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segunda-feira, 22 de junho de 2020

Convergências Impossíveis

Ney Nunes
20/06/2020



    Quais seriam na atualidade, se é que existem, as convergências estratégicas e táticas entre os comunistas revolucionários (hoje é indispensável a qualificação dos comunistas, já que o termo “comunista” é usado por diferentes partidos e pessoas que se dedicam a prolongar a vida do capitalismo) e o Partido Comunista do Brasil (PC do B)?

   Existiriam na questão do anti-imperialismo, ou da defesa da soberania e dos interesses nacionais?

     Nesse caso basta nos fixarmos em dois pontos bem concretos e conhecidos: primeiro a atuação contra o monopólio da Petrobras, quando o PC do B esteve à frente da Agência Nacional do Petróleo (ANP) durante os governos Lula/Dilma, o segundo foi o posicionamento favorável ao recente acordo para uso da Base de Alcântara pelos EUA. Ambos os casos valem mais do que mil documentos ou discursos retóricos do PC do B, eles são suficientes para desmascarar seu anti-imperialismo de fachada.

     Talvez com relação a estratégia da revolução brasileira? A estratégia é bem clara: aliança com a burguesia, defesa da democracia (burguesa, é óbvio) e por um projeto de desenvolvimento nacional. Mas em questão de fundamental importância, é melhor deixarmos o próprio PC do B explicitar a sua estratégia:

 “A experiência demonstrou que as coalizões amplas e heterogêneas, decorrentes de uma realidade pluripartidária diversificada, são necessárias tanto às vitórias eleitorais quanto à governabilidade”
“O 13º Congresso apresenta ao povo e à coalizão que sustenta o governo, em especial às forças políticas de esquerda e aos movimentos sociais, a convicção de que a tarefa política central do momento é a de mobilização de apoio para que o governo realize as mudanças que a Nação reclama por meio das reformas estruturais democráticas, tendo como ideia-força um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento” (1)

      Quem sabe teríamos acordo sobre o balanço dos governos Lula/Dilma? Aqui também é melhor transcrever a resolução aprovada no congresso de 2013:
 
Nesta década se destacam quatro grandes realizações, ainda em movimento e em construção, mas delineadoras de um novo tipo de desenvolvimento que vai fortalecendo o país com o resgate do papel do Estado, afirmação da soberania nacional, ampliação da democracia e crescimento econômico com progresso social

A democracia voltou a florescer, a partir da diretriz do novo governo de respeitar e valorizar as manifestações do povo e dos trabalhadores fortalecendo suas entidades, estabelecendo o diálogo e a negociação como base para as relações entre o governo e os movimentos sociais” (1)

          Será que na linha política diante da atual conjuntura encontramos alguma convergência? A nota do Comitê Central do PC do B, publicada em abril/2020, não deixa margem para dúvidas:

 Neste contexto, o Partido mobiliza a sociedade para as medidas de prevenção, de continuidade do isolamento social; realiza firme combate às atitudes irresponsáveis e criminosas de Bolsonaro; empreende a defesa da vida, da democracia e da Constituição Federal.”(2)

“Persistir na articulação de uma ampla frente de salvação nacional, em defesa da vida, da democracia, do emprego e do Brasil. Uma frente capaz de impedir que Bolsonaro promova o caos e crie condições para o país livrar-se da crise e vencer a pandemia. Com esse propósito, o Partido deve intensificar o seu diálogo com amplas forças da sociedade, partidos, entidades, personalidades e lideranças. Nessa frente de salvação nacional, têm protagonismo o Congresso Nacional, os governadores, o STF, entidades e instituições da sociedade civil, como CNBB, Comissão Arns, OAB-Federal, SPBC, ABC, ABI, hoje conjugadas no Pacto pela Vida e pelo Brasil. Devem participar os partidos e parlamentares de um largo espectro político, personalidades do mundo da cultura e da ciência, as centrais sindicais, a UNE, a UBES, a Conam, a UBM, a CMB e um elenco de movimentos sociais e frentes desse setor”(2)

      Talvez na caracterização da China de Xi Jinping como o novo farol do socialismo?


“Sob a estratégia segura e a condução serena de Xi Jinping, a República Popular da China, sem declarações grandiloqüentes, sem adotar políticas de hostilidade contra nenhum país, propõe e pratica uma forma avançada de relações internacionais, baseada na cooperação e no ganho mútuo, na defesa de soluções pacíficas para as controvérsias, no respeito à autodeterminação dos povos e no rigoroso compromisso com o direito internacional e a Carta das Nações Unidas. A “Iniciativa um Cinturão e uma Rota” é um exemplo do que a China chama de desenvolvimento compartilhado.”
Viva o Socialismo com características chinesas!(3)

      Definitivamente fica impossível encontrar qualquer ponto de convergência ou aproximação dos comunistas revolucionários com o PC do B além do vocábulo “comunista”, do qual, pelo que se noticiou, a direção desse partido pretende se livrar, ou pelo menos esconder ao máximo, como já vinha fazendo nas suas últimas campanhas eleitorais.


1 - Resoluções do 13º Congresso do Partido Comunista do Brasil, São Paulo, 16 de novembro de 2013.

2 – Nota do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Brasília, 18 de abril de 2020.

3 – Nota da Comissão Política Nacional do Partido Comunista do Brasil.












quinta-feira, 18 de junho de 2020

Sobre as palavras de ordem “Que cem flores desabrochem”, “Que cem escolas rivalizem” e “Coexistência duradoura e controle mútuo”.*


     Mao Tsetung


     Como é que foram formuladas as palavras de ordem “Que cem flores desabrochem, que cem escolas rivalizem” e “Coexistência duradoura e controle mútuo”? Estas foram formuladas à luz das condições específicas da China com base do reconhecimento de várias espécies de contradições ainda existentes na sociedade socialista e com base das exigências prementes do Estado, que necessita de rápido desenvolvimento econômico como cultural. A política de “Que cem flores desabrochem, que cem escolas rivalizem” é a política para estimular o progresso da arte e da ciência e o florescimento da cultura socialista em nosso país. Na arte podem desenvolver-se livremente distintas formas e estilos; na ciência, diferentes escolas podem rivalizar livremente. Julgamos que a imposição, por meio de medidas administrativas, de um só estilo e de uma só escola, e a proibição de outros estilos ou escolas dificultam o progresso da arte e da ciência. O problema do correto e do errado na arte e na ciência deve resolver-se pela livre discussão nos meios artísticos e científicos e no decurso da prática da arte e da ciência. Esse problema não deve ser resolvido por métodos simplistas. A determinação do correto e do errado exige muitas vezes um certo período de tempo de experiência. A história ensina que muitas vezes o que é novo e correto não é nos primeiros momentos admitido pela maioria dos homens e não pode desenvolver-se a não ser que na luta e através de caminhos sinuosos. Acontece muitas vezes que o correto e o bom não são considerados ao princípio como flores perfumadas, mas pelo contrário, como ervas venenosas. A teoria de Copérnico sobre o sistema solar e a teoria da evolução de Darwin foram consideradas erradas quando surgiram e só se impuseram através de uma árdua luta. A história da China oferece também numerosos exemplos análogos. Na sociedade socialista, as condições necessárias ao desenvolvimento das coisas novas são radicalmente diferentes e muito mais favoráveis do que as condições na sociedade antiga. Não obstante, sucede ainda com frequência as forças nascentes serem entravadas e as iniciativas razoáveis impedidas. O crescimento das coisas novas pode também ser entravado não pela vontade deliberada do fazer, mas sim por falta de um claro discernimento. Eis porque, para determinar o correto e o errado nas ciências e nas artes, é necessário adotar-se uma atitude prudente, encorajar a livre discussão e não tirar conclusões prematuras. Cremos que esta última atitude pode assegurar um desenvolvimento relativamente fácil da ciência e da arte.

      O marxismo desenvolveu-se também através da luta. No princípio, foi alvo de todo tipo de ataques e considerado como uma erva venenosa. Ainda hoje continua a ser objeto de ataques e considerado como uma erva venenosa em numerosos lugares do mundo. Todavia, nos países socialistas, o marxismo ocupa uma posição bem diferente. Mas até mesmo nos países socialistas existem ainda ideias não marxistas e, inclusive, até ideias antimarxistas. Na China, embora no essencial se tenha concluído a transformação socialista, no que diz respeito ao sistema de propriedade, e tenham cessado as vastas e tempestuosas lutas de classes travadas pelas massas e próprias dos períodos revolucionários anteriores, subsistem ainda vestígios das classes derrubadas, dos senhores de terras e compradores; subsiste ainda uma burguesia, e a transformação da pequena burguesia ainda está no começo. De modo nenhum terminou a luta de classes. A luta de classes entre o proletariado e a burguesia, entre as diversas forças políticas, bem como, no plano ideológico, entre o proletariado e a burguesia, será ainda prolongada e sinuosa e, por vezes, se tornará inclusivamente muito encarniçada. O proletariado procura transformar o mundo conforme sua concepção do mundo e o mesmo se passa com a burguesia. A este respeito, a questão de saber quem vencerá, se o socialismo ou o capitalismo, não está verdadeiramente decidida. Os marxistas constituem até o presente uma minoria, tanto no conjunto da população, como no seio dos intelectuais. Assim, tal como · no passado, o marxismo deve desenvolver-se por intermédio da luta: isto é válido não só para o passado e o presente, como também necessariamente para o futuro. O que é correto desenvolve-se sempre em um processo de luta contra o que não é. A verdade, o bom e o belo existem sempre por contraste com o falso, o mau e o feio e desenvolve-se na luta contra estes. Logo que uma ideia errada é rejeitada pela humanidade e substituída por uma ideia correta, uma nova ideia correta entra em luta contra novas ideias erradas. Esta luta jamais terminará; tal é a lei do desenvolvimento da verdade e tal é também, evidentemente, a lei do desenvolvimento do marxismo.

    

sábado, 13 de junho de 2020

Do Futuro Sombrio do Capitalismo*


Wolfgang Streeck1


   O cartaz está pregado na parede e ele já se encontra aí há um bom tempo; nós é que temos de aprender a lê-lo. Eis a sua mensagem: o capitalismo é uma formação social histórica; ele não tem apenas um começo, mas tem também um fim.2 Três tendências se desenvolveram em paralelo no conjunto das ricas democracias capitalistas desde a década de 1970: crescimento em declínio, aumento da desigualdade de renda e de riqueza, assim como expansão da dívida pública, privada e total. Hoje, essas três tendências parecem estar se reforçando mutuamente: o baixo crescimento contribui para a desigualdade através da intensificação do conflito distributivo; a desigualdade amortece o crescimento, pois reduz a demanda efetiva; os altos níveis das dívidas existentes obstruem os mercados de crédito, aumentando assim o risco de crises financeiras; um setor financeiro inchado tanto resulta quanto contribui para a desigualdade econômica, etc. 

   Já o último ciclo de crescimento, aquele ocorrido antes de 2008, parece agora mais falso do que real3; ademais, a recuperação ocorrida após 2008 continua anêmica na melhor das avaliações. Eis que o estímulo keynesiano, monetário ou fiscal, deixou de funcionar em face da quantidade sem precedentes das dívidas que foram acumuladas. Note-se que estamos falando de tendências de longo prazo e não apenas de um desvio contingente e momentâneo; estamos de fato tratando de tendências globais que, enquanto tais, afetam o sistema capitalista como um todo.  Nada à vista parece se afigurar como suficientemente poderoso para contrariar essas três tendências, as quais se enraizaram profundamente na economia e se tornaram fortemente entrelaçadas entre si. 
   Além disso, quando olhamos para trás, vemos uma sequência de crises políticoeconômicas, as quais começaram com a inflação na década dos anos 1970; a esta se seguiu uma explosão da dívida pública nos anos 1980 e um rápido aumento da dívida privada na década subsequente, do qual resultou o colapso dos mercados financeiros, em 2008. Note-se que essa sequência se repetiu quase do mesmo modo para todos os principais países capitalistas cujas economias, aliás, nunca estiveram realmente equilibradas desde o final do período de grande crescimento, no pós-guerra. Todas as três crises começaram e terminaram da mesma forma, isto é, mediante processos inflacionários: se as dívidas pública e privada serviram inicialmente como soluções políticas convenientes para os conflitos distributivos entre o capital e o trabalho (e, às vezes, também, para outras partes, tais como os países produtores de matérias-primas), elas acabaram se tornando problemas também: inflação de preços no começo dos anos 1980, inflação da dívida pública numa primeira fase de consolidação na década de 1990 e inflação da dívida privada, depois de 2008.4 Atualmente, a política econômica corretiva é chamada de “relaxamento monetário”5; eis que ela consiste, essencialmente, na emissão de dinheiro pelos tesouros e pelos bancos centrais com a finalidade de manter baixas as taxas de juros. É assim que se busca manter sustentável a dívida acumulada no passado, evitando também que a economia estagnada caia na deflação. Essa correção tem, porém, preço: ela gera mais desigualdades; propicia também que surjam novas bolhas nos mercados de ativos, os quais podem, num momento decisivo, entrar em colapso.
   

terça-feira, 9 de junho de 2020

A Estratégia Socialista da Revolução Brasileira*

                                         
     Afirmamos que a Revolução Brasileira é uma Revolução Socialista por entendermos que as tarefas estratégicas colocadas ao conjunto dos trabalhadores não podem se realizar nos limites da ordem capitalista. A transição para o socialismo e para a formação do Estado Proletário que garanta a existência de novas formas de propriedade e de relações sociais representa o único meio de libertar os trabalhadores das mazelas que hoje os afligem, contribuindo ainda para livrar o mundo do desastre socioambiental que a ordem capitalista mundial impõe. Além disso, toda a experiência histórica dos trabalhadores demonstrou que qualquer forma de pacto com a burguesia é uma miragem que confunde os trabalhadores, desorienta a luta de classes e apaga o horizonte socialista.

     A definição da etapa socialista da Revolução Brasileira não implica ausência de mediações políticas nas diferentes conjunturas que se apresentam, mas é a estratégia socialista que determina o caráter da luta imediata, ou seja, a estratégia subordina a tática e não o inverso. Nossas ações táticas e nossa política de alianças devem ser moldadas pela necessidade de superação revolucionária do capitalismo e pela construção da sociedade socialista. Esta transformação histórica não se dará através de um projeto reformista, mas por meio de uma ruptura revolucionária, na qual desempenha papel central a questão do poder, ou seja, a destruição do poder e da dominação política burguesa e a construção da proposta histórica de autogoverno dos trabalhadores e de superação do Estado. Tal construção dependerá de uma ação permanente dos comunistas e revolucionários para fazer avançar o projeto contra-hegemônico do proletariado, o qual será construído no calor da luta de classes, em meio aos embates sociais e ao processo de confrontação política e ideológica frente ao capitalismo e à sociedade burguesa. 
     
*Trecho da Declaração Política do XV Congresso do PCB,  realizado de 18 a 21 de abril de 2014, em São Paulo.

Fonte: Resoluções XV Congresso Nacional do PCB, pag. 14-15, Fundação Dinarco Reis.

Edição e grifos: Página 1917.


     




sábado, 6 de junho de 2020

Capital e Pós-capitalismo*

István Mészáros**
Junho de 2011

       Em várias ocasiões, argumentei, mas não realcei suficientemente, que o objeto da crítica de Marx não era o capitalismo, mas o capital. Ele não estava preocupado em demonstrar as deficiências da produção capitalista, mas imbuído da grande tarefa histórica de livrar a humanidade das condições sobre as quais a satisfação das necessidades humanas deve ser subordinada à "produção do capital". Ou seja, livrar a humanidade das condições desumanizadoras sobre as quais ganham legitimidade apenas aqueles valores de uso, não importa quão desesperadamente necessários, que possam caber na camisa de força dos valores de troca lucrativamente produzidos pelo sistema. Em termos históricos, podemos identificar conjuntos de determinações que permanecem incorporadas à constituição estrutural do sistema do capital, como se fossem "camadas geológicas" ou "arqueológicas". Cronologicamente, a mais recente pertence à fase capitalista do desenvolvimento que se estendeu apenas pelos últimos 400 anos. Temos o capitalismo porque o capital se impôs, com sua força, o seu poder econômico. 

     As especificidades de nosso tempo, citadas em meus livros, diferem das circunstâncias históricas em que Marx se encontrava, mas ambas se inscrevem no sistema do capital. Por exemplo, o sistema pós-capitalista (o tipo soviético de reprodução social) não pode ser caracterizado como produção generalizada de mercadorias, que extrai o trabalho excedente e o regula por meios econômicos, por sua conversão em mais-valia e acumulação de capital. É por isso que Gorbachev e seus seguidores tiveram que restaurar o capitalismo a fim de instituir sua quimera de "socialismo de mercado", o que obviamente não deu em nada. Sob o sistema do capital pós-capitalista a dominação do capital sobre o trabalho continua sob a forma de extração do trabalho excedente pela via política, por meio de um órgão hierarquicamente distinto, e não por sua extração econômica e conversão em valor excedente a ser atribuída pelas "personificações do capital econômico" e do mercado (a famosa "mão invisível" de Adam Smith).

     Os países capitalistas avançados são os mais destrutivos e em muitos aspectos nos trazem de volta à condição da barbárie. A tendência é sempre resolver os problemas com guerras e destruições. Na Primeira Guerra, os aliados saíram vitoriosos, mas criaram Hitler. Além disso, a tendência do "capitalismo avançado" é a metamorfose de sua fase do pós-guerra caracterizada pelo "Estado de bem estar" (com sua ideologia de "benefícios universais de previdência" e a concomitante rejeição da "avaliação de rentabilidade"), em sua nova realidade de "previdência social dirigida": a designação atual da avaliação da rentabilidade, com suas cínicas pretensões de "eficiência econômica" e "racionalidade", adotadas até pelo antigo adversário social-democrata sob o slogan de "novo realismo". 

     O sistema de sociometabolismo do capital é o complexo caracterizado pela divisão hierárquica do trabalho, que subordina suas funções vitais ao capital. O capitalismo é uma das formas possíveis da realização do capital, uma de suas variantes históricas, presente na fase caracterizada pela generalização da subsunção real do trabalho ao capital, que Marx denominava como capitalismo pleno. Assim como existia capital antes da generalização do capitalismo (de que são exemplos o capital mercantil, o capital usurário, etc.), as formas recentes de sociometabolismo permitem constatar a continuidade do capital mesmo após o capitalismo, por meio da constituição daquilo que eu chamo de "sistema de capital pós-capitalista", de que foram exemplos a URSS e demais países do Leste Europeu. Esses países pós-capitalistas não conseguiram romper com o sistema de metabolismo do capital e a identificação conceitual entre capital e capitalismo fez que todas as experiências revolucionárias vivenciadas no século XX se mostrassem incapacitadas para superar esse sistema. Mas eu não me encontro entre os que se conformaram com essa fukuyamização pseudo-hegeliana que á a máxima do fim da história.

     Acredito que o socialismo é, sim, o nosso futuro. Porque o sistema que nós temos hoje está de fato destruindo a humanidade, destruindo a natureza, destruindo os recursos naturais. Porque se baseia no crescimento a todo custo e a todo preço. Entretanto, como penosas experiências históricas nos ensinaram, nosso problema não é simplesmente "a derrota do capitalismo". Mesmo à medida que esse objetivo possa ser atingido, com certeza será apenas uma realização instável, porque tudo o que pode ser destruído, pode também ser restaurado. A verdadeira - e muito difícil - questão é a necessidade de mudança estrutural radical. O sentido palpável de tal mudança estrutural é a completa erradicação do próprio capital do processo sociometabólico.

     O capital em si mesmo é um modo geral de controle; o que significa que ele ou controla tudo ou implode como um sistema de controle reprodutivo da sociedade. Consequentemente, o capital não pode ser controlado em alguns de seus aspectos, deixando de lado os demais. Todas as tentativas de medidas e modalidades para "controlar" as várias funções do capital em uma base duradoura falharam no passado. Tendo em vista sua falta de controle estruturalmente arraigada, o capital deve ser completamente erradicado. Este é o significado central do trabalho de toda a vida de Marx.

* Fonte: Revista Sociologia, edição 36, agosto-setembro/2011.
   Edição: Página 1917

** István Mészáros (Budapeste, 19 de dezembro de 1930 - Londres, 01 de Outubro de 2017) foi um filósofo húngaro e está entre os mais importantes intelectuais marxistas da atualidade. Professor emérito da Universidade de Sussex, na Inglaterra, onde ensinou filosofia por quinze anos, anteriormente foi também professor de Filosofia e Ciências Sociais na Universidade de York, durante quatro anos.

István Mészáros provém de uma família modesta, tendo sido criado pela mãe, operária, e, por força da necessidade, tornou-se ele também trabalhador em uma indústria de aviões de carga, quando mal entrava na adolescência. Com apenas doze anos, o jovem István alterou seu registro de nascimento para alcançar a idade mínima de dezesseis anos e ser aceito pela fábrica. Assim, como homem adulto, passava a receber maior remuneração que a de sua mãe, operária qualificada da Standard Radio Company (uma corporação transnacional estadunidense). A diferença considerável entre suas remunerações semanais foi a primeira experiência marcante e a mais tangível em seu aprendizado sobre a natureza dos conglomerados estrangeiros e da exploração particularmente severa das mulheres pelo capital.

Somente após o final da Segunda Guerra, em 1945, pôde de dedicar melhor aos estudos. Começou a trabalhar como assistente de Lukács no Instituto de Estética da Universidade de Budapeste, em 1951, e defendeu sua tese de doutorado, em 1954. Mészáros seria o sucessor de Lukács na Universidade, porém, após o levante húngaro de outubro de 1956 e com a entrada das tropas soviéticas na Hungria, exilou-se na Itália, onde lecionou na Universidade de Turim, indo posteriormente trabalhar na St. Andrews (Escócia), onde recebeu o título de Professor Emérito, em 1991. Fonte: Wikipédia




quinta-feira, 4 de junho de 2020

Aviso aos Navegantes*

     René Dreifuss**


     Fica evidente para o empresariado transnacional que a promoção dos seus interesses não se realizará unicamente pelo exercício do inegável poder econômico das suas empresas multinacionais baseado no volume, grau de concentração e integração produtiva, diversificação e infra-estrutura científico-tecnológica, assim como em sua estrutura oligopolística de mercado. É necessário, também, desenvolver uma competência organizacional própria e a capacidade política de influenciar, quando não determinar, as diretrizes macroeconômicas e políticas, orientando o mercado e as instituições estatais, no próprio país ou além de suas fronteiras¹. Além disso, é fundamental manter uma presença político-cultural nas diversas sociedades, que funcionam como verdadeiros palcos de operações do capital transnacional.

    Assim se dá, paralelamente à superação dos sistemas econômicos nacionais, um processo de transnacionalização de ação política das classes dominantes numa sequência histórica de complexidade crescente, fundamental para a realização do capitalismo global.

      A ação política das classes dominantes extravasa o âmbito nacional e, o que é mais importante, o faz não somente através dos seus aparelhos de estado nacional, mas pela viabilização de seu poder classista supranacional, através de articulações transnacionais proporcionadas pela densa rede organizacional de elites orgânicas existentes, tanto nos países “centrais” como nos “periféricos”.

     A elite orgânica, em sua dimensão organizacional para o planejamento e execução da ação política é um fenômeno do capitalismo avançado, ciente de si mesmo. Essas elites orgânicas – agentes coletivos e organizadores de ação estratégica transnacional, compreendendo milhares de empresários, profissionais liberais, acadêmicos, militares, dirigentes do alto escalão do governo e de empresas estatais, técnicos e administradores do aparelho estatal e alguns políticos – estruturam-se fora do âmbito do aparelho de estado e das organizações partidárias convencionais. Mais ainda: as elites orgânicas “superam” os partidos, tanto em capacidade estratégico-política quanto na profundidade das suas ações. Poderíamos dizer: os partidos burgueses visam o governo; as elites orgânicas visam o Estado².


 * A Internacional Capitalista; René Dreifuss;  p.265-266; Editora Espaço e Tempo; 1987.

**René Armand Dreifuss, Nascimento: 02/01/1945, Montevidéu – Falecimento: 04/05/2003, Rio de Janeiro.

 "René teve uma vasta e sólida formação intelectual formou-se em história e ciência política pela Universidade de Haifa, Israel. Obteve, na Grã-Bretanha, em 1974, sempre na área da ciência política, o título de mestre na Universidade de Leeds, e o de doutor na Universidade de Glasgow, Escócia, em 1980. Seu currículo exibe uma ampla e diversificada participação em palestras, seminários, conferências, simpósios etc., tanto no Brasil como no exterior. Poliglota (falava e escrevia em espanhol, português, inglês, francês, alemão e hebraico), publicou, em revistas brasileiras e internacionais, várias dezenas de artigos sobre assuntos políticos nacionais e latino-americanos, Forças Armadas e sociedade e, nos últimos tempos, cultivando a abordagem multidisciplinar, relações internacionais. Escreveu vários livros, sendo logo o primeiro um best-seller, que vem merecendo sucessivas edições, 1964: A Conquista do Estado (Vozes, 1981). Seguiram-se a Internacional Capitalista (Espaço & Tempo, 1986); O Jogo da Direita na Nova República (Vozes, 1989); Política, Poder, Estado e Força - Uma Leitura de Weber (Vozes, 1993); A Época da Perplexidade (Vozes, 1996)."  [Fonte]

Notas:

¹ R.A. Dreifuss, 1964, op. cit., pg. 49, 65-66, 104-105, 482-483.

² Grifo do editor: Página 1917

 

    

    

    


terça-feira, 2 de junho de 2020

A Origem do Homem*

Lima Barreto**
25/06/1921

Excelentíssimo Senhor doutor Charles Hill Tout, Los Angeles, Califórnia, M.E. Presente.
Lima Barreto
     Li num jornal daqui, um telegrama, naturalmente mandado expedir por uma das agências poderosas da nação de que Vossa Excelência é filho, que Vossa Excelência havia feito maravilhosas descobertas sobre a origem desta nossa pobre humanidade.

     Diz o citado telegrama que Vossa Excelência vai comunicar à Sociedade Real do Canadá essa sua extraordinária descoberta. Tenho como grande cousa essa sociedade real desde que ela asseverou a existência do Eozon canadensis e também a de trilobitas em todos os terrenos devonianos. Vossa Excelência sabe que, no Brasil, há terrenos devonianos sem haver trilobitas; mas o Instituto Americano de Investigações assevera que isso não é possível e vai decretar, por intermédio de Vossa Excelência, que existiu um tal fóssil chamado Eoanthopus ou o "homem do amanhecer", cujos vestígios Vossa Excelência tem na mão e com os quais Vossa Excelência pretende acabar com a teoria absurda de que nós todos temos a mesma origem.

     Eu não me abalo a contestar o telegrama de uma agência dos Estados Unidos; mas pondero que as maiores descobertas deste mundo, mesmo hoje, nunca foram transmitidas pelo telégrafo, com a pressa que mereceu a de Vossa Excelência.

     Se fosse negócio de câmbio, de jogo da bolsa, ou até as memórias sensacionais de Lady Asquith, eu via bem o interesse do telegrafo em transmitir a notícia. Entretanto não se trata de semelhante cousa, mas de monogenismo e poligenismo - cousas a que o próprio Assis Chateaubriand e o Leão Veloso, qualquer deles, estão pouco habituados a tratar.
     
     Como é então que a United Press ou o que for se apressara em transmitir a notícia do que Vossa Excelência havia descoberto antes o Pithecanthropus erectus; antes do homem da caverna do Neandertal, da do Cro-Magnon, um homem quase perfeito, nas dunas da Inglaterra?

     Nós estamos em época de guerra. Não há dia em que não nos cheguem telegramas, dizendo que, tal ou qual cidade dos Estados Unidos, se massacraram tantos ou quantos negros.

     Eu leio e fico pasmo; agora, porém, não fico, pois li o aviso telegráfico de Vossa Excelência e retive este trecho que aí vai, para edificação dos povos:
         "De acordo com o grande princípio singenético mais comumente conhecido como lei de Baer, sabemos que os crânios dos jovens da raça Neandertal e os jovens dos antropomorfos ou monos semelhantes ao homem, são diferentes dos de seus progenitores. O princípio demonstrado pela lei referida significa que a ontogenia  do individuo, ou história da evolução das espécimens recapitula a filogenia da raça ou história da evolução das espécies - é nisto que a lei de Baer faz luz sobre o problema - que os jovens de qualquer espécie representam mais verdadeiramente e intimamente que os adultos da espécie, o verdadeiro tipo ancestral de que provem".
     Toda esta embrulhada de Baer, antropomorfos, etc., etc., quer dizer que Vossa Excelência admite como justas as execuções em massa de negros e mulatos que se fazem comumente nos Estados Unidos.

     Fique, porem, Vossa Excelência certo que isso é uma cousa que lá se faz, mas há de haver lugares no mundo, em que, apesar do seu problemático homem das dunas da Inglaterra do tempo do plioceno, elas não se farão assim tão facilmente.

      Criado, etc.

* Feiras e Mafuás; Lima Barreto; Obras Completas; p. 87, Editora Brasiliense, 1956.

** Afonso Henriques de Lima Barreto, mais conhecido como Lima Barreto (Rio de Janeiro, 13 de maio de 1881 — Rio de Janeiro, 1 de novembro de 1922) foi um jornalista e escritor brasileiro, que publicou romances, sátiras, contos, crônicas e uma vasta obra em periódicos, principalmente em revistas populares ilustradas e periódicos anarquistas do início do século XX. A maior parte de sua obra foi redescoberta e publicada em livro após sua morte por meio do esforço de Francisco de Assis Barbosa e outros pesquisadores, levando-o a ser considerado um dos mais importantes escritores brasileiros. (Wikipédia)

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