25/06/1921
Excelentíssimo Senhor doutor Charles Hill Tout, Los Angeles, Califórnia, M.E. Presente.
Li num jornal daqui, um telegrama, naturalmente mandado expedir por uma das agências poderosas da nação de que Vossa Excelência é filho, que Vossa Excelência havia feito maravilhosas descobertas sobre a origem desta nossa pobre humanidade.
Diz o citado telegrama que Vossa Excelência vai comunicar à Sociedade Real do Canadá essa sua extraordinária descoberta. Tenho como grande cousa essa sociedade real desde que ela asseverou a existência do Eozon canadensis e também a de trilobitas em todos os terrenos devonianos. Vossa Excelência sabe que, no Brasil, há terrenos devonianos sem haver trilobitas; mas o Instituto Americano de Investigações assevera que isso não é possível e vai decretar, por intermédio de Vossa Excelência, que existiu um tal fóssil chamado Eoanthopus ou o "homem do amanhecer", cujos vestígios Vossa Excelência tem na mão e com os quais Vossa Excelência pretende acabar com a teoria absurda de que nós todos temos a mesma origem.
Eu não me abalo a contestar o telegrama de uma agência dos Estados Unidos; mas pondero que as maiores descobertas deste mundo, mesmo hoje, nunca foram transmitidas pelo telégrafo, com a pressa que mereceu a de Vossa Excelência.
Se fosse negócio de câmbio, de jogo da bolsa, ou até as memórias sensacionais de Lady Asquith, eu via bem o interesse do telegrafo em transmitir a notícia. Entretanto não se trata de semelhante cousa, mas de monogenismo e poligenismo - cousas a que o próprio Assis Chateaubriand e o Leão Veloso, qualquer deles, estão pouco habituados a tratar.
Como é então que a United Press ou o que for se apressara em transmitir a notícia do que Vossa Excelência havia descoberto antes o Pithecanthropus erectus; antes do homem da caverna do Neandertal, da do Cro-Magnon, um homem quase perfeito, nas dunas da Inglaterra?
Nós estamos em época de guerra. Não há dia em que não nos cheguem telegramas, dizendo que, tal ou qual cidade dos Estados Unidos, se massacraram tantos ou quantos negros.
Eu leio e fico pasmo; agora, porém, não fico, pois li o aviso telegráfico de Vossa Excelência e retive este trecho que aí vai, para edificação dos povos:
"De acordo com o grande princípio singenético mais comumente conhecido como lei de Baer, sabemos que os crânios dos jovens da raça Neandertal e os jovens dos antropomorfos ou monos semelhantes ao homem, são diferentes dos de seus progenitores. O princípio demonstrado pela lei referida significa que a ontogenia do individuo, ou história da evolução das espécimens recapitula a filogenia da raça ou história da evolução das espécies - é nisto que a lei de Baer faz luz sobre o problema - que os jovens de qualquer espécie representam mais verdadeiramente e intimamente que os adultos da espécie, o verdadeiro tipo ancestral de que provem".
Toda esta embrulhada de Baer, antropomorfos, etc., etc., quer dizer que Vossa Excelência admite como justas as execuções em massa de negros e mulatos que se fazem comumente nos Estados Unidos.
Fique, porem, Vossa Excelência certo que isso é uma cousa que lá se faz, mas há de haver lugares no mundo, em que, apesar do seu problemático homem das dunas da Inglaterra do tempo do plioceno, elas não se farão assim tão facilmente.
Criado, etc.
* Feiras e Mafuás; Lima Barreto; Obras Completas; p. 87, Editora Brasiliense, 1956.
** Afonso Henriques de Lima Barreto, mais conhecido como Lima Barreto (Rio de Janeiro, 13 de maio de 1881 — Rio de Janeiro, 1 de novembro de 1922) foi um jornalista e escritor brasileiro, que publicou romances, sátiras, contos, crônicas e uma vasta obra em periódicos, principalmente em revistas populares ilustradas e periódicos anarquistas do início do século XX. A maior parte de sua obra foi redescoberta e publicada em livro após sua morte por meio do esforço de Francisco de Assis Barbosa e outros pesquisadores, levando-o a ser considerado um dos mais importantes escritores brasileiros. (Wikipédia)
Nenhum comentário:
Postar um comentário