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domingo, 4 de dezembro de 2022

OUTROS SINTOMAS, A MESMA DOENÇA!

 Nota dos Editores: 

Em sua recente primeira entrevista coletiva à imprensa lusitana (em 15-11-2022), o novo Secretário Geral do Partido Comunista Português, Paulo Raimundo, fez um convite público à volta ao partido dos chamados “renovadores”, que no final do século passado foram excluídos do PCP, após uma crise na qual se debateram em luta interna contra os dirigentes tidos por eles como “ortodoxos”.

Na ocasião, o atual Secretário Geral declarou que “uma parte das pessoas que saíram do PCP, incluindo os chamados renovadores, faz cá muita falta porque as suas opiniões são válidas para construir um partido que nós queremos mais forte”.

O texto que aqui divulgamos (“Outros sintomas, a mesma doença!”), publicado de forma anônima no blog português “Que Fazer?”, em maio de 2019, é premonitório, ao analisar o processo de social-democratização do PCP então em curso. Ei-lo: 


“Os militantes que ousam dar uma opinião franca divergente da cartilha oficial, são ostracizados e perseguidos através de métodos eticamente condenáveis”.

 

“Os militantes e quadros assim educados reproduzem no Partido a hierarquia da sociedade, vendo os dirigentes como chefes e vendo-se a si mesmos como os que têm de obedecer ao “chefe”, independentemente de estarem ou não de acordo com ele e sem discussão, esperando com isso “cair nas suas boas graças”.



A política de quadros, a par da linha política, é a pedra de toque de um partido revolucionário. Sabemos pela história do nosso próprio Partido e pela história de outros partidos comunistas que, se existe uma linha política desviada, logo se instalam métodos e estilos de trabalho erróneos. Assim aconteceu com o desvio de direita que precedeu o VI Congresso do Partido (1965), que corrigiu ambos. Os métodos de trabalho eram liberais e introduziam perigos que facilitavam a ação da polícia política, enquanto a linha política defendia uma rutura pacífica com o fascismo. 

Hoje, os desvios dos métodos e estilos de trabalho assumem características um pouco diferentes: existem métodos antidemocráticos misturados com liberalismo, ao mesmo tempo que se defende uma passagem pacífica, etapista, do capitalismo para o socialismo. 

O camarada Álvaro Cunhal, no seu livro O Partido com paredes de vidro, define o que é um quadro do Partido, noção bastante ampla, que abrange não só os dirigentes e funcionários do Partido como todos os militantes que assumem uma tarefa e a desenvolvem com regularidade. Todos os militantes que conviveram com aquela geração de homens e mulheres que entregaram a sua vida à causa do socialismo e, consequentemente, à luta contra o fascismo, aprenderam com eles como deve ser um militante, um quadro, um dirigente (a qualquer nível). 

Os militantes, mesmo os desconhecedores do que era o Partido, era dentro dele que aprendiam. Como? Nas reuniões e na prática das tarefas. Nas reuniões discutia-se a situação política numa perspetiva materialista, marxista-leninista, o que proporcionava que o militante nunca perdesse a perspetiva da luta pelo socialismo, consolidasse a sua confiança nessa causa e elevasse o seu nível político e ideológico, mesmo que nunca tivesse lido as obras dos clássicos. 

Não se perdia o norte quanto ao momento político que se enfrentava e o ponto para que se dirigia a ação, isto é, discutia-se constantemente a tática e a estratégia do Partido. Quando se sofria revezes ou derrotas, a força do coletivo e a perspetiva da vitória final dos trabalhadores dava força e ânimo para a continuação da luta. Quando se tratava de resultados eleitorais insatisfatórios, nenhum comunista se desanimava, porque se sabia que não era a via eleitoral que conduzia ao socialismo. Quando uma luta não era vitoriosa, sabia-se que muitas lutas estariam por vir e havia força para as continuar. 

A prática e a execução das tarefas, quaisquer que fossem, enriqueciam e formavam os militantes. Um camarada tanto podia colar um cartaz, sabendo em que processo de luta esse ato se inscrevia, como redigir um complexo documento para uma assembleia de organização, ou montar estruturas na Festa do Avante.

Com o devido substrato político e ideológico, as tarefas eram discutidas, distribuídas e objeto de controlo de execução. Hoje as tarefas são distribuídas sem discussão política e assumem um caráter rotineiro, burocrático, meramente formal. Como não existe compreensão política do que se está a fazer, obviamente que elas ou não são cumpridas ou são-no mal. De resto, a atitude do “deixa-andar” (é neste sentido que falamos de liberalismo) decorrente da falta de motivação revolucionária de cada membro ou quadro do Partido –, porque se deixou de acreditar no objetivo final, ou porque se considera que as reformas do capitalismo são o bastante, ou porque o socialismo está no lugar da utopia, tão distante que não vale a pena falar dele – é o ambiente geral. 

Existe todo um ambiente/atitude em que as questões são apreendidas apenas como forma, sem o seu conteúdo. Isto explica os problemas das “metas”, das “campanhas” e do lado quantitativo dos objetivos. Por exemplo, quando se prepara uma assembleia, considera-se alcançado o objetivo se se realizaram 20 ou 30 reuniões, sendo mínima a preocupação com o seu conteúdo e com o contributo crítico ou autocrítico que deram ou não deram para a elaboração da resolução final. 

Este ambiente intelectual geral dentro do Partido leva àquilo a que se pode chamar desideologização da ação, algo muito semelhante ao que Lenine combatia e denunciava em Bernstein, quando este defendia que “o movimento é tudo, a meta final nada”. 

A falta de democracia interna tem resultados letais. O camarada A. Cunhal dizia que ter de se apelar constantemente aos Estatutos revelava que algo estava mal. E é completamente verdade. Agora apela-se constantemente à “disciplina” e vigiam-se os “likes” dos camaradas no facebook. Mas se aparecem no facebook coisas que, em circunstâncias normais num partido revolucionário, não se diriam e que muito indignam alguns dirigentes e camaradas, estes só têm de se queixar de si próprios, porque os camaradas dizem em público aquilo que sabem que não é tido em conta (ou é objeto de ataque com o argumento da autoridade, do género “isso já está definido”). Isto é, no PCP não há disciplina revolucionária, livremente aceite e compreendida, mas a disciplina de caserna que o camarada Cunhal tantas vezes criticou. A exigência do cumprimento dos Estatutos tem, agora, de ser colocada em primeiro lugar, para defender a liberdade e o direito que todos os militantes têm de dar a sua opinião e bater-se por ela nas reuniões do Partido em que tomem parte. 

Se as gerações mais antigas têm de fazer uma autocrítica, essa será a de permitirem que o tarefismo inundasse as reuniões e a de não exigirem com maior firmeza a necessidade do estudo político-ideológico por parte de cada quadro e militante e, sobretudo, de Marx, Engels, Lenine. Afinal a experiência não ensinava tudo e Cunhal não duraria sempre. Depois de partirem os quadros que, no seu dia a dia, ligavam a teoria à prática revolucionárias, ficou uma praia deserta. Contudo, houve esforços nesse sentido, fosse na escola do Partido ou nas organizações, fosse através de cursos mais aprofundados nos países socialistas, de palestras, etc. 

Quando vinham os camaradas mais antigos participar em plenários sobre diversos temas, as suas intervenções eram, para os mais jovens, autênticas aulas de marxismo-leninismo e verdadeiros livros abertos de experiência, fosse sobre a situação internacional, a Reforma Agrária, a organização, etc. Hoje, a escola do Partido está subaproveitada e é substituída por reuniões de quadros voltadas para o seu convencimento da justeza da atual linha do Partido. Infelizmente, o que hoje se verifica é que os dirigentes nada têm a dizer aos militantes senão récitas repetidas até à exaustão sobre a “democracia avançada” e outros conceitos que tais. 

Os militantes que ousam dar uma opinião franca divergente da cartilha oficial, são ostracizados e perseguidos através de métodos eticamente condenáveis. 

Quando escrevemos estas palavras não podemos deixar de nos recordar de que os inimigos do Partido diziam o mesmo a seu respeito, nem das várias ondas fracionistas à direita que acabaram por ser derrotadas; mas a vida dá grandes voltas e a situação apresenta-se agora inversa. Todos esses grupos – dos 6, dos “renovadores” e outros – tinham por objetivo a transformação do PCP num partido burguês social-democrata e a sua aproximação ao PS, abandonando a sua natureza de classe de partido proletário independente da burguesia e os seus objetivos finais. Todos eles se foram, mas deixaram cá as suas ideias. Hoje, os que mais criticam o que se está a passar no Partido são aqueles que mais querem defender o Partido marxista-leninista que os “renovadores” atacavam. 

Sendo sobretudo nas reuniões, na discussão, no confronto de pontos de vista, na “polémica leninista” que se educam os quadros, quando estas “aulas” falham e o estudo é completamente abandonado e até ridicularizado, o resultado é devastador para o futuro. Cada novo militante que entra segue o exemplo do que vê, porque ninguém nasce comunista nem marxista-leninista e a ideologia dominante é a ideologia burguesa. Com a sucessão de gerações e a replicação da situação, o futuro apresenta-se muito preocupante. 

Os militantes e os quadros assim educados reproduzem no Partido a hierarquia da sociedade, vendo os dirigentes como chefes e vendo-se a si mesmos como os que têm de obedecer ao chefe. Os “chefes” tornam-se prepotentes e carreiristas e, como só sabem repetir as ordens que vêm de cima e são incultos política e ideologicamente, tornam-se esquemáticos e só podem impor as suas orientações pela autoridade, perseguindo os que têm pensamento e reflexão próprios. 

A autoridade do dirigente do Partido a qualquer nível nunca era imposta. Essa autoridade advinha-lhe sobretudo do exemplo que dava e da forma como tratava os outros militantes. Essa autoridade era-lhe dada pelas suas capacidades de direção, obviamente, e por ser um dirigente que não impunha, que ouvia todas as opiniões com  atenção e procurava o acerto das decisões, através daquilo que essas opiniões tinham de pertinente, que tratava os outros com fraternidade, era leal, franco, direto, intelectualmente honesto, as suas críticas aos outros eram feitas de forma pedagógica de forma a ajudar a sua formação política e ideológica, era um CAMARADA cujo exemplo os outros procuravam seguir. 

Pode dizer-se que, hoje, os quadros do Partido, em muitos casos, são o inverso. A autoridade é imposta, as opiniões dos outros são ignoradas por eles, usam métodos de trabalho eticamente reprováveis, como a mentira, a falsidade, os pensamentos reservados, a falta de modéstia, não se preocupam minimamente com a formação política e ideológica dos militantes que têm à sua responsabilidade, uma vez que eles também não a têm, não só não respeitam a sua opinião como não os respeitam enquanto pessoas, escondem as dificuldades, inflacionam os êxitos e medem-nos meramente de um ponto de vista quantitativo – se cumpriram as metas disto ou daquilo, sem fazer a análise de como tal ou tal ação se refletiu no reforço da organização do Partido, ou que perspectivas abriu, ou que contribuição deu para a educação das massas. Submetem-se ao “chefe” ou ao camarada mais responsável, independentemente de estarem ou não de acordo com ele e sem discussão, esperando com isso “cair nas suas boas graças”, afastam os que discordam do que vem de cima, por vezes com planos maquiavélicos. 

Tal como na sociedade, em que a contrarrevolução capitalista criou um fosso entre os trabalhadores com direitos e os jovens que não têm direitos nenhum, para facilitar a continuação da exploração, criou-se no Partido um fosso entre novos e velhos quadros, não dando oportunidade a que se desse uma mistura de gerações, uns contribuindo com a experiência, os outros contribuindo com a energia e ideias novas, imprescindível num partido com 98 anos que quisesse continuar a ser revolucionário. Resultado: os valores revolucionários não estão a ser passados aos mais jovens, educados num meio em que predomina a ideologia pequeno-burguesa, em que a aparência é mais importante do que a verdade. Assusta pensar que as sucessivas gerações de quadros venham a ser educadas nestes princípios estranhos à ideologia proletária e às necessidades da revolução. 

Além do processo natural da substituição de quadros, não se pode deixar de referir os casos de perseguição de alguns quadros afastados das suas organizações e das suas tarefas, à força e contra a sua opinião, muitas vezes faltando à verdade. Aqueles que discordam da linha política do Partido apresentando argumentos, os que não aceitam acriticamente as ordens que vêm de cima, os que de algum modo e por diversas razões, às vezes superficiais, se distinguem do status quo não são promovidos a tarefas de maior responsabilidade, são retirados de tarefas onde tinham mais responsabilidade, são perseguidos e afastados. Chega-se ao ponto de haver camaradas que estão particularmente atentos aos likes do facebook ou anotam quem são os militantes que frequentam determinados sites. Este processo é muitíssimo anterior a notícias que têm aparecido agora na imprensa burguesa. 

Isto só é possível num Partido em que se relaxou a disciplina revolucionária por violações grosseiras da democracia interna, se perdeu a confiança mútua, a lealdade e a fraternidade. Não pode existir disciplina revolucionária quando um Partido se social-democratiza. Este Partido começou a perder os valores comunistas e, consequentemente, a sua capacidade revolucionária. 

De uma forma generalizada, há queixas dos militantes quanto ao funcionamento da organização. Há razões objetivas, com toda a certeza, mas queremos tratar aqui de um problema específico atual do trabalho de organização: o seu abandono, apesar de as referências em documentos de orientação dizerem o contrário. Muitas organizações e células deixaram de funcionar e há razões subjetivas várias para que tal aconteça. 

O estilo de trabalho de direção que prescinde da opinião dos militantes, seja para a tomada de decisões, seja para a análise da situação política e social local. O conteúdo da ação: o que existe de organização serve para levar à prática tarefas que vêm de cima, para alcançar “metas”, para encher comícios e outras iniciativas. Nos níveis inferiores de organização escasseia a atividade própria ligada com a realidade em que se insere – há pouca margem para iniciativas próprias, porque o tempo e as energias são consumidos pelas iniciativas “de cima”. 

A desmotivação dos militantes que sentem que a sua opinião não conta. O rotineirismo dos dirigentes de vários níveis e o espírito do deixa-andar. A falta de prestação de contas, no sentido ascendente e descendente, própria do centralismo democrático. A desarticulação de organismos quando são “incómodos” ou quando o seu responsável o é. A falta de ânimo revolucionário, porque a revolução saiu do horizonte. 

Em O Partido com paredes de vidro, o camarada A. Cunhal, sempre que se refere a militantes, a quadros e a questões de organização emprega constantemente a palavra “revolucionário” e “trabalho revolucionário”. E é esse trabalho revolucionário que motiva os militantes, lhes dá força e perspetiva para uma guerra muito difícil contra o capitalismo, pela revolução socialista, pelo comunismo. Ser um partido semelhante aos outros do sistema representativo e parlamentar burguês, ter no horizonte reformas do capitalismo e vias utópicas e falsas “etapas” para o socialismo não mobilizam as massas nem os militantes comunistas. Infelizmente, o nosso Partido sofre da doença da social democratização e tudo aquilo de que falámos até aqui são graves sintomas dessa doença. Será que somos capazes de a curar?... 

Edição: Página 1917

Fonte: https://quefazerquefazer.wixsite.com/info

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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