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sábado, 29 de agosto de 2020

Um Problema de Consciência

Alvaro Cunhal

1939

O exterior parece terrivelmente inimigo. Como se nas ruas só passassem funerais. Como se nos roubassem a família, os amigos e quedássemos sós e desamparados.

A tragédia intensa do presente emprenha a visão do futuro de sombrias expectativas. Afigura-se a muitos que no futuro haverá sempre rostos empalidecidos e cheiro a pólvora e a sangue quente. Ontem parecia que o dia de hoje havia de ser risonho e acolhedor. E agora, agora, que grande serenidade para poder crer no dia de amanhã!

 Quando a vida é incerta e baila ante os homens a perspectiva da morte, inunda-os uma ansiedade traduzível assim: «irei tão cedo deixar de ser?»

Só um grito desesperado de momento pode afirmar que esta vida não vale ser vivida. Quando se marcha em direção ao espectro, mesmo que os passos sejam voluntariosos e firmes, o bater do coração compassa a ansiedade. O futuro é negro: mas na própria negrura não há ausência de luz.

Por isso, ante os perigos, a expectativa traduz-se: «irei tão cedo deixar de ser?» E, quanto mais desalentadora é a visão do mundo que fica, quanto mais fundo é o remorso de pouco se ter feito para deixar aos filhos mais valiosa herança, mais dura e brutal aparece a visão da morte.

A admissão da estabilidade de um mundo a que se não podem mostrar os corações, força a lançar rápido e iluminado olhar ao tempo em que se esperou, em que os ora desalentados ainda tinham fé no que hoje não é presente e então parecia vir a ser futuro. Uma derrota profunda e dorida leva muitos a pensar que haverá sempre e só derrotas. Ver morrer os outros vencidos; talvez também morrer vencido. No vasto mundo muitas vezes se apagam vidas, ao procurarem derrubar velhos e endurecidos troncos. E há sempre quem represente o papel de irmão desalentado: «Para quê viver? Coisas que sempre foram e hão-de ser... O homem vive encadeado a leis irresistíveis. Inúteis os sacrifícios dos que procuram modificar os seus ditames». Como se os homens não pudessem construir a sua própria história. Como se as leis da evolução das sociedades não reservassem lugar à vontade humana.

Horas de dor, de sofrimento, de tragédia. Horas em que a expectativa da morte baila com insistência ante os olhos.

Então o homem sente necessidade de justificar a sua própria existência. Há que dar uma resposta às perguntas: «que andei e que ando por cá a fazer? Que tenho feito pelos outros e pela história?»

O homem teme deixar de ser na terra. Um sono sem despertar choca violentamente contra a estrutural vontade de viver. O ser recusa-se a aceitar o próprio desaparecimento. O apagamento total e sem apelo é incompatível com a existência atual.

Por isso, aqueles que acreditaram e não creem fogem, afastam-se, renunciam. Por isso também há homens que projetam a sua existência para além da morte. Uma alma que voe para rumo extra-terreno. Ou um ser que se desintegra para subsistir integrado em novos seres. Qualquer coisa que justifique o caminho percorrido entre o nascimento e a morte. Sonha-se para fora da terra com uma vida que nesta se não tem. Ou sonha-se com o que fica...

A morte é elemento essencial da vida. Mas isso não basta para que se aceite sem mágoa. É que a pergunta: «deixarei de ser hoje? amanhã?» — intensifica e aproxima o grande problema de consciência: «O que andei por cá fazendo? Que fica sobre a terra da minha passagem sobre a terra?»

Não satisfaz uma vida além-túmulo, mesmo que a imaginação empreste à alma asas imateriais. É esta terra donde brotou o pão que manteve o corpo e a água que matou a sede, esta terra donde tudo (mesmo pouco) nos veio e para onde iremos — e é esta humanidade a que pertencemos, este grande coletivo a que nos liga o sangue, o amor, o ódio e a interdependência — é esta terra e esta humanidade que nos exigem uma explicação.

Assim o problema da morte é o problema da vida. Depois que desapareça tudo o que de nós houve! Ou que subsista a alma! Ou que os vermes perpetuem a existência do nosso corpo!

Mas a expectativa da morte ou dum futuro de sombras perpétuas (que derrotas intensificam) chama a recordação do passado. Que poderia ter feito para que meu irmão não fosse vencido? Não lhe deixei só a ele uma tarefa que também me pertencia? E ainda... Que foi feito de toda esta energia dispendida em vida e tão sofregamente sugada? Que fica — não do meu corpo ou da minha alma — que fica das minhas ações duma vida inteira?

E a perpetuidade da nossa vida, a resistência contra um breve deixar de ser, fixa-se neste ponto vital: a justificação e perpetuidade das próprias ações, do que se fez no caminho percorrido entre o nascimento e a morte.

Haverá espetáculo mais doloroso que o do velho que olha atentamente o passado, medindo cada passo, avaliando o efeito de cada gesto, e por fim tem um grito de desalento, remorso e desespero: «uma vida inútil...?» Haverá constatação mais angustiosa que a da própria inutilidade? Não será precisamente essa constatação que as mais das vezes leva ao desejo de não ser? A inutilidade da vida é a afirmação de que nada fica das ações praticadas, de que se gastou o tempo a queimar tempo.

E então talvez valha a pena fitar a morte e esperar o para lá. A não ser que se olhe em frente — mesmo que o limite se espeque num amanhã irrefutável — e se marque uma finalidade à vida.

Quando a perspectiva da morte ou dum futuro trágico baila ante todos, até os jovens, como os velhos, olham o passado. E, depois, quantas vezes o desinteresse e a renúncia não vêm juntar a uma derrota ou a um momentâneo recuo coletivo, uma irremissível derrota individual.

...Porém, quando assim se não voga ao sabor da corrente, mas antes se escolhe caminho e se marcha, novamente o futuro sorri, à nossa vida ou à nossa morte. Sorri porque nele se adivinham marcadas as ações que vão ser praticadas. Porque a nossa vitalidade é afinal a direção do que vem. Porque se ganha confiança na perpetuidade dos nossos atos. Subsiste a alma? O apodrecimento e desintegração é a última etapa? Que interessa isso, se ganhamos uma nova eternidade!

Enquanto a humanidade for humanidade, as ações que hoje praticamos estarão sempre presentes, resistindo ao tempo e ao esquecimento a que nos votarão os nossos netos. Já os nossos corpos terão perdido a forma humana, já as suas partículas viverão separadas e dispersas e ainda nas sociedades futuras os efeitos dos efeitos das nossas ações evocarão a nossa passada existência. Com esta concepção, sentimo-nos (hoje) obreiros anônimos do futuro. Ao problema da morte, do não ser, responde satisfatoriamente a certeza consoladora deste prolongamento da nossa existência. Se se pudesse falar em eternidade, esta seria a única eternidade da nossa vida, como seres pensantes e voluntariosos.

Por isso, quanto mais sorridente é a visão do mundo que fica, quanto mais funda é a consciência de que tudo se fez para deixar aos filhos valiosa herança, menos dura e menos brutal aparece a visão da morte.

Não se trata de olhar para trás e perguntar com angústia: «que fiz? que fiz?» Trata-se de olhar em frente e perguntar com confiança e serenidade: «que poderei ainda fazer?» Não é só um exame de consciência que urge fazer: é também um apelo à consciência!

Com tal procedimento não se visa conquistar a absolvição dum juiz que após a nossa morte nos venha a ter em frente sentados no banco dos réus. Além da história, ninguém nos pedirá contas. Nem a nós, nem aos nossos espectros. Somos nós que nos devemos interrogar e julgar. Isso nos exige a vontade de viver e de perpetuar a nossa existência. Isso nos exige a gratidão. Isso nos exige a lembrança dos irmãos que morreram ao pretender desenraizar endurecidos troncos. Pode não conhecer-se o triunfo. Mas pode soçobrar-se, sem que no mundo fiquem só trevas. Talvez assim nos venha acalentar a necessidade dum sacrifício heroico. E então, porque não falar em felicidade?

Num mundo em que não há risos sem lágrimas, a felicidade nunca pode ser uma situação com caracteres próprios e momentâneos. A felicidade não pode existir, não existe, como situação particular: nem quando dependente de fatos estranhos à própria vontade; nem como ideia abstrata. A felicidade só pode existir como um atributo de toda uma vida. Só a satisfação pela vida que se vive poderá tornar feliz. Há então que não subordinar as ações ao alcance dum prazer. Mas antes amoldar a ideia de felicidade à vida que se vive.

Quando não nos sentimos meros joguetes da evolução mas, pelo contrário, sentimos que, mesmo ao de leve, as nossas energias modificam o seu ritmo. Quando sabemos ser leais, retos e solidários. Quando amamos profunda e extensamente e nos sentimos capazes de sacrificadas demonstrações do nosso amor. Somos felizes porque não desejamos outra vida, porque sentimos preenchida a própria função humana. A felicidade só existe assim como condição da consciência da própria utilidade. Não dispersar atividades. Proceder com um critério. Ser coerente em todas as atitudes. Agir com uma só linha de conduta. Ter fé na própria vontade, embora aceitando as suas determinantes. Convicção de impotência e felicidade excluem-se.

Assim far-se-á da própria vida uma vida feliz. Feliz nas horas de ascenso e nas horas de derrota. Feliz na alegria e na tristeza. Porque, na felicidade, prazer e dor interpenetram-se. Até o estertor final pode conduzir à felicidade pela convicção de que se morre bem. Não pode haver felicidade sem dor, porque esta é inseparável da vida. Que se sofra! Mas que as vontades saibam amordaçar o sofrimento para triunfar. E para isso, é necessário forjar nos peitos o desinteresse pessoal por prazeres efémeros, a rijeza de aço para lutar, o esclarecimento das exigências dos sentidos. Através da dor e da angústia, corações ao alto!

Se a felicidade é dada pela satisfação da linha de conduta, pela satisfação de que se procede bem, nada, nada, nem os gritos da própria carne esfacelada, nem lágrimas de emoção, nem a revolta instante e desesperada, pode destruí-la. Porque, acima dos próprios gritos, das próprias lágrimas, do próprio desespero, fica sempre a certeza duma vida voluntariosa e independente ou – se se preferir a expressão – reta, leal, digna.

Então suporta-se a dor e ama-se a vida. Podem as leis da natureza esfrangalhar o corpo. Podem os órgãos começar cansando. E as pernas vergando de fadiga. Amortecendo-se a percepção. O corpo começar em vida o seu desagregamento. Poderá bailar ante os olhos a perspectiva da morte e o fim especar-se num amanhã irremissível.

E haverá sempre vontade de continuar, procedendo sempre e sempre duma forma escolhida, marchando sempre para um destino humano e uma missão terrena voluntariosamente traçada. Haverá sempre anseio de continuidade e aperfeiçoamento.

Atravessar-se-ão tragédias com lágrimas nos olhos, um sorriso nos lábios e uma fé nos peitos.

Edição Página 1917.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

O Socialismo e a Religião

Lenin

3 de Dezembro de 1905

   A sociedade contemporânea assenta toda na exploração das amplas massas da classe operária por uma minoria insignificante da população, pertencente às classes dos proprietários agrários e dos capitalistas. Esta sociedade é escravista, pois os operários «livres», que trabalham toda a vida para o capital, só «têm direito» aos meios de subsistência que são necessários para manter os escravos que produzem o lucro, para assegurar e perpetuar a escravidão capitalista.

   A exploração econômica dos operários causa e gera inevitavelmente todos os tipos de opressão política, de humilhação social, de embrutecimento e obscurecimento da vida espiritual e moral das massas. Os operários podem alcançar uma maior ou menor liberdade política para lutarem pela sua libertação econômica, mas nenhuma liberdade os livrará da miséria, do desemprego e da opressão enquanto não for derrubado o poder do capital. A religião é uma das formas de opressão espiritual que pesa em toda a parte sobre as massas populares, esmagadas pelo seu perpétuo trabalho para outros, pela miséria e pelo isolamento. A impotência das classes exploradas na luta contra os exploradores gera tão inevitavelmente a fé numa vida melhor além-túmulo como a impotência dos selvagens na luta contra a natureza gera a fé em deuses, diabos, milagres, etc. Àquele que toda a vida trabalha e passa miséria a religião ensina a humildade e a paciência na vida terrena, consolando-o com a esperança da recompensa celeste. E àqueles que vivem do trabalho alheio a religião ensina a beneficência na vida terrena, propondo-lhes uma justificação muito barata para toda a sua existência de exploradores e vendendo-lhes a preço módico bilhetes para a felicidade celestial. A religião é o ópio do povo. A religião é uma espécie de má aguardente espiritual na qual os escravos do capital afogam a sua imagem humana, as suas reivindicações de uma vida minimamente digna do homem.

   

   Mas o escravo que tem consciência da sua escravidão e se ergueu para a luta pela sua libertação já quase deixou de ser escravo. O operário consciente moderno, formado pela grande indústria fabril, educado pela vida urbana, afasta de si com desprezo os preconceitos religiosos, deixa o céu à disposição dos padres e dos beatos burgueses, conquistando para si uma vida melhor aqui, na terra. O proletariado moderno coloca-se ao lado do socialismo, que integra a ciência na luta contra o nevoeiro religioso e liberta os operários da fé na vida de além-túmulo por meio da sua união para uma verdadeira luta por uma melhor vida terrena.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Os Dois Dias que Abalaram o Brasil

   Transcorridos setenta e oito anos desde os afundamentos dos navios mercantes brasileiros pela ação covarde do submarino alemão U507, quem poderia imaginar que um notório nazifascista, apologista da tortura, lacaio desprezível do imperialismo norteamericano e dos capitalistas, ocupasse a presidência em nosso país?

   O único objetivo do seu governo é atacar os mínimos direitos do povo trabalhador, favorecendo o grande empresariado e as multinacionais, além de destruir a saúde e educação públicas. Sua ânsia desvairada em servir a ganância dos poderosos o transformou no principal responsável pelo morticínio da pandemia de covid-19.

   Que a memória dos homens, mulheres e crianças que morreram vítimas dos torpedos nazistas, em agosto de 1942, assim como dos soldados brasileiros que tombaram em solo italiano combatendo o nazifascismo, não seja esquecida e que sirva de exemplo para as novas gerações de brasileiros. 







segunda-feira, 24 de agosto de 2020

A Revolução Tecnológica no Coração das Contradições do Capitalismo Senil

Samir Amin

2004

1- A revolução tecnológica contemporânea é um fato importante, que não ponho em dúvida, e considero inclusive o ponto de partida necessário da análise do que é "novo" na evolução do capitalismo. 

A diferença está em, por um lado, a análise que se faz da natureza desta revolução, em comparação com as precedentes, e, por outro, nas consequências políticas que daí se podem extrair. 

Tal como creio que há que fazer, analiso as revoluções tecnológicas em termos da lei do valor. Nesta análise, a produção é, em definitivo, o produto do trabalho social e o progresso da sua produtividade manifesta-se por meio da redução da quantidade de trabalho social total necessário para a produção de uma unidade de valor de uso. 

2- As revoluções tecnológicas anteriores na história do capitalismo (a primeira, a da máquina a vapor e das máquinas têxteis dos finais do século XVIII, princípios do XIX; a segunda, a do ferro, do carvão e dos caminhos de ferro, em meados do século XIX; a terceira, a da eletricidade, do petróleo, do automóvel e do avião em princípios do século XX) traduziram-se todas elas numa redução da quantidade de trabalho social total necessário para a produção dos valores de uso considerados, mas também no aumento da proporção que representa a quantidade de trabalho indireto (atribuído à produção dos meios de produção) em relação à de trabalho direto (atribuído à produção final). A revolução tecnológica em curso inverte esta tendência. Permite o progresso da produtividade do trabalho social por meio da adoção de tecnologias que se traduzem na redução da proporção do trabalho indireto

Resumo estas observações no seguinte esquema quantitativo simplificado: 

Quantidade de trabalho necessário (para a produção de uma unidade de valor de uso dada) 

 

Trabalho total 
(1)

Trabalho direto 
(2)

Trabalho indireto 
(3)

Relação 
(3)/(2)

1- Ponto de partida

100

80

20

0,25

2- Primeiras revoluções

50

25

25

1,00

3- Revoluções em curso

25

17

8

0,50

A produtividade do trabalho social duplica quando se passa de 1 a 2 à custa de uma intensificação capitalista das tecnologias adotadas, enquanto que um progresso da produtividade, idêntico quando se passa de 2 a 3 (o dobro desta) vem acompanhado de uma inversão do movimento da intensidade capitalista dos métodos de produção. 

3- As relações de produção capitalistas implicam que a entrada na produção esteja reservada aos que possuem um capital suficiente para instalar os equipamentos necessários. Assim, o aumento da intensidade capitalista através da qual se manifestaram as sucessivas revoluções industriais nos séculos XIX e XX proporcionou ao capital um domínio crescente sobre os trabalhadores desprovidos de outros meios de vida que não fossem a venda da sua força de trabalho (incapazes, pois, de "produzir" por si mesmos – isto é, sem capital – bens competitivos). 

A inversão do movimento através do qual se manifesta o progresso científico e tecnológico tende a "abolir" o poder do capital abrindo o acesso à produção? 

Há pelo menos duas razões para que não o seja em absoluto. 

domingo, 23 de agosto de 2020

O Grito de Justiça de Sacco e Vanzetti Ainda Ecoa.

Edilene Toledo¹

   Há exatos cem anos, em 15 de abril de 1920, durante um assalto a uma fábrica, um contador e um guarda foram assassinados a tiros na cidade de South Braintree, Massachusetts, Estados Unidos. Nicola Sacco, sapateiro, e Bartolomeo Vanzetti, vendedor de peixes, imigrantes italianos e anarquistas, foram responsabilizados pelo duplo homicídio. Ao fim de um processo muito polêmico, os dois foram condenados à morte e executados, na cadeira elétrica, em 23 de agosto de 1927. Os indícios contra eles eram muito frágeis e manipulados. Mesmo quando o verdadeiro autor dos crimes confessou, Sacco e Vanzetti não tiveram direito a revisão do processo e nem clemência. Desde então, eles se tornaram símbolos da luta contra a intolerância e a injustiça e foram lembrados inúmeras vezes em jornais, canções, poesias, filmes e peças de teatro.


   A condenação de Sacco e Vanzetti ocorreu no contexto de uma duríssima campanha contra os trabalhadores organizados e ativistas políticos que o governo dos Estados Unidos desencadeou entre os anos de 1919 e 1921. Era uma resposta, vivida também em muitos outros países, ao ciclo de agitação social global ocorrido a partir de 1917 e em reação às repercussões da Revolução Russa e o temor do avanço das forças de esquerda. Além de milhares de prisões e deportações de centenas de imigrantes, um outro anarquista italiano, Andrea Salsedo, tinha morrido, em circunstâncias misteriosas, caindo da janela de uma delegacia durante um interrogatório. Naqueles anos, mais de 100 sindicalistas da Industrial Workers of the World foram condenados por subversão a 20 anos de prisão.

   Nicola Sacco era do sul da Itália, da região da Puglia, enquanto Bartolomeo Vanzetti era do norte, do Piemonte. Ambos tinham chegado nos Estados Unidos no mesmo período, um em 1908 e outro em 1909, com cerca de 20 anos, com a esperança de melhorar as próprias condições de vida, como outros 5 milhões de italianos entre o final do século XIX e a Primeira Guerra, foram “fazer a América”. A maioria deles empregou-se nas ascendentes indústrias norte-americanas. Mas, para muitos, os Estados Unidos mostraram-se uma terra distante dos sonhos de bem-estar e liberdade que tanto atraíam os imigrantes.

   A radicalização da posição política de Sacco e Vanzetti ocorreu já em solo americano.  Eles se conheceram em 1916 e juntos passaram a fazer parte de um grupo anarquista. Tinham fugido para o México para escapar da convocação para a Primeira Guerra Mundial. A fé anarquista e a oposição à guerra, que caracterizou a ação libertária nas Américas, fizeram deles os alvos ideais da cruzada americana contra os radicais de esquerda.

   Foi também a origem italiana que marcou o destino deles. A retomada da imigração para os Estados Unidos após o fim da guerra acentuou a xenofobia de uma parte da população que considerava alguns grupos imigrantes etnicamente inferiores e inassimiláveis. Os italianos, sobretudo os do sul da Itália, eram acusados de mal-educados, violentos e propensos ao crime. Naqueles anos, linchamentos racistas atingiam os afro-americanos, mas também vitimaram 30 italianos.

   Durante todo o processo, sindicatos e grupos de esquerda iniciaram uma enorme campanha para obter apoio da opinião pública e arrecadação de fundos para a defesa de Sacco e Vanzetti. O drama dos dois trabalhadores provocou comoção e indignação entre os trabalhadores de todo o mundo, sendo um catalisador da identidade de classe. Protestos imponentes se multiplicaram em quase todas as capitais do mundo.

   O impacto sobre o movimento operário mundial foi muito grande, configurando o mais significativo fenômeno de solidariedade internacional do período. Para além da solidariedade étnico-nacional de trabalhadores italianos, a condenação de Sacco e Vanzetti foi sentida como um processo contra a classe operária em todo o mundo, contribuindo para que os trabalhadores se reconhecessem como membros de uma classe transnacional e sujeitos políticos ao longos dos anos 20.

Bartolomeo Vanzetti e Nicola Sacco

   No Brasil, greves, manifestações e comícios de solidariedade ocorreram em vários estados e principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde foram os sindicatos a organizar comitês de Agitação pró Sacco e Vanzetti, com a colaboração de anarquistas e comunistas. Nos dias que antecederam a execução dos anarquistas, a polícia agiu com violência para reprimir a multidão de trabalhadores que tomaram as ruas em bairros operários da cidade de São Paulo, como o Brás e o Ipiranga. Comícios chegaram a ocorrer duas vezes por semana. O jornal anarquista A Plebe noticiou que no dia da execução houve um comício na praça do Patriarca do qual participou “toda a classe operária da capital”. Outros jornais registraram gritos de vivas à memória de Sacco e Vanzetti  e à solidariedade operária.

   Somente 50 anos depois da execução, em 1977, o governador de Massachusetts reabilitou a memória de Sacco e Vanzetti, reconhecendo a inocência e os preconceitos, de várias ordens, que haviam determinado a condenação. Muitos trabalhadores e militantes em todo o mundo esperaram que a morte deles permanecesse como um alerta contra a intolerância e a xenofobia, que, infelizmente, custam a desaparecer e de tanto em tanto reemergem com toda a sua irracionalidade. Antes de morrer, Vanzetti escreveu “Defendi o direito de liberdade de pensamento, inalienável como o direito à vida”.

 ¹ Edilene Toledo é professora do Departamento de História da UNIFESP, Campus Guarulhos.

 Referências:

Coccia, Andrea. Quanto ci mancano Sacco e Vanzetti. Linkiesta, 23 de agosto de 2017.

Fast, Howard. Sacco e Vanzetti. Dois mártires da luta pela liberdade. Rio de Janeiro: Best Seller, 2009.

Franzina, Emilio. Gli italiani al Nuovo Mondo. L´emigrazione italiana in America, 1492-1942. Milão: Mondadori, 1995.

Luconi, Stefano. Sacco e Vanzetti, quando gli italiani erano “bastardi”. Il Manifesto, 22-08-2017.

Moura, Clóvis. Sacco e Vanzetti: o protesto brasileiro. São Paulo: Anita Garibaldi; Fundação Maurício Grabois, 2017.

Fonte: https://lehmt.org/2020/04/21/o-grito-de-justica-de-sacco-e-vanzetti-ainda-ecoa/

Edição: Página 1917.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Combater o Imperialismo e o Oportunismo: Tarefas Indispensáveis dos Comunistas*

   Neste texto, nos propomos a comentar os pontos principais do artigo de Lenin, de outubro de 1916, O Imperialismo e a Cisão do Socialismo. Em uma conjuntura de amplo predomínio do oportunismo, posição burguesa no movimento operário, na Europa, Lenin escreve um artigo ao mesmo tempo teórico (a partir dos estudos que culminaram no seu livro Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo) e militante, analisando a nova etapa, imperialista, do capitalismo mundial e combatendo sem tréguas o oportunismo. No seu artigo, Lenin trata do que chamava então de “a questão fundamental do socialismo contemporâneo”: a saber, “existe uma ligação entre o imperialismo e a vitória monstruosa e abominável que o oportunismo … alcançou sobre o movimento operário na Europa?”.

Lenin discursando no Congresso da Internacional Comunista

   Na conjuntura atual, já faz um longo tempo, também há uma “vitória monstruosa e abominável” do oportunismo e do reformismo no movimento operário e também dentre os (auto)denominados marxistas e comunistas, inclusive a deturpar e mutilar a teoria revolucionária do imperialismo de Lenin. Isso se relaciona à força muito reduzida da posição revolucionária, comunista, tanto em termos partidários quanto na sua influência no movimento operário em todo o mundo. Nos dias de hoje, e também há décadas, o imperialismo domina inteiramente a economia mundial. O texto de Lenin, portanto, ainda traz muitas lições para os comunistas contemporâneos e nos serve ainda hoje de base para realizar a análise concreta da realidade concreta e defender a posição proletária na luta de classes.

 Imperialismo, a fase atual do capitalismo

   Contra a errônea visão do oportunismo de Kautsky (que “define o imperialismo como uma política ‘preferida’ pelo capital financeiro”) presente hoje em quase toda a “esquerda”, de que o imperialismo constitui (apenas) uma política externa agressiva e militar dos países dominantes, Lenin, no capítulo 7 do seu livro, apresenta a “definição o mais breve possível do imperialismo”: “o imperialismo é a fase monopolista do capitalismo”. Por ser uma fase do capitalismo, não poderia deixar de ser “desenvolvimento e continuação direta das características fundamentais” – ainda que de forma contraditória, negando-as – desse modo de produção: concorrência entre os capitais, concentração e centralização de capitais, tendência à queda da taxa de lucro, luta constante para contra-arrestar essas tendências etc. No referido capítulo de O Imperialismo, na sequência dessa definição – que ele afirmava conter o principal, mas achava insuficiente –, Lenin a desdobra nos seus “cinco traços fundamentais”:

“1) a concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica;

 2) a fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse “capital financeiro” da oligarquia financeira;

 3) a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente grande;

 4) a formação de associações internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si, e

 5) o termo da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes”.

   No artigo de outubro de 1916, poucos meses após terminar a redação do seu livro, Lenin reafirma a importância fundamental dos monopólios para a caracterização de uma nova fase histórica do capitalismo: “A substituição da livre concorrência pelo monopólio é o traço econômico fundamental, a essência do imperialismo”. E, mais adiante: “O imperialismo é o capitalismo monopolista. Cada cartel, truste, consórcio, cada banco gigantesco é um monopólio”.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Desastre ambiental segundo Marx: faces da crise capitalista (II)*

 Yuri Martins-Fontes**

Bastante análogo a um tumor cancerígeno, o capitalismo se amplia de modo desgovernado, consumindo em sua “metástase” tudo à sua volta, a ponto de ameaçar o próprio “corpo” que o sustenta: o ser humano e o planeta.

Continuando a análise começada na primeira parte deste artigo – Monopólio, desemprego e desigualdade: faces da crise capitalista (I) –, vejamos como a crise do trabalho (desemprego) e a crise ambiental se relacionam, constituindo-se como duas faces da “crise estrutural capitalista”.

Pandemia de 2020, crise econômica mundial de 2008, inundações e secas, crise de fome de 2007 cujo resultado foi a marca histórica de um bilhão de famintos, devastação das florestas e poluição dos oceanos, degradação de culturas e povos reduzidos gradativamente à dependência e miséria: o que liga estes fenômenos é que todos eles são resultados do chamado “progresso capitalista”.

“Progresso” que, longe de ser um efetivo “desenvolvimento” humano – aprofundamento das liberdades, melhorias na cultura, saúde, educação, emancipação, prazer, tempo livre –, pelo contrário, é apenas um eufemismo com que se oculta um caótico “avanço tecnológico” e um  “crescimento econômico” sem planejamento racional.

Neste processo de crescimento concorrencial e desordenado (nomeado pelos capitalistas de “livre-mercado”), o capital, a partir de um controle cada vez maior da natureza (de que explora matérias-primas) e do próprio homem (de quem explora a força de trabalho), segue “avançando” sempre mais por sobre os recursos do planeta e seus diversos povos.

Bastante análogo a um tumor cancerígeno, o capitalismo se amplia de modo desgovernado, consumindo em sua “metástase” tudo à sua volta, a ponto de ameaçar o próprio “corpo” que o sustenta: o ser humano e o planeta.

Este processo irracional e fundamentalmente insustentável já tinha sido percebido por Karl Marx ainda no século XIX, quem apesar de não ter visto o cenário limite que hoje podemos vislumbrar, conseguiu descrevê-lo em seus traços preponderantes, como se explana neste artigo.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Projeções Preocupantes da CEPAL

Julio C. Gambina* - 29/07/2020

Com informação de até 30 de Junho de 2020, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, a CEPAL, atualizou o impacto regional da situação económica, afetada pela recessão derivada do COVID19.(1) O relatório, baseado no Banco Mundial, aponta que “a economia mundial experimentará a sua maior queda desde a Segunda Guerra Mundial e o produto interno bruto (PIB) per capita diminuirá em 90% dos países, num processo síncrono sem precedentes.”

O dado é em si mesmo muito sério, porque atinge a ordem mundial emergente no segundo pós-guerra, com a predominância do dólar e o poderio ideológico e militar dos EUA.

Não se trata de um problema circunstancial, mas e para além da disputa com a China, como já discutimos em várias ocasiões, constitui um problema civilizacional, que transcende a economia. Não é apenas a dominação que está em discussão, mas a própria sobrevivência do planeta e a humanidade está em risco devido aos efeitos sobre a Natureza.

Fica claro que, se o tema é global, a região nossa-americana se vê também afetada, ainda mais quando o COVID19 toma a região como epicentro.

Não são apenas o Brasil ou o México que preocupam, com quase 87.000 e 43.000 mortes, respectivamente mas, tendo em conta as mortes por milhão de habitantes o Peru encabeça a lista, seguido pelo Chile e, recentemente, Brasil e México.

Enfatizo este dato, porque ambos os países andinos, Peru e Chile, têm sido destacados nos últimos tempos como os “modelos econômicos” a seguir, tomando os seus processos de liberalização econômica como paradigmas a imitar.

As consequências da mercantilização são agora visíveis na pauperização da população e na deterioração da saúde pública, que recai sobre a população mais desprotegida.

Prevê o relatório da CEPAL:

“Para o conjunto da região, uma queda média do PIB de 9,1% em 2020, com quedas de 9,4% na América do Sul, 8,4% na América Central e México e 7,9% no Caribe, sem incluir a Guiana, cujo forte crescimento leva o total sub-regional a uma queda de 5,4%”.

 Neste quadro, a América do Sul é a zona mais atingida, com dados acima da média para o Brasil com uma queda de -9,2%, a Argentina com queda de -10,5%, Peru de -13% e Venezuela nas piores condições, em -26%.

Deve notar-se que no caso venezuelano, para além dos problemas locais, as sanções e o bloqueio dos EUA prejudicam seriamente o funcionamento econômico.

Destacam-se alguns dados sobre a recessão em curso, e em particular é mencionado que:

“A produção industrial no México tem em abril uma queda de 29,3% em relação ao ano anterior, enquanto a atividade total da economia no mesmo período diminuiu 26,4% na Argentina, 15,1% no Brasil, 14, 1% no Chile, 20,1% na Colômbia e 40,5% no Peru “.

Não se trata da especificidade de uma economia, mas de que aos problemas locais se adiciona uma situação agravada mundialmente pelo coronavírus.

Dimensão social do problema

O impacto é fenomenal para boa parte da população em Nossa América.

“A forte contração em 2020 traduzir-se-á numa queda do PIB per capita regional de 9,9%. Depois de ter havido praticamente uma estagnação entre 2014 e 2019 (quando o crescimento médio anual foi de apenas 0,1%), esta queda do PIB per capita implica um retrocesso de dez anos: o seu nível em 2020 será semelhante ao registado em 2010.”

Recordemos que, para a década de 80 do século passado, a CEPAL popularizou a frase “década perdida”, a propósito da crise da dívida mexicana de 1982 e as sequelas derivadas da generalização da hegemonia neoliberal.

É a década, sob a liderança de Fidel, em que é tentada a criação do Clube dos países devedores, para enfrentar o dos credores, que estava sob a gestão do FMI.

Tratava-se da estagnação econômica numa década caracterizada por políticas de ajustamento e reforma estrutural, que se generalizaram e popularizaram sob o desenho do Consenso de Washington nos anos 90.

 Assim foram impostas as privatizações, a desregulação, a liberalização e o incentivo à iniciativa privada com regras orientadas para o ajustamento fiscal.

Esse saldo projetou-se na última década do século XX como uma “meia década perdida” que se somava à anterior.

Os primeiros 10 anos do século XXI aparecem como de recuperação, com crescimento e distribuição do rendimento, produto da combinação do aumento dos preços internacionais de exportação e de uma vontade política para a melhoria da distribuição do rendimento.

O clima de mudança política em toda a região induziu à extensão das políticas assistenciais, para além da orientação à esquerda ou à direita dos diferentes governos.

Por isso, destaca-se o fato de que a CEPAL nos lembre agora que 2020 leva a região ao nível registado em 2010, pelo que consolida outra década perdida, o que implica um impacto social regressivo em termos de emprego e pobreza, agravando e consolidando a desigualdade.

O mercado laboral será fortemente impactado, ao comentar a CEPAL que:

“… a taxa de desemprego regional situar-se-á em cerca de 13,5% no final de 2020, o que representa uma revisão em alta (2 pontos percentuais) da estimativa apresentada em Abril de 2020 e um aumento de 5,4 pontos percentuais relativamente ao valor registado em 2019 (8,1%).”

Afirma que:

“Com a nova estimativa, o número de desempregados chegaria a 44,1 milhões de pessoas, o que representa um aumento de quase 18 milhões em comparação com o nível de 2019 (26,1 milhões de desempregados).”

Acrescenta que:

“Estes números são significativamente maiores do que os observados durante a crise financeira mundial, quando a taxa de desemprego aumentou de 6,7% em 2008 para 7,3% em 2009 (0,6 pontos percentuais).”

Em rigor, não é novidade, uma vez que a OIT contempla uma escalada do desemprego e da informalidade a nível global, sobretudo entre as mulheres e os jovens.

Assim, num quadro de ofensiva de capital contra o trabalho, as condições da recessão mundial e regional consolidam a iniciativa capitalista que, na conjuntura, acelerou uma procura prolongada pelo trabalho remoto, o teletrabalho.

Faz parte da busca de reduzir o custo da produção laboral, transferindo para os trabalhadores parte do custo de manutenção dos instrumentos e meios de trabalho.

Por isso não é de surpreender que o mercado de trabalho evidencie o custo em termos de rendimento e emprego demonstrado pelos dados da CEPAL.

Ainda mais grave é a questão em termos de pobreza e indigência.

“A CEPAL prevê que o número de pessoas em situação de pobreza aumentará 45,4 milhões em 2020, com o que o total de pessoas em situação de pobreza passaria de 185,5 milhões em 2019 para 230,9 milhões em 2020, número que representa 37,3% da população latino-americana. Dentro deste grupo, o número de pessoas em situação de pobreza extrema aumentaria em 28,5 milhões, passando de 67,7 milhões em 2019 para 96,2 milhões em 2020, número que equivale a 15,5% da população total “.

O relatório sublinha que:

“Os maiores aumentos na taxa de pobreza (de pelo menos 7 pontos percentuais) ocorreriam na Argentina, Brasil, Equador, México e Peru”.

No caso da Argentina, a pobreza extrema passa de 3,8% para 6,9%, com uma variação de 3,1 pontos percentuais de crescimento; e a pobreza passa de 26,7% para 37,5%, com um aumento de 10,8 pontos percentuais.

A região da América Latina há muito chama a atenção pelos crescentes níveis de desigualdade e este relatório confirma-o.

Desta vez, não são divulgados dados sobre a concentração do rendimento e da riqueza, que agravam a situação de desigualdade que configura a América Latina e o Caribe como o território mais desigual no sistema mundial.

Propostas da CEPAL

O relatório defende quatro linhas de ação:

a) um rendimento básico de emergência como instrumento de proteção social;

 b) um abono contra a fome;

c) o apoio às empresas e aos empregos em risco;

d) o reforço do papel das instituições financeiras internacionais.

Parece pouco, e discutível, para um diagnóstico tão pesado, mesmo quando defende medidas urgentes que promovam boa parte dos atingidos social e economicamente.

São reclamações, as três primeiras, que são sustentadas a partir das organizações sociais e políticas que agrupam no território os setores mais desprotegidos.

As duas primeiras são sugestões para a emergência social e a terceira visa manter o tecido de pequenas e médias empresas, incluindo as “micro”, que são no seu conjunto a principal fonte de emprego em todos os países.

A última é a mais difícil, que remete a um reforço de organismos que deveriam ser incluídos mais como parte do problema do que como solução, ainda mais quando, por detrás do diagnóstico aparece dependência financeira e o sobre endividamento de várias das economias com problemas.

Sem ir mais longe, o caso argentino é paradigmático na conjuntura, quando se discute o refinanciamento da sua dívida com grandes Fundos Financeiros e com um FMI que afundou o país com um empréstimo impagável que condiciona o presente e o futuro da economia e o seu povo.

É tempo de pensar numa perspectiva civilizacional contra e para além do capitalismo.

Nota:

[1] CEPAL. Informe especial COVID19, 15/07/2020: 

https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/45782/1/S2000471_es.pdf

*Julio C. Gambina é Presidente da Fundación de Investigaciones Sociales y Políticas, FISYP

Fonte: https://rebelion.org/proyecciones-preocupantes-de-la-cepal/

Edição: Página 1917


sábado, 1 de agosto de 2020

Não se Pode Viver com Boa Saúde num Planeta Doente*

David Servan-Schreiber**

     O urso polar vive completamente afastado da civilização. As vastas extensões de neve e gelo de que ele tem necessidade para sobreviver não são propícias ao desenvolvimento urbano nem às atividades industriais. Entretanto, de todos os animais do mundo, o urso polar é o mais contaminado pelos produtos tóxicos, a ponto de seu sistema imunológico e sua capacidade de reprodução estarem ameaçados. Este grande mamífero se nutre de focas e de grandes peixes, que se nutrem por sua vez de peixes menores, os quais comem peixes ainda menores, plancton e algas.
David Servan-Schreiber
   Os poluentes que nós despejamos em nossos rios grandes e pequenos terminam todos dentro do mar. Muitos são persistentes, ou seja, não se decompõem em elementos assimiláveis pela biomassa da terra ou dos mares. Em vez disso, eles fazem a volta do planeta em alguns anos e vão se acumular no fundo dos oceanos. Acumula-se também no organismo dos animais que os ingeriram (são bioacumulativos) e têm uma afinidade especial com as gorduras, diz-se que são lipossolúveis. São encontrados, portanto, na gordura animal. Primeiro na dos pequenos peixes, depois na dos grandes que comem os pequenos, depois na dos que comem os grandes peixes. Quanto mais elevado na cadeia alimentar, mais a quantidade de "POP" (poluentes orgânicos persistentes) na gordura aumenta¹. O urso polar está no topo de uma cadeia alimentar, que está contaminada em cada etapa. Fatalmente, ele é o mais atingido pela concentração progressiva - a biomagnificação - dos poluentes do meio ambiente.
   Existe um outro mamífero que ocupa o lugar de honra no cimo de sua cadeia, cujo habitat é ainda por cima claramente menos protegido do que o do urso polar: o ser humano.(...)
   Como a explosão do consumo de açúcar e a degradação extremamente rápida da relação ômega-6/ômega-3, o surgimento dessas substâncias tóxicas no nosso meio ambiente - e nosso corpo - é um fenômeno radicalmente novo. Ele data também da Segunda Guerra Mundial. A produção anual de substâncias químicas sintéticas passou de 1 milhão de toneladas em 1930, para 200 milhões de toneladas hoje.²
   Quando esses números foram publicados pela primeira vez em 1979 pela pesquisadora Devra Lee Davis, esta jovem e brilhante epidemiologista, que não poupava palavras, terminou sendo tratada como agitadora. É preciso dizer que ela tinha corajosamente dado como título a seu artigo na revista Science: "O câncer e a produção química industrial". Um tema que todo mundo teria preferido calar e que por pouco não encerrou sua carreira principiante. Mas Davis persistiu. Depois da publicação de mais de 170 artigos ao longo dos anos que se seguiram, após dois livros sobre o tema que causaram impacto,³ chegou a se tornar a primeira diretora de um centro oncológico ambiental, criado por ela na Universidade de Pittsburgh. Hoje, a relação entre câncer e meio ambiente não é mais contestada.

*Anticâncer: prevenir e vencer usando nossas defesas naturais; David Servan-Schreiber; p.97-98-99; Editora Objetiva; 2008.

**David Servan-Schreiber (21 de abril de 1961 – 24 de julho de 2011) foi um psiquiatra francês. Iniciou em 1978 os seus estudos na Faculdade de Medicina Necker-Enfants, em Paris, e concluiu o curso em 1984, na Universidade Laval do Quebeque. Exerceu a sua profissão de clínico no Canadá e nos Estados Unidos até 2002, onde contribuiu para fundar e em seguida dirigir o Centro de Medicina Complementar ou Integrativa de Pittsburg. Faleceu em decorrência do reaparecimento do câncer diagnosticado em 1992. (Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/David_Servan-Schreiber)
¹ Ribeiro CAO, Voltaire Y, Sanchez-Chardi A, Roche H. Bioaccumlation and affects of organochlorine  pesticides, PAH and heavy metals in the Eel (Anguilla anguilla) at the Camargue Nature Reserve, France. Aquatic Toxicology 2005; 741(1): 53-69.

² Davis DL, Magee BH. Cancer and industrial chemical production. Science 1979; 206(4425): 1356.

³ Davis DL. When Smoke Ran Like Water: Tales of Environmental Deception and the Battle Against Pollution. Nova York: Basic Books, 2004.

   

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