempenhar um papel de liderança na luta e colocar em primeiro plano as necessidades dos trabalhadores e do povo.

Edição: Página 1917

Fonte: https://inter.kke.gr/es/articles/Sobre-la-resolucion-delirio-belico-apoyada-por-ND-SYRIZA-PASOK-en-el-Parlamento-Europeo/

 

 

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

A Nova Guerra Total

Marildo Menegat * 



[...] No fim da fase liberal do capitalismo, na passagem do século XIX ao XX, se iniciou uma longa crise, que exigiu um reordenamento da dinâmica desta forma social, em que a insânia da guerra total chegou ao paroxismo da possível e quase realizada autoaniquilação da espécie, como ficou patente na capacidade de produzir a morte em escala inaudita durante a primeira e segunda guerras mundiais. Após essa fase, a reconstrução da marcha vencedora da civilização burguesa obrigou mudanças importantes nos fundamentos da teoria do Estado. A democracia de massas, ao que parece, era de fato a forma política mais estável para a sociedade que havia chegado à produção e ao consumo também de massas.** A legitimação deste Estado sustentada na socialização universal por meio da mercadoria, que a expansão da produção fordista com pleno emprego garantiu, dava a impressão de que o sistema teria encontrado um ponto de equilíbrio perpétuo. A defesa da democracia como valor universal cosolidou este período como um tempo de amnésia da sua força destrutiva encapsulada num duvidoso estágio avançado do progresso. No fim dos anos 1960, no entanto, a política americana - acompanhada pela Europa Ocidental - de "armas , pão e manteiga" passou a sofrer cada vez mais avarias e impossibilidades de prosseguir. A abertura de outra longa fase de crise e esgotamento do sistema, que perdura até hoje, há tempo tem exigido uma nova virada no parafuso da teoria do Estado e nos fundamentos de sua legitimação. As transformações tecnológicas dos processos de produção deste período mandaram para o inferno a quimera do pleno emprego no capitalismo. Nenhum Estado Nacional pelo mundo pôde bancar, desde a metade dos aos 1980, sua legitimação com o apoio das classes subalternas por meio de uma política social de bem-estar. O capitalismo já não consegue encenar o mito de ser uma civilização da inclusão mundializada por meio da imposição do trabalho. O univesalismo adquire sua vedade no inverso, assim como ocorreu com o progresso.

* Professor da UFRJ, autor de: Depois do Fim do Mundo - A crise da modernidade e a barbárie (Relume Dumará); O Olho da Barbárie (Expressão Popular); Estudos sobre Ruínas (Revan); A Crítica do Capitalismo em Tempos de Catástrofe (Consequência).

** Grifos do Editor.

Edição: Página 1917

Fonte: Marildo Menegat; A Crítica do Capitalismo em Tempos de Catástrofe; p. 151; Consequência; 2019.


O Primeiro Turno das Eleições Burguesas de 2022. Lições para a Luta Proletária e Comunista no Brasil

Coletivo Cem Flores 

09/10/2022

 


A partir dos resultados do primeiro turno, buscaremos retirar lições e perspectivas para a luta proletária e comunista no país hoje. Como interpretar os dados de um ponto de vista de classe? Eles modificam a linha a ser adotada pelos/as revolucionários/as na atual conjuntura?

Os números do primeiro turno

     No primeiro turno, dos 156 milhões de eleitores registrados, houve 118 milhões de votos válidos (votos em algum candidato), equivalente a 76%, percentual acima do ocorrido em 2018 (73%), sobretudo pela diminuição pela metade dos votos brancos e nulos. Ou seja, foi uma eleição mais participativa que a anterior. Possivelmente o motivo está na disputa acirrada para a presidência.

     Mesmo assim, os números de abstenção, votos brancos e nulos continuam expressivos. No Rio de Janeiro, por exemplo, a abstenção foi de 23%, já os votos brancos e nulos, 12%. Somando esses percentuais, quase se chega ao número de votos recebidos pelo governador reeleito em primeiro turno, o bolsonarista Cláudio Castro.

     Para a câmara dos deputados, a maior bancada ficou com o partido de Bolsonaro, o PL, que elegeu 99 deputados, ou 19% das cadeiras. Somados aos outros partidos do mesmo campo (PP, Republicanos, Patriota), forma-se o maior bloco da câmara, com 192 deputados, ou 37%, deixando o caminho mais fácil para a reeleição de seu atual presidente, Arthur Lira (PL). O centrão saiu com tamanho similar ao do bloco bolsonarista. Somados, o campo bolsonarista e o centrão representam 75% dos deputados federais. Já a “esquerda” ficou com 125 deputados, ou 24%, sendo mais da metade do PT, que elegeu a segunda maior bancada.

     A eleição para o senado também representou uma vitória para o bolsonarismo. O PL elegeu 8 das 27 cadeiras em disputa, passando a ser, em 2023, a maior bancada também no senado (14 senadores, 17%). O campo bolsonarista somará 23 senadores (28%). O centrão permanecerá dominante, ocupando mais da metade das cadeiras. A “esquerda” foi a de pior desempenho e continua com um bloco pequeno. Somados, o número de senadores do PT, PSB e PDT tem o mesmo tamanho do PL.

     Na eleição para governadores, enquanto o petismo e seus satélites venceram apenas no Nordeste e possuem poucas chances fora da região, bolsonaristas se elegeram no Rio de Janeiro, Paraná, Mato Grosso, Distrito Federal, Tocantins, Acre, Roraima e são considerados favoritos em São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Fora os governadores da “nova” direita (Minas Gerais) e da “velha direita (Goiás), próximos a Bolsonaro. O bolsonarismo pode vir a governar estados com mais da metade da população e os principais centros econômicos do país.

     Quanto à presidência, Lula-Alckmin obtiveram 57 milhões de votos, ou 48% dos votos válidos (37% do total), faltando menos de 1,9 milhão de votos para a vitória no primeiro turno. E pelas pesquisas mais recentes, continuam como favoritos para o segundo turno. Mas o bolsonarismo mostrou desempenho maior que o esperado. Bolsonaro teve 51 milhões de votos, 43% dos votos válidos (33% do total), mostrando avanço de votos significativo nos últimos dias e horas da votação.

A consolidação do bolsonarismo e a falência do eleitoralismo petista para combatê-lo

     Os números do primeiro turno mostram que, apesar da relevante abstenção e quantidade de votos brancos e nulos, a pressão para participar do processo eleitoral sobre as massas trabalhadoras é bastante forte. E se elevou nessas eleições, possivelmente por conta do embate das duas forças políticas burguesas principais hoje no país: o bolsonarismo, a extrema-direita, fascista; e o petismo, a “esquerda” reformista, oportunista e eleitoreira. Ambos chantageiam e pressionam as massas para supostamente combaterem, nas urnas, seu respectivo adversário.

     Diferentemente do que afirmam as ideologias do bolsonarismo e do petismo, nenhuma das duas pode resolver as reais demandas das massas exploradas. Estão lá para iludir e servir aos patrões, cada uma a sua maneira. Por isso mesmo, como em outros momentos, a decisão majoritária da massa pode oscilar, potencialmente elevando o descrédito e a descrença com o processo eleitoral, que não resolve os problemas fundamentais das massas exploradas. Avanços nesses dois pontos dependerão também do trabalho dos/as revolucionários/as, cujo processo político central deve ser a reorganização, o estímulo e a participação nas lutas concretas das massas, denunciando as ilusões com as instituições.

     Os números também mostram que o primeiro turno de 2022 foi mais um passo na consolidação do bolsonarismo enquanto força política e principal representante da direita hoje no país. 

     O segundo turno pode ainda consumar derrotas eleitorais para o bolsonarismo, sobretudo a não reeleição de seu líder maior. No entanto, seu bloco na câmara e no senado, a presença já garantida em vários governos estaduais e a expressiva votação em líderes importantes (4 dos 5 deputados mais votados para a câmara são bolsonaristas) demonstram que a extrema-direita, fascista, do bolsonarismo continuará como presença fundamental nos rumos da gestão do estado capitalista nos próximos anos. Somado à sua força de ruas e de redes, já está dado que sua pauta reacionária continuará em vigor no nível estadual e no congresso: mais “reformas” (sic!), repressão, ataques à educação, conservadorismo, fundamentalismo religioso etc.

     O Brasil segue sendo, assim, um caso exemplar, mas longe de ser o único, de ressurgimento e reforço da extrema-direita, fascista, no mundo. Trump parabenizou o desempenho de Bolsonaro, continuando a apoiá-lo abertamente. Demais movimentos, partidos e governos de extrema-direita pelo mundo, apoiadores do bolsonarismo, agora voltam seus olhos para o segundo turno no Brasil.

     A constatação de que o bolsonarismo se consolidou, com capacidade eleitoral e apoio de massa, foi um balde de água fria na “esquerda” reformista e eleitoreira. A largada na frente no primeiro turno teve gosto de derrota. Vários da militância petista estavam confiantes numa vitória já nesse turno, e num desempenho muito melhor em estados centrais, como São Paulo. Contavam para isso com os resultados das pesquisas de intenções de voto, com sua costumeira subserviência para agradar as classes dominantes e a mídia e com seu caráter pacífico e conciliador (com os poderosos). Erraram redondamente, pois seu adversário político, em ofensiva política nas redes e nas ruas, incluindo aí as grandes manifestações de rua de 7 de setembro, mostrou força eleitoral a ganhar mais votos úteis na reta final.

     Com mais essa eleição, fica ainda mais nítida a falência do eleitoralismo da “esquerda” para derrotar a extrema-direita, o fascismo, o bolsonarismo. Mesmo que vença a presidência, o PT e seus satélites partirão para um governo no qual a força política na ofensiva será o bolsonarismo. Tal força política, que possui seu lado institucional, mas também seu caráter “anti-sistêmico”, só será derrotada pela luta das classes dominadas. As mesmas lutas que o PT e seus aliados se esforçam para desmobilizar há muito tempo. A campanha regada a imobilismo do PT pode até vencer, mas cobrará seu custo em “governabilidade” mais na frente – ou seja, nos recuados acordões petistas com a burguesia –, e não gera a contraposição necessária à radicalidade do bolsonarismo que não parará por si só.

A continuidade da crise política e da ofensiva burguesa

     Mesmo considerando as indefinições do segundo turno, há uma forte tendência para a continuidade da crise política que se arrasta no país há quase uma década. Eis uma perspectiva importante para a luta de classes no Brasil hoje. Essa crise tem acirrado a disputa entre as forças políticas burguesas e setores do estado, ampliado o descontentamento popular contra as instituições e instaurado um quadro de instabilidade quase crônico no sistema político.

     Um dos motores fundamentais dessa crise, e que se alimenta da mesma, é o próprio bolsonarismo, que, mesmo amargando uma eventual derrota para a presidência, permanecerá enquanto força política fundamental. Enganam-se os que piedosamente imaginam o fim das ameaças golpistas e autoritárias, dos riscos de anarquia militar, a dissolução de grupos paramilitares etc. apenas com a possível saída de Bolsonaro da presidência. A campanha eleitoral e o primeiro turno já consolidaram, para o próximo período, uma retaguarda institucional sólida não só para o avanço de suas pautas reacionárias no congresso e estados, como também indicou a existência de um núcleo militante com significativa influência de massa e disposição de luta.

     Os ataques às urnas e a desconfiança com pesquisas e resultados, como se sabe, foi recorrente entre os bolsonaristas, e seria uma imensa ingenuidade achar que uma derrota seria aceita sem alguma resistência política de seu campo. Seu movimento irmão, o trumpismo, está aí como exemplo vivo. A crise política continuará, com ou sem Bolsonaro no Planalto.

Há um ano, já alertávamos que:

ao contrário daqueles que esperam que as eleições subitamente acabem com a crise política, retornando à ‘normalidade’, a chamada ‘polarização’, a existência de uma extrema-direita e de uma direita organizadas e com base social, deve permanecer ainda por muito tempo.”

     Essa crise pode também se agravar e ganhar novos contornos diante da piora do quadro econômico nacional. As atuais projeções para o próximo ano preveem retorno à estagnação econômica no Brasil e desaceleração na economia mundial. As lutas dos/as trabalhadores/as têm vivido uma pequena elevação, sobretudo pela redução da pandemia, diminuição do desemprego e volta da carestia de vida, e podem também se intensificar no próximo período, elevando o descontentamento popular.

     A postura do campo petista, como sempre, aponta para ainda mais recuos e subserviência ao patronato e seus intentos cada vez mais autoritários, não indicando em nada uma perspectiva de luta e combate de fato com o bolsonarismo. Afinal, o foco de seus governos é apenas um: servir da melhor forma possível os patrões.

     Nesse sentido, outra perspectiva para a luta de classes no Brasil é a continuidade da ofensiva burguesa, consolidando ou aperfeiçoando as “reformas” a favor dos patrões feitas até aqui, ou mesmo avançando para novos ataques. Petismo e bolsonarismo, cada um a seu modo, servirá esse propósito, assim como os governadores e a atual configuração do congresso. Caso não intensifiquemos nossas resistências e lutas, é certo que os ataques dos patrões continuarão, que nossas conquistas arrancadas não serão reconquistadas, independente do presidente eleito.

     Os encontros com os patrões deverão continuar na campanha para o segundo turno, para ambas as chapas presidenciais. A disputa será de quem serve mais e melhor ao capital na atual conjuntura. E, para isso, a tendência é que Lula-Alckmin caminhem ainda mais à direita, vendendo-se ainda mais (se é que isso é possível!). Como se não bastasse toda subserviência e sinais para o mercado e os patrões ao longo da campanha do primeiro turno, a começar pelo vice conservador Alckmin, o capital exige mais! Cobram um programa ainda mais “explícito” para apoiar a dupla PT/“PSDB”, acompanhando o apoio de Simone Tebet. Uma nova “carta” de Lula, agora ao agronegócio, já se encontraria em fase final, segundo a Folha de São Paulo. E isso porque a campanha para segundo turno mal começou.

Manter firme a posição de independência de classe no segundo turno

     É um erro, em tal conjuntura, ceder ao canto de sereia do oportunismo e se colocar a serviço de Lula-Alckmin. Essa posição reformista tem sido adotada, como esperado, pelo PCB, PSTU e outros movimentos populares e sindicais, que nos intervalos das eleições prometem ser oposição ao PT (após darem de tudo para elegê-lo!). Esses setores, após anos de reboquismo ao PT, se tornaram rapidamente “Lula lá” depois do primeiro turno. O PCB, por exemplo, nem esperou a apuração terminar, tamanha a pressa em entrar de cabeça na campanha com Lula, Alckmin, Meirelles e cia.

     As justificativas para o já esperado apoio são um show à parte de hipocrisia, enganação e oportunismo. O PSTU afirma que, nos governos do PT, “o aprofundamento dos problemas sociais aliado ao retrocesso na consciência de classe foram combustíveis para o surgimento do bolsonarismo”, e assim mesmo, conclui pelo apoio a Lula-Alckmin. Já o PCB diz que “a profundidade da crise que estamos vivendo não pode ser resolvida buscando-se conciliar os interesses da burguesia com os dos trabalhadores, como propõe a candidatura petista”. Logo… votará no petista e seu companheiro tucano. A dependência às instituições burguesas e ao petismo, no caso do PCB, chega ao absurdo de indicar que “encerrado o primeiro turno das eleições, cessa também a possibilidade de apresentação de um programa proletário independente” (!); “nós precisamos eleger Lula para continuar nossa luta” (!!!). Depois, ainda reclamam quando as massas não os diferenciam dos petistas e demais partidos burgueses.

     O Coletivo Cem Flores segue firme denunciando o engodo eleitoral e o papel nefasto do petismo e seus satélites. E nessa posição se soma a vários grupos e organizações comunistas, pequenos em seu tamanho e influência, mas que apontam para o caminho da revolução. Como diz o Coletivo Veredas, em sua análise do primeiro turno, “a única alternativa real, politicamente viável de derrotar o conservadorismo é a alternativa revolucionária”. E não será possível construí-la se a postergarmos indefinidamente, a cada rodada do jogo eleitoral burguês.

     Aqueles/as que realmente querem combater o bolsonarismo e sua influência nas massas não podem confiar nem referendar uma candidatura como a de Lula-Alckmin. Ela já provou, no primeiro turno mesmo, sua incapacidade de fazer barrar a ofensiva fascista. Além do mais, se não bastassem os 14 anos de governos petistas a serviço do capital, seu programa é um programa das classes dominantes, que em nada serve aos trabalhadores. Cair nesse engodo é nos afastarmos ainda mais da necessária retomada das lutas dos dominados para pôr um basta ao avanço da fascistização e da ofensiva burguesa do Brasil.

     Para sair dessa grave conjuntura, só há um caminho, o da luta de classes do proletariado, o da reorganização da posição proletária e avanço da resistência concreta. As tarefas dos/as comunistas continuam as mesmas, apenas a urgência e a necessidade delas são reforçadas diante a consolidação do bolsonarismo: levantar a bandeira do marxismo-leninismo, aprofundar nossa inserção nas massas, reconstruir o verdadeiro partido de luta do proletariado, o Partido Comunista, e apontar o caminho da revolução proletária e da construção do socialismo, única solução à podridão capitalista em que vivemos.

Edição: Página 1917

Fonte: https://cemflores.org/

 


 

Caro leitor, ajude a divulgar o Página 1917, compartilhe nossas publicações nas suas redes sociais.