Samir Amin
2004
1- A
revolução tecnológica contemporânea é um fato importante, que não ponho em
dúvida, e considero inclusive o ponto de partida necessário da análise do que é
"novo" na evolução do capitalismo.
A diferença está em, por um lado, a análise que se
faz da natureza desta revolução, em comparação com as precedentes, e, por
outro, nas consequências políticas que daí se podem extrair.
Tal como creio que há que fazer, analiso as
revoluções tecnológicas em termos da lei do valor. Nesta análise, a produção é,
em definitivo, o produto do trabalho social e o progresso da sua produtividade
manifesta-se por meio da redução da quantidade de trabalho social total
necessário para a produção de uma unidade de valor de uso.
2- As
revoluções tecnológicas anteriores na história do capitalismo (a primeira, a da
máquina a vapor e das máquinas têxteis dos finais do século XVIII, princípios
do XIX; a segunda, a do ferro, do carvão e dos caminhos de ferro, em meados do
século XIX; a terceira, a da eletricidade, do petróleo, do automóvel e do
avião em princípios do século XX) traduziram-se todas elas numa redução da
quantidade de trabalho social total necessário para a produção dos valores de
uso considerados, mas também no aumento da proporção que representa a
quantidade de trabalho indireto (atribuído à produção dos meios de produção)
em relação à de trabalho direto (atribuído à produção final). A revolução
tecnológica em curso inverte esta tendência. Permite o progresso da
produtividade do trabalho social por meio da adoção de tecnologias que se
traduzem na redução da proporção do trabalho indireto.
Resumo estas observações no seguinte esquema
quantitativo simplificado:
Quantidade de trabalho necessário (para a produção
de uma unidade de valor de uso dada)
|
Trabalho
total |
Trabalho direto |
Trabalho indireto |
Relação |
1- Ponto de partida |
100 |
80 |
20 |
0,25 |
2- Primeiras revoluções |
50 |
25 |
25 |
1,00 |
3- Revoluções em curso |
25 |
17 |
8 |
0,50 |
A produtividade do trabalho social duplica quando
se passa de 1 a 2 à custa de uma intensificação capitalista das tecnologias adotadas, enquanto que um progresso da produtividade, idêntico quando se passa
de 2 a 3 (o dobro desta) vem acompanhado de uma inversão do movimento da
intensidade capitalista dos métodos de produção.
3- As
relações de produção capitalistas implicam que a entrada na produção esteja
reservada aos que possuem um capital suficiente para instalar os equipamentos
necessários. Assim, o aumento da intensidade capitalista através da qual se
manifestaram as sucessivas revoluções industriais nos séculos XIX e XX
proporcionou ao capital um domínio crescente sobre os trabalhadores desprovidos
de outros meios de vida que não fossem a venda da sua força de trabalho
(incapazes, pois, de "produzir" por si mesmos – isto é, sem capital –
bens competitivos).
A inversão do movimento através do qual se
manifesta o progresso científico e tecnológico tende a "abolir" o
poder do capital abrindo o acesso à produção?
Há pelo menos duas razões para que não o seja em
absoluto.
A primeira é que as revoluções tecnológicas
sucessivas, incluída a que está em curso, implicaram uma crescente
centralização do capital. A unidade mais eficaz para a produção de numerosos
valores de uso chave (mas certamente não todos os valores de uso) é aquela que
centraliza uma maior quantidade de produção destes valores: uma fábrica
concebida para produzir dez automóveis ou dez computadores por ano não é
competitiva (mas um advogado, um médico ou um pequeno gabinete não são menos
eficazes que uma grande empresa que opera nestes setores da atividade). Por
isso, mesmo que baixasse sensivelmente a intensidade capitalista, a entrada na
produção continuaria reservada aos que dispõem de um capital sempre
considerável para adiantar (para a compra de equipamentos, a antecipação dos
salários e para a constituição das existências necessárias para a atividade de
produção e a sua saída comercial).
A segunda é que a continuação da revolução tecnológica
exige "investimentos de investigação" cada vez mais importantes. Um
trabalhador isolado ou um pequeno coletivo de trabalhadores, mesmo que sejam
bem qualificados, em geral não estão em condições de levar a cabo estas
investigações. Aqui têm vantagem os centros capazes de concentrar capacidades
de investigação mobilizando um grande número de investigadores: Estado e
grandes empresas. Este elemento constitutivo do "monopólio dos
proprietários" face à indigência dos outros (os "proletários")
exige hoje uma proporção do "investimento total dos capitais"
necessária para a entrada na produção muito mais forte do que o era há
cinquenta anos. É posto então em marcha o reforço deste monopólio de uma
maneira cada vez mais sistemática por parte daquelas legislações chamadas
"protetoras da propriedade intelectual e industrial", destinadas de
fato a super-proteger os oligopólios de produção.
4- A
evolução das revoluções tecnológicas articula-se igualmente com a da
qualificação do trabalho social exigido para a produção que abrangem.
As formas anteriores da produção não exigiam
nenhuma qualificação particular à maioria dos trabalhadores – de fato, os
operários das linhas de montagem foram "desqualificados". As formas
novas são, com frequência, muito mais exigentes. Pode dizer-se que, posto que o
trabalhador está mais qualificado, desfruta de uma maior "liberdade"
face ao capital que o emprega? Que beneficia ao menos de um poder de negociação
melhor estabelecido? Sobre este tema, existem muitas ilusões que há que
dissipar. Em segmentos particulares conjunturalmente a força de trabalho
qualificada consegue marcar pontos e os beneficiários desta situação podem
aproveitar a sua capacidade de negociar, mas os poderes públicos prosseguem o
objetivo de criar a mais longo prazo um excedente adequado de oferta de
trabalho. Empregados da empresa moderna ou trabalhadores independentes podem
estar sub-empregados em múltiplas ocasiões, continuam no entanto a depender, na
sua esmagadora maioria, de quem os emprega.
5- Além
disso, o frequente debilitamento da intensidade capitalista nas formas modernas
de produção permite a melhoria da taxa de lucro, mantendo iguais as demais
condições. Estendido à massa da população, quer esteja estagnada quer em
crescimento lento, o lucro tende açambarcar uma proporção crescente dos
rendimentos líquidos. A tendência do sistema para produzir um excedente que a
seguir não pode ser absorvido por investimentos dedicados à ampliação e
aprofundamento do sistema produtivo (uma tendência forte do capitalismo moderno
dos oligopólios, como mostrou Paul Sweezy cuja análise compartilho) vê-se
reforçada pela nova revolução tecnológica. Este desequilíbrio global está na
origem da "crise estrutural" do capitalismo neoliberal contemporâneo,
ou seja, da estagnação relativa que o caracteriza.
Este excedente pode ser absorvido de diferentes
maneiras. Pode ser aplicado em despesas suplementares de esbanjamento social
tal como a manutenção de polícias privadas associadas à crescente desigualdade
na repartição dos rendimentos, como sucede nos Estados Unidos. Mas poderia
também sê-lo através de políticas de gastos sociais úteis (educação e saúde),
que constituem então formas indiretas de reforço dos rendimentos dos
trabalhadores (que permitem, aliás, o relançamento da procura e da produção) ou
por meio dos gastos militares (a opção dos Estados Unidos).
Acresce ainda, que as formas da globalização postas
em marcha pelo neoliberalismo dominante permitem reproduzir e tornar mais
profundas as assimetrias internacionais graves no acesso de uns e de outros ao
excedente em questão. A este respeito escrevi (cf. Samir Amin, Le virus
libéral, Le Temps des Cerises, 2003, p. 129 e seguintes) que na atual conjuntura política marcada pela militarização da globalização e pela ofensiva
hegemonista de Washington, o sistema funciona a favor dos Estados Unidos que
absorvem uma boa proporção do excedente gerado pelos demais, para o aplicar num
reforço dos seus gastos militares.
6- Uma
revolução tecnológica transforma sempre as formas concretas de organização do
trabalho e, por conseguinte, a estrutura das classes dominadas.
Mas a revolução contemporânea não abriu um campo
amplo à organização de "redes horizontais" de trabalhadores capazes,
com isso, de se emanciparem, ao menos em parte, das exigências do capital
dominante. As situações deste tipo são completamente marginais. Pelo contrário,
a evolução dominante dos mercados de trabalho é caracterizada por um
fracionamento reforçado que dá ao capital uma margem de manobra onde sabe obter
benefícios. A pauperização produzida por esta evolução expressa-se por meio da
crescente proporção de trabalhadores "não estabilizados"
(desempregados, precários, informais) como demonstrei noutro lado (cf. Samir
Amin, Le virus libéral , p. 35 e seguintes, Le temps des
Cerises, París 2003)
7- O
conjunto dos fenômenos de que aqui se fala, todos associados à revolução
tecnológica contemporânea, interpela quem se coloque a questão do futuro do
capitalismo e do que implica a lógica dos seus desdobramentos para os
trabalhadores e os povos.
Pela minha parte, parece-me que esta evolução põe
em causa a "legitimidade" do capitalismo como sistema social
civilizado e eficaz. O capitalismo obtinha a sua "legitimidade" do
fato de que o crescimento da produção exigia investimentos de capital cada vez
mais maciços que somente os "capitalistas" podiam reunir. Estes, além
disso, assumiam um "risco" (cuja importância a teoria convencional
sempre exagerou), davam "empregos" a uma mão-de-obra pouco
qualificada, aceitando com isso a ideia que os trabalhadores não eram capazes
por si mesmos de assegurar a eficácia da produção. Quando os trabalhadores —
organizados em sindicatos de massas, como corresponde à sua concentração em
grandes unidades de produção — conseguem impor ao capital uma repartição
estabilizada dos rendimentos líquidos (os salários que beneficiam de um
crescimento igual ao da produtividade social do trabalho) e a conjuntura
internacional favorece este "compromisso social" (por temor à
competição "comunista"), a legitimidade do sistema sai
reforçada.
As evoluções contemporâneas anularam amplamente
estes motivos de legitimidade. Maior quantidade de trabalhadores está mais
qualificada (e com isso mais apta a organizar eficazmente a produção por si
mesma), mas simultaneamente está debilitada face aos patrões. Os investimentos
requeridos para iniciar uma produção são menos importantes e estariam ao
alcance de um possível coletivo se as instituições do Estado e da economia
estivessem concebidas para tornar possível a realização dos projetos que são
capazes de formular. Dito doutra forma, o capitalismo como forma de organização
social "teve o seu tempo". Outras formas – socialistas – parecem, ao
invés, em melhores condições de assegurar ao mesmo tempo a eficácia (e a
redução do desperdício), a justiça social e a equidade internacional. Mas as
relações de produção capitalistas e as relações imperialistas sempre dominantes
opõem-se aos avanços nas direções necessárias para uma "superação do
capitalismo"; e opõem-se a isso com una violência redobrada.
A minha análise põe a tônica nas contradições do
sistema e na sua agudização. Este enfoque não é o que nos propõem os textos
dominantes referentes à "revolução tecnológica".
Esta ignorou, logo à partida, a lei do valor,
substituindo-a pelo conceito superficial de "competitividade nos
mercados". Mas este discurso da economia convencional é perfeitamente
tautológico (porque a única produtividade que tem sentido é a do trabalho
social) e por definição ignora até os efeitos da dominação do capital oligopolístico.
Todos os autores que critiquei se inserem na denominada corrente pos-modernista
(Castells entre outros) e se coíbem de abordar estas questões de método
fundamentais aderindo sem por em dúvida a economia convencional.
Além disso, o método do "pós-modernismo" (aqui penso particularmente em Castells e em Negri) pressupõe que a "evolução do sistema" (entre outros devido à revolução tecnológica em questão) já aboliu classes e nações, ou pelo menos está em vias de o fazer, e já fez do "indivíduo" o sujeito direto e principal da história. Este retorno à ideologia plana do liberalismo — o discurso permanente do capitalismo sobre si mesmo — constitui precisamente o objeto central das minhas críticas. Expressas em termos de "votos piedosos" e de formulações "politically correct" (que particularmente Castells sempre se preocupou em não superar) estas visões evolucionistas dirigidas pelo economismo e pelo tecnologismo da ideologia dominante pressupõem que o capitalismo "se superará pacificamente por si mesmo". Eu mantenho-me nas posições do marxismo: se bem que as condições de outro sistema (superior) estejam bem reunidas por esta evolução, as contradições que ela agudiza (e não reduz!) só serão resolvidas pelas lutas através das quais se expressam. Por si próprio o capitalismo — "superado objetivamente" (e com isso digo "senil") — não engendra uma nova sociedade — melhor — e sim a pura barbárie. Desmentem o realismo da minha análise a ofensiva generalizada dos poderes ao serviço do capital dominante e a militarização do imperialismo? Não brotará "outro mundo" da submissão à lógica dos desdobramentos do sistema e sim da luta decidida contra o mesmo.
Edição: Página 1917
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