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segunda-feira, 29 de julho de 2019

Afinal Kautsky tinha razão?


Francisco Martins Rodrigues

Política Operária nº 41 Set-Out 1993



Concluir, como temos feito nesta série de artigos, que a revolução russa estava perdida desde que ficou isolada e que a passagem ao socialismo era materialmente impossível, fosse qual fosse a política adoptada, não é afinal dar a mão à palmatória a Kautsky e romper com Lenine? A interrogação tem-nos sido colocada por alguns leitores, que ainda não esqueceram como as pesquisas do “falecido” J. C. Espada acabaram na rendição à lógica de Kautsky.

Digamos desde já que não vemos nenhum motivo para rever o qualificativo de “renegado” com que Lenine distinguiu o papa do marxismo. Kautsky condenou a “louca aventura” da tomada do poder pelos bolcheviques para sonegar o facto de que eles foram os únicos dispostos a satisfazer as reivindicações de paz e terra do povo trabalhador, frustradas pelo governo “socialista democrático”; culpou Lenine por “acelerar a revolução a todo o vapor”, como se não soubesse que ela era obrigada a radicalizar-se sob o assalto da burguesia interna e internacional; censurou professoralmente a esperança dos bolcheviques na revolução europeia como uma “quimera absurda” e, para melhor provar o seu ponto de vista, ajudou a sufocar o levantamento revolucionário na Alemanha.

Fama Merecida

Desmoronar o império mais reaccionário do planeta, retirar a Rússia da guerra imperialista, arrancar cem milhões de camponeses à servidão, introduzir legislação de vanguarda sobre os direitos da mulher, da criança, dos povos subjugados, proclamar como primeiro princípio que “quem não trabalha não come” e sobretudo ensaiar uma nova forma de governo pelos conselhos de trabalhadores – toda esta gigantesca vassourada revolucionária que iria marcar o nosso século não convenceu Kautsky.

Forçado a celebrar em princípio a revolução como um “acontecimento colossal e glorioso para o proletariado”, condenou-a na prática ao atribuir as suas realizações ao “voluntarismo delirante” dos comunistas. Usou o estratagema tradicional que permite aos renegados cobrirem com divergências teóricas a sua mudança de campo. Ele merece pois plenamente a homenagem de João Espada, que o saúda como “o primeiro grande anticomunista da esquerda europeia”, o primeiro a “denunciar os bolcheviques como burocratas cruéis e sem imaginação que mergulhariam a Rússia numa nova idade das trevas”.

Como alternativa à revolução, Kautsky defendia, com argumentos hoje clássicos pela sua obtusidade reformista, a possibilidade de “impor” à burguesia a passagem pacífica ao socialismo. “O capitalismo necessita, para assegurar a sua prosperidade, de basear-se em relações sociais de legalidade”, pelo que a revolução social do proletariado “poderá ser levada a cabo por meios económicos pacíficos, legais e morais, em vez da força física, em todos os lugares onde a democracia vigore”, pois “seria muito difícil aos capitalistas suprimir pela força essa democracia”. Na Inglaterra, por exemplo, o proletariado teria conseguido, durante a guerra mundial, “uma considerável extensão do poder político” (!); este “poder crescente do proletariado ganha o respeito da burguesia que procura mantê-lo bem disposto por meio de concessões”; porque, nos países avançados, “os hábitos democráticos estão enraizados” e o povo está “habituado ao autogoverno no seu dia-a-dia”…

Desde que estas tolices foram escritas, já tivemos dúzias de oportunidades para ver a quem servem. Kautsky, o catedrático em marxismo, esqueceu, apenas, 1º) que as concessões democráticas nas metrópoles do imperialismo têm a sua contrapartida na escravização dos povos periféricos; 2º) que, à medida que o capitalismo reúne as premissas económicas para o socialismo, mais irredutível e convulsiva se torna a oposição da burguesia a ser expulsa do seu paraíso privado, mais oca, corrupta e sangrenta se torna a sua democracia.

Igualmente absurdas e reaccionárias foram as inovações teóricas de Kautsky quanto ao imperialismo. Em 1915, em plena guerra mundial, ele deduzia do entrelaçamento internacional entre os diversos grupos financeiros que o capitalismo estaria a entrar na fase do ultra-imperialismo, “uma política nova que substituiria a luta entre os capitais financeiros nacionais pela exploração do universo em comum pelo capital financeiro unido à escala internacional”, o que poderia trazer ao proletariado, “durante algum tempo, uma era de novas esperanças e novas expectativas no quadro do capitalismo”. Temos debaixo dos olhos essas “novas esperanças” kautskianas…

Porquê então ocuparmo-nos das opiniões de Kautsky acerca da revolução russa? Porque o recente desenlace do “socialismo real” parece dar razão, a tantos anos de distância, à sua acusação de que os bolcheviques tentavam “forçar a marcha da história” e conduziam o povo russo para uma grande catástrofe. Daí a pergunta: não será que, afinal, ao condenar a iniciativa bolchevique, Kautsky demonstrava falta de sentimento revolucionário mas uma perspicácia marxista que teria faltado a Lenine?

Profecias Cilindradas

A tomada do poder pelos conselhos de operários, camponeses e soldados só seria justificável num processo de passagem ao socialismo, argumentava Kautsky. Ora, “o atraso geral da Rússia torna impossível a realização de objectivos socialistas”. “Proletária pelas suas forças motrizes, a revolução russa é burguesa pelo seu conteúdo social”. “O que está em curso na Rússia é a última das revoluções burguesas, não a primeira revolução socialista”. Mesmo que o governo soviético destruísse periodicamente a propriedade capitalista e transformasse burgueses em proletários, o capitalismo voltaria a crescer. Por isso, os bolcheviques viriam a encontrar-se entalados numa alternativa catastrófica: ou manter-se fiéis ao seu programa, e nesse caso seriam derrubados, “ou, para se manter no poder, renegar o seu programa e tornar-se agentes de um processo histórico radicalmente estranho aos ideais socialistas”.

Kautsky deduzia esta inviabilidade do enorme peso do campesinato. A colaboração dos camponeses tornara possível a vitória da revolução na Rússia mas também lhe marcava os limites pequeno-burgueses. A simpatia dos camponeses pela revolução e pelo proletariado evaporava-se assim que obtivessem a propriedade da terra. Eles estavam contra o regresso do regime senhorial mas não mais do que isso. O seu interesse era em preços de venda vantajosos e, para os conseguir, estariam dispostos a tudo. Kautsky predizia assim que a revolução dos sovietes, parto prematuro, acabaria num aborto.

Poucos anos passados, era geral a opinião de que o poder bolchevique varrera as deduções teóricas de Kautsky. Apenas recomposta da catástrofe da guerra civil e da intervenção imperialista, a URSS lançou-se com Staline numa colossal “segunda revolução”, que fez brotar do solo, em período recorde, uma grande indústria moderna estatizada e uma agricultura mecanizada. Foi proclamada a extinção da burguesia e a entrada no socialismo. A URSS orgulhava-se de ser a primeira formação social da história a só conhecer classes aliadas – operários, camponeses cooperantes e intelectualidade popular.

Nos anos cinquenta, com a URSS a disputar já aos EUA o lugar de maior potência económica e militar, enquanto na China e numa série de outros países, triunfavam as “democracias populares”, parecia fora de dúvida que o milagre russo da passagem de um país atrasado ao socialismo se tornava lei geral. Mesmo os que nas últimas décadas vinham denunciando a natureza burguesa das instituições da URSS, como era o nosso caso, atribuíam-na a desvios ou traições, ocorridos numa ou noutra etapa da “edificação socialista”; o carácter socialista da revolução de Outubro parecia indiscutível. Kautsky estava esquecido como um teórico falido.

O "Primado da Luta de Classes"

Agora torna-se forçoso reconhecer que o salto da URSS para o socialismo, voando praticamente por cima da etapa capitalista, não passou de uma ilusão. Na URSS, tal como na China ou no Vietname, passados os primeiros anos de conquistas populares e de limpeza revolucionária das sobrevivências da velha sociedade, a natureza capitalista das novas relações sociais começou lentamente a emergir da máscara pseudo-socialista.

Alegavam todas as escolas “leninistas” que o facto de na URSS não haver propriedade privada, nem concorrência, nem produção para o lucro máximo, e de os gestores se terem de conformar às directivas do plano eram características mais do que suficientes para arredar como absurda a existência de capitalismo, sob qualquer forma. Não tinham em conta que o capitalismo emergente duma revolução proletária-camponesa num país atrasado deveria apresentar forçosamente deformações originais e temporárias, que a marcha da economia se encarregaria de limar, como efectivamente aconteceu.

Entrincheirados na “constatação indiscutível” do não-capitalismo da URSS, afastaram-se mais e mais do leninismo, envolvendo a noção de ditadura do proletariado em brumas místicas para não ter que reconhecer que o proletariado era também na URSS uma classe subjugada e explorada. E à medida que crescia a pressão da nova burguesia, a picar a casca do casulo estatal, mais evidente se tornava a indigência da teoria da passagem de sociedades camponesas ao socialismo. Para além da glorificação do génio de Lenine, da vontade férrea de Staline, ou da sabedoria do presidente Mao, a fundamentação que se encontrava para este milagre consistia basicamente em variações sobre a ideia de Marx de uma “revolução ininterrupta” na Alemanha, interpretada como uma espécie de aceleração mágica da história graças à reeducação das classes promovida sob a tutela do partido comunista.

Escreveram-se montes de tratados apresentando o leninismo como a prioridade aos “factores subjectivos que podem compensar a falta de maturidade das premissas económicas objectivas”; como a “primazia da política em relação à economia”, a “ruptura com a teoria oportunista e economicista que pretendia estabelecer um laço automático e absoluto entre o nível de desenvolvimento das forças produtivas num país e o carácter de classe da revolução”.

Mais tarde, na China Popular, e sob uma linguagem mais radicalizada, recorreu-se também ao “primado da luta de classes” e ao “factor ideológico” para teorizar a possibilidade de edificação do socialismo numa sociedade de escassez, rural e pré-capitalista. BetteIheim foi talvez quem mais longe levou este ponto de vista, na sua conhecida polémica com Sweezy.

Com o distanciamento que nos permite hoje o naufrágio do “socialismo real”, vemos que se tinha enveredado, em nome da crítica ao evolucionismo reformista de Kautsky, por uma deturpação idealista do marxismo: julgar possível a edificação do socialismo antes de a abundância de bens materiais possibilitar a supressão das relações capitalistas e das classes exploradoras e criar a base social para uma real democracia socialista.

A emergência do socialismo, na Rússia como em qualquer outra sociedade, só pode ser fruto de uma prévia explosão das forças produtivas promovida pelo capitalismo. Como escreveu Marx num texto célebre, “uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprio seio da velha sociedade”.

Naturalmente, o marxismo não pressupõe que o socialismo só deva chegar tranquilamente quando para isso estiverem reunidas todas as condições, como querem os reformistas. Atribui uma importância decisiva ao motor da luta de classes; mas não diz que a luta de classes possa fazer transpor milagrosamente épocas, históricas inteiras, por obra e graça da “consciência ideológica’. Admite que revoluções socialistas irão eclodir em vagas sucessivas e em vastas regiões, à medida que a decomposição do sistema capitalista for criando elos fracos vulneráveis; mas não prevê a possibilidade de um salto para o socialismo em sociedades que apenas iniciam a transição de modos de produção pré-capitalistas ao capitalismo, como era o caso da Rússia e mais ainda os da China e do Vietname.

A "Impaciência" de Lenine



Não falta hoje quem conclua de tudo isto que a história deu razão a Kautsky e castigou a “impaciência blanquista” com que Lenine teria tentado avançar a todo o preço para o socialismo.

“Esquecendo Marx – escreveu Kautsky – os bolcheviques quiseram ultrapassar por meio de saltos audaciosos os obstáculos postos pelo desenvolvimento normal. O que conseguiram foi um parto prematuro, que deu um aborto” (The Dictatorship of the Proletariat, pp. 98-99).

O actual mergulho da Rússia no capitalismo selvagem seria a correcção do “avanço forçado” de há 75 anos.

Mas há aqui um velho equívoco. Ao contrário do que depois lhe fizeram dizer os seus seguidores, apostados em criar a lenda da Grande Revolução Socialista de Outubro, Lenine considerava óbvio o carácter não-socialista da revolução russa. Só na condição de virem em seu socorro revoluções proletárias na Europa via a esperança de o poder soviético se manter e dar posteriormente o salto para o socialismo. É nesse contexto de uma revolução europeia, julgada iminente, que se encontram todas as suas referências à edificação do socialismo.

Nas Teses de Abril, tantas vezes citadas depois como pedra angular do seu alegado “plano socialista”, ele precisava que as transformações revolucionárias a adoptar “não significam de modo algum a ‘implantação’ do socialismo”… No ano anterior, acentuara que “o socialismo será realizado pela acção unida dos proletários… de uma minoria de países que tenham atingido o estádio do capitalismo desenvolvido”; o caso da Rússia era diferente, pois que “caminha para a revolução democrático-burguesa’’ (22, 145).

E nos conturbados anos que se seguiram à tomada do poder, insistiu uma e outra vez em que “o socialismo é impossível sem a técnica do grande capital”. A aliança do proletariado com o conjunto do campesinato “determina o carácter burguês da revolução, porque o campesinato se compõe de pequenos produtores empenhados na produção mercantil” (28, 305). A tarefa do novo poder, explicava, consistia em criar um “regime de transição” capaz de “resistir até à vitória do socialismo nos países mais avançados”, porque “não somos suficientemente civilizados para passar directamente ao socialismo”.

Não era fácil manter esta opinião em 1918-20, quando o regime, sob o assalto da burguesia interna e internacional, era forçado a suspender o funcionamento regular da economia e a instituir um programa de emergência, o “comunismo de guerra”. Lenine foi contudo, de todos os dirigentes bolcheviques, o que menos se deixou iludir pela radicalização dos acontecimentos, o que lhe mereceu aliás não poucas críticas (de Trotsky, entre outros) de estar preso a preconceitos etapistas.

Apenas uma vez terá Lenine cedido à miragem de uma superação dos limites burgueses da revolução. No Verão de 1918, e precisamente em polémica com Kautsky, Lenine opinou pela primeira vez que a revolução mudara de carácter. Realizada a “revolução burguesa” com o triunfo dos bolcheviques, “o proletariado da Rússia passou definitivamente à revolução socialista quando conseguiu cindir o campo, ganhando para o seu lado os camponeses proletários e semiproletários”. E especificava: “Primeiro, de braço dado com todos os camponeses contra a monarquia, contra os proprietários, contra o feudalismo (e por isso, a revolução permanece burguesa, democrático-burguesa). Depois, de braço dado com os camponeses pobres, o semiproletariado, com todos os explorados, contra o capitalismo, incluindo os ricaços do campo, os kulaks e os especuladores, e por isso, a revolução transforma-se em socialista” (28, 310).

Este quadro dum brusco salto da revolução burguesa para a revolução socialista por efeito da luta de classes no campo não era compatível com o que Lenine vinha defendendo quanto à ausência de condições materiais e sociais para o socialismo. A extensão da luta de classes aos campos, entre pobres e kulaks (a qual, de resto, teve que ser moderada pouco depois, face à catástrofe da fome e da guerra civil) não podia, por si só, superar a etapa de acumulação capitalista.

A tese poderia resultar da súbita radicalização assumida pela luta de classes no Verão de 1918 mas não deixava de ser vulnerável às objecções teóricas de Kautsky e dos mencheviques. Visivelmente, Lenine ter-se-á apercebido disso e não voltou a insistir nela. Pelo contrário, esforçou-se por delinear as características originais da transição capitalista que a revolução era forçada a cumprir.

Em busca duma passagem

O que opôs verdadeiramente Lenine a Kautsky foi a questão de saber se o proletariado podia e devia tomar à sua conta a revolução democrática, uma vez que a burguesia se mostrava incapaz de a fazer. Esta é a verdadeira questão-chave que se oculta por detrás das censuras ainda hoje feitas ao “voluntarismo” de Lenine. A democracia pequeno-burguesa vê sempre como “extemporânea” e “contraproducente” a intervenção autónoma dos assalariados na luta política. Mesmo quando, como foi o caso da Rússia, só eles se mostram capazes de fazer a tarefa que, em princípio, caberia à burguesia.

Estruturalmente incapaz de levar até ao fim a sua própria revolução contra o antigo regime, mas sem poder adiá-la mais devido aos desastres da primeira guerra mundial, a burguesia russa viu-se arrastada para uma República que temia mais do que desejava. Durante oito meses, à força de entrar em compromisso com a reacção e de seguir as directivas de guerra do imperialismo anglo-francês, empurrou literalmente os operários e os camponeses para a cabeça da revolução – o que já fizera, aliás, em 1905.

Essa foi a origem da singularidade de um país atrasado cair sob o governo dos conselhos de operários, camponeses e soldados. A anomalia estava na incapacidade da burguesia, não na “impaciência” dos bolcheviques, que se limitaram a dar expressão racional aos interesses da classe operária no vazio de poder criado. As censuras de Kautsky à “insensata ambição de poder” de Lenine eram a imagem invertida em que à burguesia se apresentava a sua própria impotência para promover um regime capitalista estável.

Perante esta situação invulgar, a estratégia do partido bolchevique guiou-se por quatro ideias-chave, a que as obras de Lenine voltam constantemente:

1 - se o antigo regime se afunda numa crise revolucionária e a burguesia é incapaz de fazer a sua revolução, o proletariado não pode ficar de mãos amarradas com o argumento de que “ainda não é a nossa vez”;
2 - para ter êxito, o proletariado deve isolar a burguesia liberal, incapaz e cobarde, e libertar a revolta da pequena burguesia camponesa oprimida, seu único aliado seguro neste caso;
3 - uma vez tomado o poder, e tendo em conta o atraso do país, o proletariado não pode dar um salto para o socialismo; mas pode abreviar a etapa capitalista, atravessando-a à sua maneira, revolucionária, em aliança com os camponeses e mantendo o capitalismo sob controlo estatal;
4 - a termo, o êxito desta difícil travessia depende da vitória da revolução socialista num ou em vários países avançados, que reboquem a revolução russa.

Foi este plano de trabalho que permitiu a Lenine dar provas de uma audácia extrema quanto à possibilidade da tomada do poder pelo proletariado, sem se afastar de um severo realismo quanto aos limites objectivos da revolução. Ele teve que lutar, primeiro contra a timidez (inclusive nas fileiras bolcheviques) quanto à possibilidade de tomar o poder; e depois contra as fantasias anarquistas de dissolução do Estado e de estabelecimento do comunismo igualitário. A única solução viável era o capitalismo de Estado; desde que mantido sob o controlo da ditadura do proletariado, permitiria acumular forças e ganhar tempo até chegar o apoio da revolução europeia.

Se os bolcheviques tivessem seguido a lógica de Martov e Kautsky – “a Rússia não está madura para o socialismo, logo, não há condições para o poder soviético” – a saída mais provável para a crise social de 1917 teria sido um conluio entre a nobreza latifundiária e a ala direita da burguesia, com custos muito mais pesados para o povo russo e para os povos subjugados do Império (e para os povos de todo o mundo, que teriam defrontado a presença de mais uma potência reaccionária na cena internacional).

O partido bolchevique enveredou assim, sob a direcção de Lenine, pelo único caminho que lhe restava: tentar manter sob controlo do proletariado o processo de acumulação capitalista, acelerando-o e preparando a transição para o socialismo.

Combate Perdido

Lenine e os bolcheviques perderam a aposta. Na prática, verificou-se que a dualidade do regime – uma economia capitalista controlada pela ditadura do proletariado – era insustentável, pelo menos nas condições da Rússia de então. A reorganização económica em capitalismo de Estado progrediu em paralelo com a decomposição do poder dos sovietes (já agonizante depois da prova da guerra civil).

Poderia ter-se evitado este desenlace? As acusações ainda hoje repetidas, na esteira dos anarquistas e comunistas de “esquerda” da época, de que Lenine tinha uma concepção “estatista” do socialismo, fazem figura de revolucionárias à custa de esquecer a situação real.

Com a classe operária reduzida a um milhão, num oceano de cem milhões de camponeses, cujos interesses se opunham a tudo o que fosse para além da economia mercantil, com a economia paralisada e o país mergulhado no caos e morrendo à fome, não havia outra alternativa ao triunfo da contra-revolução senão o reforço do poder central. Por estar consciente dessa inevitabilidade, Lenine defendia sem rodeios o conteúdo capitalista da NEP, com o seu cortejo de concessões à burguesia interna e até tentativas de aliciamento do capitalismo estrangeiro. E não receou travar uma luta encarniçada em defesa de medidas tão abertamente burguesas como a atribuição de uma autoridade “ditatorial” dos directores de empresa, o suborno dos técnicos com altos salários e regalias, a adopção de medidas para elevar a produtividade e a disciplina dos operários, inclusive pelo recurso ao taylorismo, a limitação dos poderes dos sindicatos…

 Mas que esperança restava, nesse caso, para o objectivo revolucionário? Lenine deu a única resposta possível, em tal situação: o socialismo acabaria por triunfar, para lá do “purgatório” do capitalismo de Estado, desde que se mantivesse a disciplina e espírito de organização do proletariado, do seu aparelho de Estado e do seu partido. Até ao fim, manteve essa convicção de que a Rússia dispunha das “premissas políticas” para retomar o caminho revolucionário. (Março de 1923).

Só que, justamente, essas premissas políticas – a ditadura do proletariado, o poder dos sovietes, a democracia dos produtores – estavam reduzidas a uma existência fictícia. O próprio Lenine o reconhecia indirectamente ao admitir que “a classe operária desapareceu que a burocracia, de que a princípio prometera “não deixar pedra sobre pedra”, se tornava num cancro incontrolável porque não havia outra forma de governar; que o poder dos conselhos era na prática apropriado pelo partido comunista; por último, que, com a crise de Cronstadt, a democracia se tornava “uma palavra-de-ordem da contra-revolução”, o que equivalia a uma constatação de falência da revolução.

Nesta situação desesperada, Lenine evoluiu para uma concepção que só podemos considerar como estranha ao marxismo – a ditadura do proletariado persistia, mesmo não havendo a democracia dos produtores, desde que se mantivesse a ditadura da “vanguarda do proletariado”, a qual por sua vez se exprimia pelo poder do partido, rigidamente organizado em torno da direcção. É incontestável que isto era a porta aberta ao que veio depois.

Por isso, os “últimos combates” de Lenine, durante a sua doença, contra a burocratização do Estado e do partido, pela revolução cultural, pela cooperação na agricultura, pelo direito das nacionalidades, mais tarde apresentados como prova de que ele desejava para a URSS um rumo muito diferente da autocracia de Staline, não têm o alcance que se lhes pretendeu dar. Esses esforços desesperados de rectificação estavam na realidade condenados à derrota, por muito justos que fossem; entravam já no campo da utopia – porque denominavam como “ditadura do proletariado” um regime em que a classe operária já estava irremediavelmente arredada do poder. A partir daí todas as batalhas estavam perdidas.

Foi com este crepúsculo contraditório do pensamento de Lenine, em que a defesa dos interesses do proletariado contra a burguesia se entrelaçava já com a defesa do capitalismo de Estado contra o proletariado, que a escola stalinista compôs o pseudoleninismo de consumo que seria divulgado durante decénios através de todo o mundo como “o marxismo da nossa época”: o mito de uma revolução socialista, de uma ditadura do proletariado e de um poder soviético realizados através do regime de monopólio estatal sob o governo do partido único escorado na polícia política.

A Ditadura Bolchevique

Insistem os críticos de Lenine que esta evolução não foi casual porque ele sempre concebera o socialismo como uma organização de tipo militar e que só defendeu o autogoverno das massas em O Estado e a Revolução como manobra táctica para ganhar as simpatias dos operários às vésperas da revolução; que só por duplicidade envolveu a tomada do poder sob a cobertura do congresso dos sovietes; etc. O conteúdo ditatorial do bolchevismo, acusava Kautsky, ter-se-ia revelado plenamente no derrubamento violento do governo democrático, na dissolução da Assembleia Constituinte, na perseguição aos partidos da “democracia socialista”, no terror da Tcheka. Lenine entendia a “ditadura do proletariado”, expressão que Marx usara apenas no sentido do papel social dirigente dos assalariados, como um governo autoritário.

O velho Kautsky ficaria feliz se voltasse a este mundo. Hoje, praticamente toda a gente aderiu à sua condenação do “golpe bolchevique contra a democracia”. Até Charles Bettelheim, durante muitos anos defensor acérrimo do leninismo, acabou por descobrir (no tomo III das Lutas de Classes na URSS) que a tomada do poder pelos bolcheviques “interrompeu brutalmente” algo de “radicalmente novo” que fora trazido pela revolução de Fevereiro – uma democracia amplíssima, que permitia a coexistência de diferentes partidos, de um governo, de sovietes, etc. Tudo isso se teria perdido pelo facto do partido bolchevique ter pretendido “encarnar o povo e fazer a história”, ter-se arrogado a capacidade de guiar o país, ter conferido a si próprio uma “legitimidade proletária” que lhe seria consubstanciai e o autorizaria a fazer a “revolução por cima” (III, 22 e segs.).

Mas tudo isto é pacotilha social-democrata. Bettelheim acabou por derrapar da crítica marxista ao capitalismo de Estado para a crítica burguesa da revolução proletária. Foi ao encontro duma das mistificações preferidas da burguesia – a revolução russa usada como “prova” de que se tem que escolher entre democracia capitalista, por muito imperfeita que seja, ou “ditadura totalitária comunista”.

Acusar Lenine de tendências ditatoriais sobre o proletariado é ridículo. Ele defendia que as medidas revolucionárias “não podem ser aplicadas sem organizar a gestão democrática por todo o povo dos meios de produção arrancados à burguesia, sem fazer participar toda a massa dos trabalhadores – proletários, semiproletários e pequenos camponeses – na organização democrática das suas fileiras, das suas forças, da sua participação no Estado”; já defendera, quando a revolução ainda não estava à vista, a inevitabilidade do “desenvolvimento integral da democracia, isto é, a participação de facto igual e universal de toda a massa da população em todos os assuntos do Estado e em todas as questões complexas da liquidação do capitalismo”. (23, 23-24).

O que a crítica burguesa não perdoa a Lenine é a nitidez com que demonstrou que só no decurso da destruição revolucionária da ordem burguesa conseguem os produtores assalariados, não apenas desmantelar os aparelhos de repressão e condicionamento ideológico que os subjugam, mas também educar-se para a democracia socialista e a autogestão – a ditadura do proletariado. E também ter provado que o êxito dessa obra de destruição criadora depende da centralização democrática do partido da revolução, capaz de lhe dar coerência, unificação, ampliação. A condução bolchevique da revolução em 1917-18 permanece como um modelo para o movimento operário.

Ao condenar a dissolução da Assembleia Constituinte e a repressão sobre os partidos pequeno-burgueses passados para o campo da contra-revolução, Kautsky batia-se contra a hipótese de instituir a ditadura do proletariado. E quando assegurava que o verdadeiro socialismo na Europa civilizada seria muito diferente do “desprezo bolchevique pela democracia”, reflexo duma “etapa primitiva do movimento operário”, ele simplesmente condenava as medidas de autodefesa da revolução e branqueava a burguesia. O seu ideal de “democracia socialista” não ia além do horizonte da democracia parlamentar a que estava habituado, com operários e capitalistas convivendo “civilizadamente” porque os primeiros respeitavam religiosamente os “direitos democráticos” dos segundos…

A Revolução Abortada

É verdade que a revolução se debateu desde os primeiros dias com um problema crucial, mas não por excessos repressivos. O dilema era: como garantir que a repressão da Tcheka sobre os contra-revolucionários não interferiria com a genuinidade democrática do governo dos conselhos? como combinar as decisões centralizadas em matéria militar e económica com o alargamento da democracia? como assegurar que a direcção política do partido comunista, confirmada pela revolução, seria exercida no âmbito do tratamento igual a todos os partidos que respeitassem a nova legalidade soviética? como avançar ininterruptamente no caminho do autogoverno diário dos trabalhadores? Numa palavra: como poderiam os bolcheviques ter conseguido que a repressão da contra-revolução reforçasse e não enfraquecesse a ditadura do proletariado?

Ora, a solução desse problema não estava ao alcance dos bolcheviques, porque era simplesmente impossível nas condições sociais do país. O proletariado, forçado a tomar a cabeça da revolução, não tinha força para exercer a ditadura. O estrangulamento da revolução russa não pode pois ser atribuído nem à audácia da tomada do poder nem à energia das suas medidas para desmantelar a ordem burguesa, mas sim à falta de base social para consolidar essas medidas. Aos bolcheviques só restava tentar desempenhar, num esforço sobre humano, esse papel, esperando que a revolução europeia viesse em socorro da Rússia. Como isso não aconteceu, o abortar do poder soviético tornou-se inevitável. Cada medida repressiva contra a burguesia, em vez de consolidar a democracia dos trabalhadores, era também um golpe no proletariado, porque reforçava o poderio de um aparelho estatal que lhe era estranho e ajudava a ascensão de uma nova classe exploradora, administradora do capitalismo de Estado.

Vitorioso no plano político, o proletariado não podia libertar-se da sua condição de servidor do processo de acumulação do capital; expropriada, a burguesia obteve a sua desforra através da camada burocrática que assumiu a direcção do processo. E isto significa, muito precisamente, que a revolução se recusava a passar além da etapa burguesa que a história lhe destinava, por muito que a classe operária e a sua direcção comunista o tentassem.

Aconteceu assim o que Kautsky previra: a revolução russa não conseguiu transpor os seus limites económico-sociais, e os bolcheviques, para não ser derrubados, acabaram por “renegar o seu programa e tornar-se agentes de um processo histórico radicalmente estranho aos ideais socialistas”. Mas só o académico Kautsky se lembraria de condenar os comunistas por procurarem uma solução positiva para o desafio posto pela história.

Do mesmo modo, só sucessores de Kautsky podem hoje, como Bettelheim, desvalorizar o imenso valor histórico de Outubro de 1917 sob a alegação de que o poder que se autodenominava como uma ditadura do proletariado era, na realidade, “uma ditadura em nome do proletariado e que acaba por se exercer sobre a própria classe operária”, “uma ‘revolução capitalista’, que acabou por conduzir a uma expropriação radical dos produtores directos” (III, 23-24). Se isso efectivamente veio a ser assim, ninguém à partida poderia assegurar que não se abriria um caminho de saída para o poder dos sovietes, nomeadamente através da revolução na Europa.

Culpar Lenine e o bolchevismo por a revolução ter refluído após as conquistas iniciais e se ter congelado na etapa burguesa é, de facto, contestar o direito do proletariado a procurar a via do socialismo, que só pode ser encontrada por aproximações e experiências fracassadas.

Os Comunistas na Vanguarda do Século

A originalidade deste século, que leva o senso comum a constatar a “falência do socialismo”, pode resumir-se nisto: como o imperialismo em expansão bloqueou nos países dependentes a repetição de revoluções burguesas clássicas, a decomposição do antigo regime nesses países teve que abrir caminho por vias novas. Irromperam revoluções populares conduzidas por um proletariado com aspirações socialistas mas que não podiam ultrapassar os marcos do capitalismo em que essas sociedades mal tinham entrada.’O resultado foram os regimes de capitalismo de Estado que, na Rússia, China, etc., percorreram, a marchas forçadas, a distância abismal que separava essas sociedades da civilização moderna, fizeram transpor a um quarto da humanidade o estrangulamento das forças produtivas a que parecia condenada e ainda impeliram poderosamente o movimento nacional anti-imperialista por todo o mundo, pondo o imperialismo na defensiva.

Mas foi apenas disso que se tratou. A “formação do campo socialista” que julgámos presenciar foi imaginária. A sequência dos acontecimentos nesses países, tão semelhante que se manifesta como uma lei histórica, mostrou que as expectativas de que a revolução socialista pudesse ser engrenada sem interrupção na revolução burguesa eram infundadas. A economia acabou por levar a melhor sobre a política. E isto porque o capitalismo de Estado, como todas as formas de capitalismo, traz vinculada a si, como uma necessidade orgânica, a subjugação férrea do proletariado, matando no ovo a revolução popular.

Aconteceu assim que os custos deste atalho da história, globalmente progressivo, foram pagos pelo movimento operário e pelo marxismo, devido ao papel central que nele foram chamados a desempenhar. Tudo o que o movimento operário adquiriu com o triunfo inicial da revolução russa (a projecção mundial do leninismo e a formação da Internacional Comunista), voltou a perdê-lo quando as burguesias burocráticas de Estado assumiram a hegemonia efectiva do movimento operário internacional, aprisionando-o durante três quartos de século às necessidades da sua estratégia.

A imagem do socialismo foi degradada ao nível do capitalismo estatal e a democracia dos conselhos desacreditada pelo Estado policial. Os partidos comunistas foram decalcados pelo modelo dos partidos únicos monolíticos; a Internacional Comunista desnaturada e depois dissolvida; a táctica leninista de hegemonia do proletariado desfigurada nas “frentes populares” e “nacionais”; o marxismo rebaixado numa mistela dogmático-revisionista. Foram afinal trunfos para a social-democracia, que melhor pôde encobrir os seus fretes ao imperialismo sob as bandeiras da “oposição ao totalitarismo” e do “socialismo democrático”.

A constatação de que a história, afinal, não vivia a aceleração que supúnhamos mas percorria um desvio, produz agora com frequência a opinião desencantada de que voltámos à estaca zero depois de décadas de ilusão; a ambição comunista de golpear a burguesia e o imperialismo teria sido “precipitada” e só nos restaria esperar que se reúnam as condições objectivas para a passagem ao socialismo (se é que isso existe…).

Esta é, quanto a nós, uma conclusão equivocada. Reconhecer as misérias deste eclipse do comunismo não tem nada a ver com qualquer postura autocrítica perante a social-democracia. Falhadas nos seus objectivos finais, as revoluções russa e chinesa foram, mesmo assim, as impulsionadoras de todo o movimento avançado deste século e aceleraram a decomposição do sistema capitalista mundial.

Fechado agora, ao que tudo indica, o ciclo das revoluções proletárias antecipadas, um novo ciclo de revoluções germina, que levará certamente a humanidade mais adiante no processo de superação do capitalismo agonizante. Nada sabemos por enquanto das tarefas que colocará. Mas só as iremos descobrindo na medida em que nos elevemos aos ombros da grande revolução russa e aprendamos as suas lições; não, certamente, se a caluniarmos.

Como Lenine escreveu no Renegado Kautsky:

“a vitória do proletariado na Rússia não chega para a vitória completa do socialismo? Claro que não. Um país sozinho não pode fazer mais. Contudo, graças ao poder dos sovietes, este país já fez tanto que, mesmo se amanhã o imperialismo mundial esmagasse o poder soviético russo, mesmo nesse caso a táctica bolchevique teria prestado um serviço extraordinário ao socialismo e teria contribuído para o crescimento da invencível revolução mundial”.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Rosa Luxemburg: Sobre a Questão da "Maioria do Povo" e os Pupilos Incorrigíveis do Cretinismo Parlamentar.

        
Cem anos do assassinato de Rosa Luxemburg, mártir do proletariado.

Rosa Luxemburg
                                                                               
   O partido de Lenin foi o único a compreender as exigências e os deveres que incumbem a um partido verdadeiramente revolucionário e que assegurou a continuação da revolução, lançando a palavra de ordem: todo o poder às mãos do proletariado e do campesinato.
     Os bolcheviques resolveram assim a célebre questão da “maioria do povo”, pesadelo que sempre oprimiu os socialdemocratas alemães. Pupilos incorrigíveis do cretinismo parlamentar simplesmente transpõem para a revolução a sabedoria caseira do jardim de infância parlamentar: para fazer alguma coisa, é preciso ter antes a maioria. Portanto, o mesmo para a revolução: conquistemos primeiro a “maioria”. Mas a dialética real das revoluções inverte esta sabedoria de toupeira parlamentar: o caminho não conduz da maioria à tática revolucionária, ele leva à maioria pela tática revolucionária. Apenas   um partido que saiba dirigir, isto é, fazer avançar, ganha seus seguidores na tempestade. A resolução com que Lenin e seus companheiros lançaram no momento decisivo a única palavra de ordem mobilizadora – todo o poder ao proletariado e campesinato – fez, praticamente de um dia para o outro, de uma minoria perseguida, caluniada, “ilegal”, cujos dirigentes, como Marat, precisavam esconder-se nas caves, a dona absoluta da situação.
  Os bolcheviques também fixaram imediatamente, como objetivo da tomada do poder, o mais avançado e completo programa revolucionário; não se tratava de garantir a democracia burguesa, mas de consolidar a ditadura do proletariado, tendo como fim a realização do socialismo. Adquiriram assim o mérito histórico imperecível de terem proclamado, pela primeira vez, os objetivos finais do socialismo como programa imediato da política prática.
   Tudo que, num momento histórico, um partido pode dar em matéria de coragem, energia, perspicácia revolucionária e coerência, Lenin, Trotski e seus companheiros realizaram plenamente. Toda honra, toda a capacidade de ação revolucionária, que fizeram falta a social-democracia ocidental, encontravam-se nos bolcheviques. Com sua insurreição de outubro não somente salvaram, de fato, a Revolução Russa, mas também a honra do socialismo internacional.

(Rosa Luxemburg, A Revolução Russa, p. 71, Editora Vozes, 1991)

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Rosa Luxemburg: Sobre Democracia Burguesa e Oportunismo.

     
Rosa Luxemburg (1879-1919)

Rosa Luxemburg

     Os fenômenos apontados por Lenin na vida da social-democracia alemã, francesa e italiana cresceram sobre uma base social claramente determinada, a saber, sobre o parlamentarismo burguês. Aliás, assim como o parlamentarismo é o viveiro específico da atual corrente oportunista no movimento socialista da Europa Ocidental, dele provêm igualmente as tendências particulares do oportunismo para a desorganização.

     O parlamentarismo não apenas mantém todas as notórias ilusões do atual oportunismo, tais como as conhecemos na França, Itália e Alemanha: a supervalorização do trabalho de reformas, a colaboração das classes e dos partidos, o desenvolvimento pacífico etc. Ao separar, também na social-democracia, o intelectual como parlamentar e a grande massa operária, e ao elevá-lo, em certa medida, acima daquela, o parlamentarismo forma, ao mesmo tempo, o solo sobre o qual essas ilusões podem atuar na prática. Enfim, o mesmo parlamentarismo, com o crescimento do movimento operário, faz deste um trampolim para o carreirismo político; eis porque existências burguesas, ambiciosas e fracassadas, facilmente encontram abrigo no referido movimento. 

(Rosa Luxemburg, A Revolução Russa, p. 51, Editora Vozes, 1991)

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Três Doenças da Esquerda

Francisco Martins Rodrigues
2006

As perspectivas da esquerda para o século XXI são seguramente muito duras. Há 50 anos, nós, comunistas, imaginávamos o século XXI como uma alvorada do socialismo mundial, alastrando imparavelmente a partir da União Soviética. A vida ensinou-nos que a construção do socialismo é muito mais complicada do que supúnhamos e que o estertor da agonia do sistema capitalista é mais prolongado e sangrento do que podíamos então imaginar.

Estamos em dificuldade, mas não por falta de argumentos a nosso favor. A voracidade dos centros capitalistas, a decomposição moral da sociedade burguesa, a bestialidade da "guerra infinita" aos povos subjugados, com os EUA a seguir as pisadas da Alemanha hitleriana e a CIA transformada na Gestapo do "mundo livre", dispensam-nos de muito do nosso esforço de explicação. O mal está à vista de todos.
A social-democracia, pelo seu lado, tem cada vez menos espaço para fazer flores de esquerda. Quando governa é com a política de direita. Em Portugal temos agora um governo "socialista" que aplica o programa de espoliação dos trabalhadores que os anteriores governos de direita não tinham sido capazes de impor.
Temos razão, mas isto não basta para ganharmos as massas para o nosso campo. Para isso, falta-nos explicar, pelo menos, duas coisas:
  1. o que será essa sociedade socialista de que falamos, sem patrões, sem mercado, sem concorrência, sem guerras;
  2. como conseguiremos reunir forças para lá chegar, isto é, como seremos capazes de desmantelar o Estado burguês e expropriar a burguesia. Por não saber explicar nem uma coisa nem a outra, a esquerda atra vessa um longo período de crise, de isolamento, de cisões e de reconstrução.
Naturalmente, também eu não tenho resposta para estas questões. Mas posso falar-vos de três doenças que tenho observado na esquerda portuguesa e que julgo que são hoje gerais.

O medo de parecer uma seita

Na situação péssima a que a esquerda chegou, instalou-se a ideia de que o que interessa é falar daquilo que pode agradar à maioria, abandonar os temas difíceis ou demasiado "ideológicos", não fazer figura de extremista, tornar-se uma espécie de comissão de melhoramentos.
Em Portugal, o Bloco de Esquerda lançou-se a aplicar essa receita e tem-se dado muito bem: em poucos anos, ganhou um grupo parlamentar, um deputado europeu e é citado como exemplo de "esquerda moderna". Os meus antigos camaradas exultam porque já ninguém lhes chama "seita de iluminados". "Sabendo crescer, mesmo à custa de algumas concessões, dizem eles, amanhã teremos força para aplicar um programa anticapitalista". Mal sabem eles que estão a repetir uma "descoberta" da velha social-democracia que Rosa Luxemburgo comentava assim:
"Os social-democratas alemães tentam aplicar à revolução a sua sabedoria caseira: 'Para conseguir fazer alguma coisa, precisamos primeiro de ganhar a maioria'. Mas a dialéctica da revolução é oposta. O avanço não se faz da maioria para a táctica revolucionária, mas através da táctica revolucionária para a maioria".
Grandes palavras estas, plenamente confirmadas pelo partido bolchevique russo! Considerado uma seita em Fevereiro de 1917 devido ao radicalismo das suas posições, oito meses depois conduzia milhões de trabalhadores à tomada do poder. Eu sei que foi há muitos anos, mas ainda não apareceu nenhuma experiência que desmentisse a justeza do leninismo.
Com isto não quero dizer que devemos ficar na toca a escrever proclamações, à espera que chegue o dia da revolução. De modo nenhum. Só conservaremos a nossa identidade de revolucionários se interviermos diariamente na luta, com realismo, flexibilidade e abertura a outras correntes. É o que nós, da Política Operária, com a nossa pequenez, procuramos fazer.
Nesse caso, qual é a diferença que nos separa da outra esquerda? A diferença é que recusamos fazer política com os olhos nos votos e nos subsídios. Vemos nas reivindicações e ações diárias um meio de ajudar as massas a descobrir pela luta a sua razão e a sua força, um meio de cavar o antagonismo entre oprimidos e opressores — não um meio de ganhamos popularidade fácil e lugares nas instituições.
Gostemos ou não, somos uma fortaleza assediada, em tremenda desvantagem debaixo do fogo inimigo. Com conversa mole e panos quentes não iremos longe. A nossa única saída é falar claro, ser agressivos na denúncia do sistema, incutir desprezo pelo inimigo, porque só assim formaremos uma corrente combativa.
Na situação contra-revolucionária como a que se vive hoje na Europa, um partido de esquerda não pode ser um partido de massas. Ou goza das vantagens de se instalar no sistema, ou sofre as consequências de ser revolucionário. As duas coisas juntas é que não pode ser. Somos uma força estranha ao sistema, que a burguesia procura invariavelmente eliminar — a tiro, como fazia no tempo do fascismo, ou a dinheiro, como faz agora. Amanhã, quando surgir uma situação revolucionária, então sim, a esquerda poderá e deverá crescer. Por agora é bom não entrarmos em pânico por sermos olhados como um partido "marginal".

O medo de parecer "ortodoxo"

O mundo mudou, e de que maneira! O proletariado já não é o que era, crescem as novas classes médias, desaparecem os camponeses, surgem novas exigências, a vida social é muito mais complexa. Daqui partem muitos para a conclusão de que a política de classe contra classe, proletariado contra burguesia, já não se aplica. Lenine, com a sua crítica impiedosa a todas as correntes intermédias e o seu plano para a conquista do poder, poderia estar certo na sociedade russa, dizem, mas não serve para o nosso tempo.
Experimentemos porém a afastar as ramagens das novidades que fazem andar a cabeça à roda a tantos. Se formos ao tronco da sociedade, ao osso das relações entre as classes, o que vemos? Vemos que, por trás da aparente soberania dos cidadãos através do sistema representativo, a guerra de classes prossegue sem tréguas. O despotismo do capital sobre a vida dos seres humanos não se afrouxou, pelo contrário está a tornar-se asfixiante.
A realidade imutável é que há um núcleo restrito que de tem o poder apoiado em corpos de homens armados, leis, tribunais, ideólogos; que, abaixo dele, vem um segundo anel de auxiliares de confiança, cuja fidelidade é assegurada com fartos privilégios; mais abaixo, as classes médias, os pequenos patrões, os especialistas, ainda com direito a umas sobras; e no fundo, o resto, a quem cabe a tarefa de fazer andar o carro e para os quais não há bônus — assalariados de todo o tipo, operários, empregados, desempregados, precários, "donas de casa"... São oito décimos da população, mas como as suas vozes não têm direito a fazer-se ouvir, há quem não dê por eles.
Estes são os fatos da vida. Sendo assim, não vejo como se pode contestar que a única tarefa do partido de esquerda é conferir identidade política e ideológica a essa massa oprimida e silenciosa, mostrar pela ação diária que os seus interesses são diferentes dos de todas as camadas da burguesia, que a ordem social existente é a causa das suas frustrações e que é possível mudá-la.
Será isto muito cru, demasiado "ortodoxo"? Ou não será que se passou a chamar "ortodoxia" aos factos brutais desta sociedade para nos descartarmos deles?
Digo pois que a tarefa do partido de esquerda é elaborar um corpo de ideias revolucionárias — ideias, argumentos, demonstrações, não slogans —, e criar uma vanguarda de revolucionários profissionais — revolucionários, não burocratas nem aparatchiks —, que sejam o fermento capaz de fazer subir a tensão revolucionária adormecida nas massas.
Se o partido não servir para isso, não serve para nada, e mais vale deixar o campo livre aos sindicatos, movimentos cívicos, comissões, intervenção cultural, que, no seu âmbito próprio, defendem os interesses das massas.
Preocupam-se alguns porque o partido que manifesta intransigência revolucionária na ação e na crítica corre o risco de entrar em choque com as outras forças democráticas e progressistas. Mas essa é a condição imprescindível para se formar uma corrente revolucionária e para as massas franquearem um passo decisivo — de oposição crítica dentro do sistema à oposição contra o sistema.
Vejam este exemplo: em Portugal, na luta contra a guerra imperialista colaboramos com o PCP, sem dúvida a força mais à esquerda no leque partidário. Mas quando o PCP conduz os operários de uma grande fábrica à conciliação com o patronato, ou quando apresenta (como fez agora) uma proposta de lei para que sejam dadas mais verbas às forças de segurança — aí combatemo-lo sem contemplações. A defesa de uma política revolucionária não implica isolamento sistemático; exige sim uma participação independente em todas as ações em que haja interesses comuns. Como dizia Lenine, "atacar juntos, marchar separados".

O medo de ajustar contas com o passado

Bombardeados diariamente com a "falência do comunismo", julgam alguns que o melhor é evitar o assunto da União Soviética e andar para a frente — como se as consequências da maior revolução da história se pudessem varrer para debaixo do tapete. Disse-o no início: não vejo que a esquerda possa recuperar inteireza ideológica e postura ofensiva se não explicar de forma convincente o que aconteceu.
Ora, a posição assumida pelo PCP (e não só), exaltando as "conquistas do socialismo" que teriam sido comprometidas por "graves erros e desvios", pode parecer uma forma de se demarcar do que houve de negativo sem dar o flanco à campanha anticomunista da burguesia, mas indica uma estranha concepção do que seja o socialismo.
Que a antiga URSS, com as suas nacionalizações, planificação, medidas sociais, desenvolvimento econômico, resistência anti-imperialista, desempenhou até certa altura um papel favorável à luta dos povos não oferece dúvida. Basta pensar na derrota do nazismo. Mas partir daqui para a considerar socialista é dar um salto no absurdo. Teríamos então que admitir que o socialismo pode ser compatível com um regime ditatorial, o unanimismo do partido único, o terror policial, o culto do líder supremo, a esterilização da vida intelectual, a regressão de todos os direitos conquistados durante a revolução... Teríamos que admitir, sobretudo, que o socialismo possa existir sem o exercício efetivo do poder pelos trabalhadores — ou atribuindo a um partido a representação desse poder, o que vem a dar no mesmo —, e esta aberração é verdadeiramente o que pensam os nostálgicos da antiga União Soviética.
Partido representante da pequena burguesia "esclarecida" e "amiga do povo", o PCP não consegue conceber o socialismo senão como um capitalismo de Estado, um "poder popular" sob tutela. Vende aos trabalhadores a trágica deriva da revolução de 1917, tornada inevitável apenas pelo atraso econômico-social da Rússia, como se fosse uma lei da "transição para o socialismo". Procura, com essa miragem, amarrá-los à menoridade política e desviá-los do verdadeiro objectivo da sua luta — a instauração da sua ditadura de classe sobre a burguesia, a edificação de uma autêntica democracia do Trabalho.
Creio que, só combatendo frontalmente estas três doenças conseguiremos recuperar a iniciativa na luta contra o capital.



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