Wolfgang Streeck1
O cartaz está pregado na parede e ele já se encontra
aí há um bom tempo; nós é que temos de aprender a lê-lo. Eis a sua mensagem: o
capitalismo é uma formação social histórica; ele não tem apenas um começo, mas
tem também um fim.2 Três tendências se desenvolveram em paralelo no
conjunto das ricas democracias capitalistas desde a década de 1970: crescimento
em declínio, aumento da desigualdade de renda e de riqueza, assim como expansão
da dívida pública, privada e total. Hoje, essas três tendências parecem estar
se reforçando mutuamente: o baixo crescimento contribui para a desigualdade
através da intensificação do conflito distributivo; a desigualdade amortece o
crescimento, pois reduz a demanda efetiva; os altos níveis das dívidas
existentes obstruem os mercados de crédito, aumentando assim o risco de crises
financeiras; um setor financeiro inchado tanto resulta quanto contribui para a
desigualdade econômica, etc.
Já o último ciclo de crescimento, aquele ocorrido
antes de 2008, parece agora mais falso do que real3; ademais, a
recuperação ocorrida após 2008 continua anêmica na melhor das avaliações. Eis
que o estímulo keynesiano, monetário ou fiscal, deixou de funcionar em face da
quantidade sem precedentes das dívidas que foram acumuladas. Note-se que
estamos falando de tendências de longo prazo e não apenas de um desvio
contingente e momentâneo; estamos de fato tratando de tendências globais que,
enquanto tais, afetam o sistema capitalista como um todo. Nada à vista parece se afigurar como
suficientemente poderoso para contrariar essas três tendências, as quais se
enraizaram profundamente na economia e se tornaram fortemente entrelaçadas
entre si.
Além disso, quando olhamos para trás, vemos uma
sequência de crises políticoeconômicas, as quais começaram com a inflação na
década dos anos 1970; a esta se seguiu uma explosão da dívida pública nos anos
1980 e um rápido aumento da dívida privada na década subsequente, do qual
resultou o colapso dos mercados financeiros, em 2008. Note-se que essa
sequência se repetiu quase do mesmo modo para todos os principais países
capitalistas cujas economias, aliás, nunca estiveram realmente equilibradas
desde o final do período de grande crescimento, no pós-guerra. Todas as três
crises começaram e terminaram da mesma forma, isto é, mediante processos
inflacionários: se as dívidas pública e privada serviram inicialmente como
soluções políticas convenientes para os conflitos distributivos entre o capital
e o trabalho (e, às vezes, também, para outras partes, tais como os países
produtores de matérias-primas), elas acabaram se tornando problemas também:
inflação de preços no começo dos anos 1980, inflação da dívida pública numa
primeira fase de consolidação na década de 1990 e inflação da dívida privada,
depois de 2008.4 Atualmente, a política econômica corretiva é
chamada de “relaxamento monetário”5; eis que ela consiste,
essencialmente, na emissão de dinheiro pelos tesouros e pelos bancos centrais
com a finalidade de manter baixas as taxas de juros. É assim que se busca
manter sustentável a dívida acumulada no passado, evitando também que a
economia estagnada caia na deflação. Essa correção tem, porém, preço: ela gera
mais desigualdades; propicia também que surjam novas bolhas nos mercados de
ativos, os quais podem, num momento decisivo, entrar em colapso.
A natureza fundamental da crise apareceu quando as
cabeças dirigentes do capitalismo ficaram sem rumo. Elas se encontram agora
limitadas a procurar sempre novos tapa-buracos provisórios até que a próxima
surpresa desagradável apareça. Os bruxos dos mercados perderam a sua sabedoria.
Por quanto tempo o relaxamento monetário pode ainda continuar? O problema é a
deflação ou a inflação? Até que ponto é possível detectar uma bolha antes que
exploda? O crescimento é restaurado através do gasto ou por meio de um corte
dos gastos? Uma regulação financeira mais rigorosa é favorável ou prejudicial
ao crescimento?6 Até meados dos anos 1970, o crescimento resultou da
redistribuição da renda de cima para baixo; então, após o keynesianismo ter
sido substituído pelo hayekianismo, o oposto tornou-se verdade e, assim, os
mercados ficaram livres para redistribui-la de baixo para cima. Agora, sete
anos após a catástrofe de 2008, ainda não apareceu uma nova fórmula de
crescimento; a confusão governa as opiniões. O capitalismo administrado pelo
Estado falhou, isto é, ele foi rejeitado pelos donos do capital porque lhes
pareceu demasiado caro; foi substituído por um capitalismo de livre mercado,
mas este também falhou. Por enquanto, os bancos centrais agem como reguladores
à espera de um novo rumo de governo. Mas qual seria ele? A propósito, qual
seria a receita capaz de dar sustentação às empresas capitalistas como um todo?
Sugiro que o capitalismo, após mais de 200 anos,
tornou-se insustentável porque se tornou ingovernável. Por trás desse distúrbio
está aquilo que veio a ser sumariamente chamado de "globalização": a
expansão das relações capitalistas de mercado para além do alcance dos governos
unificou o capitalismo, mas fragmentou a ação política coletiva. Embora isso
possa parecer a vitória final do capitalismo, o que até certo ponto é, ao mesmo
tempo vem a ser também o prenúncio de sua morte. Ao contrário do que Mandeville
indicou em sua 'Fábula das Abelhas'
(1988 [1714]), e do que Adam Smith sugeriu com sua metáfora menos provocativa
da "mão invisível" (1993 [1776]), a conversão capitalista dos vícios
privados em virtudes públicas subscreve uma sociedade estável apenas se ela
funciona na presença de fortes instituições formais e informais que restringem
a "ordem do egoísmo" inerente ao mercado (Dunn, 2005), sujeitando-a à
disciplina social. Ao suplantar as capacidades coletivas que poderiam
governá-lo, o capitalismo obteve uma vitória de Pirro. Que não haja hoje
nenhuma alternativa a ele, nenhuma força anticapitalista unificada globalmente,
é tanto uma benção quanto um dilema para o capitalismo. Note-se que em momentos
cruciais da história do capitalismo, era a oposição a ele que o estabilizava
enquanto sociedade: movimentos regionais, nacionais ou religiosos preservavam a
coesão social e, assim, a cooperação e a troca relativamente equânime; os
estados de bem-estar socialdemocratas e os sindicatos neles abrigados
asseguravam uma demanda suficiente na esfera econômica, assim como uma
reprodução social tranquila na esfera do mundo da vida e da política.
O ocaso simultâneo do governo que efetivamente
governa, assim como da oposição consequente, no capitalismo contemporâneo vem
produzindo uma falha crescente no sistema de integração, o que, por sua vez,
está gerando uma transformação acelerada da própria integração social
(Lockwood, 1964). A ingovernabilidade global tem causado uma profunda erosão
dos regimes sociais no encontro frontal dos mercados capitalistas com o que
Karl Polanyi chamou de as três “mercadorias fictícias", o trabalho, a
terra e o dinheiro. Enquanto o desenvolvimento capitalista, de acordo com Polanyi,
tem como finalidade última mercantilizar tudo, ele só pode ir sempre em frente
desde que seja impedido pela sociedade de submeter à sua lógica aquilo que
somente pode mercantilizar em seu próprio prejuízo. Proteger o trabalho, a
terra e o dinheiro da dinâmica do desenvolvimento capitalista exige um governo
capaz de atuar incisivamente; uma mera "governança" subsidiária dos
mercados não é suficiente (Offe, 2008) para impedir o capitalismo de ir longe
demais e, assim, minar a si mesmo.
A fraqueza dos governos atuais é evidente no que diz
respeito à natureza, pois as políticas fragmentadas do capitalismo global têm
se revelado incapazes de conter o consumo e a destruição do ambiente natural.
Da mesma forma, a produção competitiva de dinheiro por parte dos governos,
bancos centrais e instituições financeiras tornou-se uma poderosa fonte de
incerteza e uma ameaça permanente para a estabilidade sistêmica. Na esfera do
trabalho, os regimes tradicionais de emprego do pós-guerra projetados para
proteger os trabalhadores e suas famílias de pressões excessivas do mercado
estão desaparecendo nos países capitalistas avançados. Abre-se cada vez mais o
caminho para os empregos precários, contratos zero horas, trabalhos “freelancer” e “standby” em empresas
globais tais como o Uber – um sistema de subsunçao que funciona quase
inteiramente sem os vínculos empregatícios regulares.7 Os riscos do
emprego estão sendo privatizados e individualizados; a vida e o trabalho estão
se fundindo e se tornando indistintos. Os sindicatos estão se tornando
irrelevantes ou deixando de existir em muitas indústrias e mesmo em certos
países. Assim, não há nada para suavizar o impacto da mudança tecnológica que
avança mais rapidamente do que nunca para reorganizar o trabalho – ou para
desorganizá-lo. A inteligência artificial, por exemplo, está tornando
redundante uma ampla classe de ocupações medianas, o que não deixa assim de
destruir todo o modo de vida da classe média.8
Em um artigo anterior (Streeck, 2014), identifiquei
cinco distúrbios do capitalismo contemporâneo, os quais tomo como não passíveis
de reparos; cada um deles responde por um aspecto diferente do processo de
desintegração em curso: a estagnação
secular, que é o culminar de um longo declínio das taxas de crescimento9;
o neo-feudalismo oligárquico que
funde o poder político com o poder econômico e que atualmente existe não apenas
na Rússia, Ucrânia e China, mas também no Ocidente, particularmente nos EUA10
– um avanço que dissocia o destino dos
ricos do destino dos pobres; a pilhagem
da economia pública por meio da consolidação fiscal e da privatização dos
serviços públicos, a qual era tanto um contrapeso indispensável como uma
infraestrutura de apoio ao capitalismo (Bowman et al, 2014.); a desmoralização sistêmica; e a anarquia internacional. Por razões de
espaço, tratarei brevemente aqui somente desses dois últimos distúrbios.11
Falo em primeiro lugar da desmoralização sistêmica.
Ao contrário da fábula de Mandeville, sob o capitalismo financerizado, os
vícios privados tornam-se também vícios públicos. E isto vem privar o
capitalismo de sua última forma – consequencialista – de justificação moral. E
é assim, mesmo se os proprietários e gestores do capital privado se apresentam
agora como administradores de bens públicos, benfeitores da sociedade que
praticam – sempre muito bem divulgadas – ações filantrópicas. Eis que um
cinismo generalizado se encontra agora profundamente enraizado no senso comum
coletivo; concebe-se o capitalismo em curso como uma estrutura de oportunidades
para os muito ricos bem conectados tornarem-se ainda mais ricos. Enganar na
busca do lucro é considerado normal, algo que não suscita mais qualquer
indignação moral. Isto é válido sobretudo no mundo das finanças, onde os
maiores lucros são feitos por meio de evasão fiscal ou violando totalmente as
regras legais, por meio da obtenção de informações privilegiadas, da concessão
de empréstimos hipotecários impagáveis ou quaisquer outros expedientes.12
Só nos EUA, até junho de 2015, os bancos, mediante
acordos fora do sistema jurídico, tinham concordado em pagar cerca de 100
bilhões de dólares em taxas por infrações legais ligadas à crise financeira de
2008.13 Nenhum dos casos chegou ao julgamento e ninguém tinha ido
para a prisão até aquele momento. Ora, isto demostrou haver uma profunda
empatia do sistema jurídico com a necessidade de as instituições financeiras
violarem a lei, a fim de obterem lucros.14 Na verdade, seria preciso
adicionar os honorários dos advogados às taxas de liquidação para se ter uma
noção das multas que teriam sido auferidas por meio de uma justa condenação num
processo legal sério. Uma parte considerável desses dois pagamentos,
entretanto, foi declarada para fins fiscais como despesas dos negócios.15
Em segundo lugar, historicamente, o capitalismo
requereu a existência de uma ordem internacional estável mantida por uma
potência hegemônica. Este papel foi exercido primeiro por Florença, tendo sido
passado depois, por meio dos Países Baixos, para a Grã-Bretanha e, depois
ainda, no pós-guerra, para os EUA. Quando a posição hegemônica foi contestada
ou ficou vaga, como na primeira metade do século XX, o conflito se tornou
galopante, sendo então acompanhado por perturbações econômicas graves. Desde os
anos 1970, os EUA têm se mostrado cada vez menos capazes e mesmo menos
dispostos a oferecer os bens coletivos que se espera de um país capitalista
hegemônico; em vez disso, eles se tornaram parasitas da economia global.
Uma solução cooperativa do problema da ordem
internacional, por exemplo, por meio da partilha de poder entre os EUA e a
China não está à vista. Na periferia do sistema capitalista mundial, os EUA
perderam várias guerras sucessivas; o desenvolvimento democrático-capitalista,
ou seja, a “construção nacional”, falhou em grandes partes do mundo. Em vez do
projeto do pós-guerra de um sistema global de Estados soberanos, o qual
abrangeria todo o globo, grandes e crescentes territórios tornaram-se “sem
Estado”. Em muitos deles, os movimentos religiosos fundamentalistas assumiram o
controle, rejeitando o modernismo e o direito internacional; eis que passaram a
buscar uma alternativa ao consumismo do capitalismo contemporâneo, do qual eles
não podem mais esperar que venha trazer quaisquer benefícios aos seus países.
Cada vez mais, alguns desses movimentos encontram aliados no Norte global, em
particular entre os imigrantes do Sul aí residentes, que respondem à sua
exclusão social e econômica transportando as guerras da periferia para o
centro.
Como pode o capitalismo terminar sem que uma nova
sociedade esteja aí para tomar o seu lugar? Para entender isso, devemos
abandonar a ideia de uma sucessão ordenada das formações sociais, isto é, a
expectativa histórico-materialista de que uma sociedade morre para dar à luz a
uma nova e mais avançada, incluindo-se nessa falácia a tese bolchevique de que
uma ordem social termina apenas quando uma ordem social distinta é posta em
prática pelo comitê central de um partido revolucionário vitorioso.
Ao mesmo
tempo, devemos também tomar cuidado para não sermos vítimas de um equivalente
contemporâneo do que poderia ser chamada de Ilusão
Ravena: a profunda convicção das classes dominantes do Império Romano do
Ocidente, no século V, na imortalidade predeterminada de sua civilização. Ela
foi tida como inabalável mesmo depois que o seu território havia sido reduzido
à pequena cidade de Ravena, na costa do Adriático; como essa urbe estava
circundada por pântanos, isto lhes concedeu um adiamento da derrocada final no
mesmo momento em que as hordas germânicas estavam ocupadas saqueando Roma,
assim como as províncias do Império Ocidental. Convencidas de que a vida
poderia, eventualmente, voltar ao que sempre tinha sido, as famílias dos governantes
de Roma, em seu refúgio em Ravena, ocuparam-se com intrigas a respeito da
sucessão no Império.16 É preciso aprender com este exemplo que o
otimismo pode, por vezes, decorrer não mais do que de falta de imaginação. É
preciso considerar a possibilidade de que uma ordem social possa resultar, não
em outra ordem, mas em uma duradoura desordem – isto é, numa época histórica de
duração incerta em que, nas palavras de Antônio Gramsci, "o velho está
morrendo, mas o novo ainda não pode nascer”.17
Como pode ser a vida num tempo como este? De acordo
com Gramsci, o colapso de uma ordem social na ausência de uma sucessora pode
dar origem a "um interregno em que os fenômenos patológicos de todos os
tipos passam a existir”18 – em outras palavras, cai-se numa
sociedade desprovida de instituições coerentes capazes de normalizar a vida de
seus membros, protegendo-os de acidentes e de anomalias de todos os tipos. A
vida em um tal interregno se caracteriza pela falta de determinação estrutural19
em que tudo então se torna imprevisível. Uma sociedade como essa não consegue
fornecer aos seus membros regras confiáveis por meio das quais possam se
organizar: em vez disso, ela demanda constante improvisação, faz com que os
indivíduos substituam um comportamento estruturado por um comportamento
meramente estratégico – situação esta que oferece oportunidades excepcionais
para oligarcas e senhores da guerra de todos os tipos passarem a forçar a
maioria a viver em situação de insegurança, incerteza e anomia. Forja-se,
assim, uma situação muito parecida com aquela do longo interregno que começou
no século V e que agora é chamado de Idade Negra.
O sistema de integração no capitalismo contemporâneo
encontra-se num estado instável de mudança, o qual não parece levar a uma nova
ordem estável. Turbulência e imobilidade, dinâmica e estagnação estão se
tornando correlatos próximos. Este tipo de estrutura social alimenta um tipo de
indivíduo social (Gerth e Mills, 1953): o indivíduo individualista,
intencionalmente autossuficiente, de-socializado, que se fia apenas na
autopoliciada governamentalidade neoliberal (Foucault, 2008) para compensar a
ausência de governo e a debilidade da governança. Nesse mundo social
indeterminado emerge uma estrutura social anômala; ou melhor, aquela que existe
é substituída por uma malha de indivíduos auto interessados e improvisadores
que se movem em redes constituídas por relações oportunistas. Tem-se, assim,
uma sociedade Ersatz de usuários ao
invés de uma sociedade formada por membros integrados. Construída a partir de
baixo, parece ter se elevado com base em uma riqueza libertária de
alternativas, a qual é vendida ideologicamente como um grande parque de
diversões. Porém, na verdade, ela reflete apenas a ausência destrutiva da ordem
social.
A sociedade fraturada que impera no interregno
pós-capitalista está desprovida de legitimação normativa – ela transformou a
responsabilidade com um fim em si mesmo em escolhas racionais de seus membros
como indivíduos, deixando-os sem instrução de como fazer boas escolhas. Embora
isso possa ser e seja apresentado como libertação, na realidade do
pós-capitalismo, o espaço das normas e das instituições sociais é tomado pela ganância e pelo medo. E estes dois
sentimentos funcionam então como mecanismos últimos do controle social. Juntos,
eles alimentam a “autoeconomização” e a “auto-mercantilização” dos próprios
indivíduos que lutam para se manterem adaptáveis às formas imprevisíveis de
evolução das circunstâncias. Eles buscam, então, o incansável investimento
competitivo na própria "flexibilidade" e no próprio "capital
humano". Querem maximizar a sua aptidão na imaginada meritocracia do
mercado "livre" – que é, na
verdade, um mundo explodindo em desigualdades. A autossuficiência entra na
ordem do dia, mesmo se – e precisamente porque – alguns têm muito mais “si
mesmo” para confiar do que outros.
No pós-capitalismo, a obtenção de lucro privado terá
continuidade, mesmo sob a sombra da incerteza que prosperará em uma sociedade
marcada pela anomia, com instituições decadentes, de reduzida coerência, crises
sucessivas, atravessada por conflitos e contestações locais ou de maior âmbito.
A cooperação da massa com a acumulação de capital será impulsionada por uma
cultura de consumo competitivo. Em grandes partes da Ásia, essa cooperação
parece estar baseada hoje num profundo conformismo coletivo. Porém, ela
precisará estar vigilantemente protegida contra a subversão da mudança
pós-materialista do valor, senão devido ao encolhimento do poder de compra. A
vida dos indivíduos nesse interregno pós-capitalista em que imperará o “sauve
qui peut” seguirá as prescrições comportamentais da doutrina neoliberal (Dardot
e Laval, 2013). E isto significa que será necessário queimar até a raiz os
fundamentos de uma economia e sociedade bem-sucedidas.
Como se sabe, a vida social não pode ser reduzida à
vida econômica e a vida econômica não é possível fora de uma sociedade que a
abrigue. A proposição de número doze da obra A dimensão moral de Etzioni (1988, p. 257) aplica-se aqui:
"Quanto mais as pessoas aceitam o paradigma neoclássico como guia para o
seu próprio comportamento [e não apenas como uma apologia conveniente do
sistema econômico da relação de capital], mais a capacidade coletiva de manter
uma economia de mercado será prejudicada”. O futuro do capitalismo afigura-se
sombrio.
*Edição: Página 1917
Fonte: https://eleuterioprado.blog/about/wolfgang-streeck-do-futuro-sombrio-do-capitalismo/
Notas:
1
Pesquisador do Instituto Max-Planck para o Estudo das
Sociedades, situado em Colônia, na Alemanha. Correio eletrônico:
streeck@mpifg.de.
2
O que se segue é uma versão atualizada e condensada de
um artigo bem mais longo antes publicado (Streeck, 2014). Veja-se também o
futuro livro, How will capitalismo end?,
a ser publicado pela Verso, em setembro de 2016.
3
Lawrence "Larry" Summers, chefe dos
mecânicos da máquina de acumulação de capital norteamericana, disse o seguinte
no Fórum Econômico do FMI, em novembro de 2013: "Ao se voltar a estudar a
economia antes da crise, ver-se-á algo um pouco estranho. Muitas pessoas
acreditam que a política monetária então praticada era demasiado frouxa. Todos
concordam que ocorreu um grande volume de empréstimos
imprudentes. Quase todos concordam que a riqueza, tal como era experimentada
pelas famílias, afigurava-se superior ao que era em realidade. Muito dinheiro
fácil, demasiados empréstimos, muita riqueza. Parecia haver um grande boom! A
utilização da capacidade não estava sob qualquer grande pressão; o desemprego
não estava em um nível extremamente baixo; a inflação mostrava-se totalmente
quieta; de alguma forma, mesmo uma grande bolha não parecia suficiente para
produzir qualquer excesso da demanda agregada".
Texto disponível em
https://m.facebook.com/notes/randy-fellmy/transcript-of-larry-summers-speechat-theimf-economic-forum-nov-8-2013/585630634864563,
último acesso 12 de agosto de 2015.
4
Desde então, o débito total continuou crescendo.
Veja-se o relatório do McKinsey Global Institute (2015). Muita retórica
keynesiana tem sido despejada para rebaixar os riscos inerentes desse
crescimento, embora o débito não seja propriamente do tipo keynesiano já que
tem se acumulado por décadas.
5
N. T. Em inglês: “quantitative
easing”.
6
Paul Krugman, o ideólogo favorito do keynesianismo de
centro-esquerda, é um caso interessante. Ao comentar no New York Times (16 de novembro de 2013) o 'pronunciamento’ de
Summers sobre a “estagnação secular" (ver nota 2), ele começa
parafraseando Keynes. Eis que este havia dito: "todo gasto é bom; caso a
despesa seja produtiva, é ainda melhor, mas um gasto improdutivo é melhor do
que nada”. Daí ele deriva a afirmação de que "o dispêndio privado, mesmo
que seja total ou parcialmente um desperdício", ainda assim pode ser
"uma coisa boa". Para ilustrar essa afirmação, Krugman completa: "suponha-se que as empresas americanas,
que estão atualmente sentadas em uma enorme montanha de dinheiro, fiquem de
alguma forma convencidas de que seria uma ótima ideia transformar todos os seus
empregados em ciborgues, munindo-os com Google Glass e relógios inteligentes.
Suponha, também, que três anos depois elas venham a perceber que não obtiveram
realmente recompensa substantiva por todos esses gastos. Apesar disso, o boom
de investimentos que fora produzido teria proporcionado vários anos de emprego
mais elevado, sem desperdício real, já que os recursos utilizados, em caso
contrário, teriam ficados ociosos”. A respeito de bolhas, ele diz:
"sabemos agora que a expansão econômica entre 2003 e 2007 foi impulsionada
por uma bolha. É possível dizer o mesmo sobre a última parte da expansão dos
anos 90; é possível ainda de fato afirmar o mesmo sobre os últimos anos de
expansão da era Reagan; esta foi produzida por uma fuga das instituições de
poupança, a qual gerou uma grande bolha no setor imobiliário comercial...” Tudo
isso, de acordo com Krugman, tem "algumas implicações radicais", dentre
elas, conforme Summers, a seguinte: "muito do que poderia ter sido feito
para evitar uma crise futura teria sido contraproducente" diante das novas
circunstâncias. Uma outra implicação seria a seguinte: "mesmo uma melhora
da regulação financeira não seria necessariamente uma coisa boa", pois
"poderia desencorajar empréstimos irresponsáveis, os quais se justificam
num momento em que mais gastos de quaisquer espécies seriam bons para a
economia". Além disso, poderia ser interessante "para reconstruir o
nosso sistema monetário como um todo – digamos, eliminando o papel-moeda e
pagando taxas de juros negativas sobre depósitos", etc.
Texto disponível em: http://krugman.blogs.nytimes.com/2013/11/16/secular-stagnation-coalminesbubbles-and-larry-summers/?_r=0,
último acesso em 4 de agosto de 2015.
7
O Uber oferece um bom exemplo sobre a evolução das
condições de emprego. Veja-se, por exemplo, o artigo Rising Economic Insecurity
Tied to Decades - Long Trend in Employment Practices, The New York Times, 12 de julho de 2015. De acordo com o relatório
citado nessa matéria de jornal, mais de 160.000 pessoas nos EUA dependiam só do
Uber para manter a própria subsistência; destes, apenas 4.000 eram empregados
regulares.
Texto disponível em
http://www.nytimes.com/2015/07/13/business/rising-economic-insecurity-tied-todecades-long-trend-in-employment-practices.html?smid=li-share&_r=0,
acessado pela última vez em 4 de agosto de 2015.
8
Randall Collins, The
end of middle-class work: no more escapes, p. 37-69. In: Wallerstein et al,
2013.
9
Um recurso retórico frequentemente usado para
minimizar a magnitude da crise de crescimento, em particular aquela que seguiu
ao colapso financeiro de 2008, consiste em apontar os assim chamados BRICS
(associação formada pelos seguintes países: Brasil, Rússia, Índia, China e
África do Sul) como os futuros centros de crescimento do capitalismo global.
Pode-se lembrar, no entanto, que o rótulo BRICS foi inventado por um vendedor
de títulos do Goldman Sachs, no início de 2000, como uma marca para um novo fundo
de investimento. Nesse entretempo, porém, esses cinco países não conseguiram
contribuir para a coordenação global da economia capitalista; eis que não foram
capazes de começar a assumir as responsabilidades dos EUA – país hegemônico em
declínio que tem atuado de modo crescentemente irresponsável. Eles mesmos,
aliás, entraram também em crise; até mesmo a China tem experimentado
dificuldades pois aí as taxas de crescimento estão em queda, os preços das
ações estão caindo, as dívidas têm crescido rapidamente e se observa um aumento
da corrupção sistêmica.
10 De acordo
com o New York Times, "menos de
quatro centenas de famílias" eram "responsáveis por quase metade do
dinheiro arrecadado na campanha presidencial de 2016, uma concentração de
doadores políticos sem precedentes nos últimos tempos". No final de julho
do ano pré-eleitoral de 2015, as contribuições totais da campanha ascenderam a
388 milhões de dólares. Veja-se o artigo Small pool of rich donors dominates
election giving, The New York Times,
01 de Agosto de 2015.
Texto disponível em
http://www.nytimes.com/2015/08/02/us/small-pool-of-rich-donors-dominateselection-giving.html?_r=0,
último acesso em 12 de agosto de 2015.
11 Vale
mencionar que estagnação é uma desordem pelo menos tão severa quanto outras
arroladas. Politicamente isso significa que a crescente população excedente nos
países capitalistas ricos, incluindo os imigrantes de segunda e terceira
gerações, não terá possibilidade de recuperar o atraso em relação ao conjunto –
decrescente – daqueles que estão se dando bem. O mesmo se aplica à geração
perdida e àqueles que aspiram se tornarem membros das classes médias nos
territórios em expansão governados – ou não governados – por estados em
processo de falência. O capitalismo, como se sabe, está baseado sobretudo na
esperança de uma vida melhor no futuro. Ele tem isto em comum com o
cristianismo. A fé no capitalismo e seu sistema financeiro depende também, além
do "crescimento sem fim", de outras promessas tais como
externalidades inócuas, habilidades universais, aumentos constantes da
produtividade, demanda inesgotável, o consumo insaciável... e sustentabilidade
das montanhas das dívidas. Nenhuma delas se verifica no mundo real.
Texto disponível em
http://uklife.org/2015/01/15/promises/, acessado pela última vez em 12 de
agosto, 2015).
12 Sobre os
salários de gerentes, consulte-se Neckel (2014). Considere-se também o
atletismo profissional, uma atividade que se tornou uma enorme indústria global
nas últimas décadas e que tem sido financiada principalmente por anúncios de
bens de consumo. Pode-se assumir com certa segurança que em suas principais
modalidades, incluindo a natação e o atletismo, mas também o ciclismo, os
principais concorrentes rotineiramente usam serviços de especialistas em
super-desempenho, os quais usam de meios ilegais.
13 Frankfurter
Allgemeine Zeitung, 29 de junho, 2015.
14 Eric
Holder, para exercer o seu mandato de procurador geral nos Estados Unidos,
entre 2008-2014, afastou-se temporariamente de um escritório de advocacia que
costumava representar as empresas de Wall Street. Antes de assumir esse cargo,
ele ganhava cerca de 2,5 milhões de dólares por ano. Em 2015, ele retomou o seu
cargo no mesmo escritório. Veja-se Eric Holder, Wall Street Double Agent, comes
in from de cold, Rolling Stone, 8 de
julho de 2015.
Texto disponível em
http://www.rollingstone.com/politics/news/eric-holder-wall-street-double-agentcomes-in-from-the-cold-20150708,
último acesso 12 de agosto de 2015. É claro que o presidente Obama, que nomeou
Holder, obteve de um terço à metade das contribuições para a sua campanha
eleitoral à presidência dos Estados Unidos da indústria financeira.
15 Para
entender a ordem de magnitude, é preciso lembrar da ação legal dos promotores
americanos contra a associação internacional do futebol sediada na Suíça
futebol, FIFA. Com enorme publicidade, ela foi processada, no início de 2015,
por corrupção. A receita da FIFA nos 6 anos em questão havia sido de cerca de 5
bilhões de dólares, dos quais talvez 1 bilhão fora usado ilegalmente (embora
não se saiba os montantes exatos da corrupção). Esse montante seria igual a 1%
do valor pago pelos bancos americanos para se livrarem dos processos criminais.
16 Gibbon
(1993 [1776]), volume 3, p. 218 em diante.
17 Tal como
diz ele em seus Cadernos do Cárcere:
“La crisis consiste nei fato che il vecchio muore e il novo non può nascere...”
18 Diz ele:
“...in questo interregno si verificano i fenomeni morbosi più svariati”.
19 De modo
similar, ver o que diz Calhoun em seu artigo no livro excelente de Wallerstein
et al. (2013).
Referências
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