Francisco Martins Rodrigues
Novembro/1998
A propósito das opiniões de Samir Amin
Transição longa ou capitalismo eterno? |
Na
entrevista que publicamos no número anterior desta revista, Samir Amin deduz do
fracasso das revoluções na União Soviética e na China que o mundo caminha para
uma “transição longa” do capitalismo ao socialismo, durante a qual os fatores
de mudança social ganharão gradualmente preponderância no seio das
instituições, segundo uma via muito diferente da daquelas revoluções.
Não
pretendendo colocar em causa o conjunto dos pontos de vista de Samir Amin,
justamente prestigiado pela sua longa militância anti-imperialista, parece-me
necessário contudo comentar as ideias que desenvolveu na entrevista referida.
Em
si, a ideia de que será necessário um período relativamente longo (um, dois
séculos ou até mais) para passar do capitalismo ao socialismo presta-se a muita
discussão, dada a rapidez com que o capitalismo processa a sua marcha para a
catástrofe global. Mas é uma hipótese que não pode ser excluída e nem sequer é
o que mais importa para os que lutam pela revolução social.
Muito
mais contestável é, a meu ver, a perspectiva que Amin associa a este conceito
de “transição longa” e que desenvolveu na citada entrevista. Diz ele que o
socialismo pode desenvolver-se no seio do capitalismo, através de “um conflito
permanente entre a lógica da acumulação do capital e lógicas não capitalistas,
anticapitalistas, lógicas sociais, culturais, mais ou menos totais, mais ou
menos parciais, mais ou menos radicais de recusa da alienação mercantil…”. E
mais explicitamente: “Ponho em causa a convicção de que o socialismo não se
pode desenvolver no seio do capitalismo, de que é preciso previamente tomar o
poder”.
Eis
uma afirmação assombrosa, partindo de quem parte. A nós parece-nos
indiscutível, pelo contrário, que o socialismo não pode desenvolver-se no seio
do capitalismo, justamente porque é a sua negação. O capitalismo pôde
desenvolver-se no seio da sociedade feudal, invadir gradualmente as
instituições e o aparelho de Estado, ao longo de séculos, antes de tomar o
poder, porque era uma forma de exploração moderna em competição com uma outra
arcaica (a servidão). Mas como poderia o socialismo, supressão do trabalho assalariado
e da propriedade privada, conviver numa mesma sociedade com o capitalismo?
Basta colocarmos a hipótese para nos apercebermos do seu absurdo.
Demais,
quando se conhece o caráter totalitário das relações capitalistas, que invadem
todos os recantos da vida social e aniquilam ou assimilam qualquer outro tipo
de relações (tenha-se em vista a experiência das cooperativas), só pode
causar-nos estupefação este ponto de vista de Samir Amin. É como se recuássemos
150 anos e voltássemos ao tempo dos socialismos utópicos.
O
Aparelho de Estado
Mas
há uma outra objeção que naturalmente surge de imediato: “E o poder de Estado,
como reagirá ele a essa esperada acumulação gradual de forças
anticapitalistas?”, “Vejo, diz Amin na entrevista citada, o poder como um lugar
de conflito entre as diferentes lógicas, uma instância instável e não de forma
alguma como um nível que reproduz simplesmente a acumulação do capital”.
Assim,
Amin vê o poder de Estado não como um instrumento da classe hegemônica, não
como um órgão vital da ditadura dessa classe, destinado a reproduzir um
determinado sistema social, mas como um híbrido em cujo interior se podem
afrontar e afirmar interesses de classe opostos e que poderia por isso ser
subvertido por dentro.
Há
que dizer que isto está no campo oposto ao que sempre tem sido defendido pelo
marxismo. De acordo com Marx e Engels, sendo o Estado o produto do caráter
irreconciliável das contradições de classe, um órgão de opressão de uma classe
por outra, ele não pode servir simultaneamente os opressores e os oprimidos. Só
pela sua destruição se torna possível desmontar todas as velhas relações de
classe e passar de um sistema social a um outro.
Naturalmente,
nada no marxismo é sagrado, tudo está sujeito a reavaliação. Mas será que existe
na experiência moderna algo que ponha em causa esta conclusão do marxismo
acerca do Estado e que o faça surgir como a “instância instável” de que fala
Amin? Diríamos, pelo contrário, que é cada vez mais vincado o aperfeiçoamento
do aparelho de Estado como trincheira da ordem existente, cada vez mais intensa
e diversificada a sua utilização pela burguesia no exercício da sua ditadura de
classe. O que aliás também foi previsto por Engels quando escreveu que “este
poder público se fortalece à medida que se agudizam os antagonismos de classe”
(A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado).
Rupturas
em Cadeia
Como
bem se compreende, esta não é uma diferença puramente teórica. Da opinião de
Amin acerca da utilização do Estado para mudar a ordem social resulta uma
ruptura em cadeia com todos os pressupostos que até hoje têm guiado o movimento
comunista.
Primeiro,
se o Estado burguês pode ser modificado por dentro através de uma luta
prolongada esfuma-se na distância o objetivo do derrube do poder de Estado e da
tomada do poder pelo proletariado; o socialismo não começa pela insurreição dos
oprimidos e pela expropriação dos exploradores, começa desde agora em cada
reforma imposta através das ações anticapitalistas; o objetivo dos
revolucionários não é isolar, desacreditar, enfraquecer a autoridade do Estado
mas instalar-se gradualmente dentro dele.
Segundo,
se não se centram todos os esforços no objetivo da conquista do poder, então a direção
política, o partido proletário para a revolução e a tomada do poder deixa de
ter sentido ou perde muita da sua importância. Diz Amim: “Um dos nossos erros
históricos foi erigir a forma partido… em modelo imutável”. Agora o partido
revolucionário deveria dar lugar a um “pluralismo de formas organizativas”,
isto é, o partido seria apenas uma entre as variadas organizações que o
movimento vai criando, perderia a função de “estado maior” da revolução.
Terceiro,
“perde muita da sua importância o debate entre reformismo e revolução, que teve
o seu sentido histórico, mas que acabou por cair numa oposição quase
metafísica”. Isto é: numa época em que o reformismo gangrena todos os
movimentos sociais e bloqueia com êxito a via revolucionária, Amin desvaloriza
como “metafísica” a luta contra ele e aconselha a não vermos a revolução como
“uma varinha de condão capaz de resolver todos os problemas”.
Estamos
perante um conjunto de opiniões perfeitamente organizado e contrário ao
marxismo revolucionário. O que surpreende é que Amin não assuma claramente as
consequências desta sua ruptura com tudo o que formou, no fim de contas, a
substância da corrente comunista desde Marx e não torne mais explícita a sua
oposição ao leninismo.
Cuidado
com as Lições da História
As
conclusões que Samir Amin expõe nesta entrevista resultam da sua reflexão sobre
o desmoronar do chamado campo “socialista”. Reflexão indispensável, sem dúvida.
Nenhum marxista pode raciocinar hoje da mesma maneira do que há trinta anos, ou
mesmo há dez anos. Há que aprender as lições da história. Tudo está em saber localizar
corretamente essas lições ou nos
perdemos em “lições” equivocadas.
O
que devemos reter e o que devemos criticar nas experiências revolucionárias
deste século? O que permanece atual e o que foi superado? É fácil de compreender
que, consoante a resposta dada, abrem-se caminhos inteiramente diferentes e até
opostos.
Um
deles consiste em dizer: as revoluções proletário-camponesas da Rússia, China,
etc., cumpriram com êxito a liquidação das relações pré-capitalistas, ficaram
como modelos de revoluções nacionais anti-imperialistas, mas falharam na
passagem ao socialismo porque o escasso desenvolvimento das forças produtivas e
do próprio proletariado bloqueava esse objetivo; na ausência de uma revolução
europeia, que se julgava iminente, elas não puderam fazer a transformação
ininterrupta que se propunham e ficaram condenadas a estagnar no capitalismo de
Estado, regime opressivo que se adornou com as cores do socialismo.
Outro,
completamente diferente, é dizer: as revoluções do Oriente falharam porque
partiram do princípio de que a derrubada da burguesia e a instauração da
ditadura do proletariado era uma “varinha de condão” capaz de resolver todos os
problemas; deram demasiado protagonismo ao papel do partido revolucionário;
erraram ao liquidar as resistências burguesas internas; vamos pois ser menos
ambiciosos e aplicar-nos a desenvolver “lógicas anticapitalistas” para uma
transição longa no seio do capitalismo.
Enveredando
por esta segunda perspectiva (pelo menos, na entrevista que comentamos), Samir
Amin enfileira na corrente, hoje muito difundida, dos que projetam sobre o
leninismo a responsabilidade pelos limites objetivos, históricos, da revolução
concreta em que ele foi chamado a intervir. Mas ao julgar assim “libertar-se dos
erros do passado” estão na realidade a “libertar-se” daquilo que esse passado
teve de mais positivo. Em nome do combate ao estiolamento do marxismo e da
necessidade de o elevar “à altura dos tempos modernos”, reproduzem pela enésima
vez, e sob uma roupagem modernizada, velhas distorções reformistas do marxismo.
A
Violência é Dispensável?
Na
base do raciocínio de Amin está, embora ele não o expresse claramente, a busca
de uma via alternativa ao confronto violento entre dois sistemas, entre duas
classes antagônicas, com todo o seu cortejo de horrores. Quando concebe a
“transição longa”, ele pensa que, diferindo a conquista do poder no tempo,
acumulando forças através de conquistas graduais, poderá chegar-se a um momento
em que as forças anticapitalistas se tornem maioritárias e possam fazer
respeitar a sua lei a um campo burguês já suficientemente enfraquecido. Mas há
aqui um equívoco. Nenhuma transição, por mais longa que seja, dispensa o
momento agudo da ruptura. As conquistas parciais arrancadas à burguesia são
vantajosas não por proporcionarem ao proletariado uma certa percentagem de socialismo,
ou de autogoverno, ou de controle do aparelho de Estado, ideia absolutamente
utópica, mas porque podem ser utilizadas para uma abordagem mais vantajosa do
momento da insurreição.
Há
algum exemplo na história de que uma sociedade tenha passado dum sistema de
relações de produção a um outro sem grandes conflitos de classes e convulsões
populares? É indiscutível que não. E se tal nunca aconteceu, com que base se
imagina agora que a passagem da forma mais refinada e mais complexa das
sociedades de classes, o capitalismo, à sociedade socialista poderá
processar-se por outra via que não seja a de grandes convulsões sociais e da
imposição pela força de novas relações de produção?
A
verdade é que ainda não se descobriu força capaz de varrer velhas instituições,
relações de classe caducas, que não seja o rolo compressor das massas em
rebelião, quando deixam de se satisfazer pela mudança de governos, pelas
reformas do sistema, e passam a exigir o fim de todo um modo de vida. E, é
claro, isso implica uma luta violenta porque nunca em tempo nenhum uma classe
dominante abriu mão do seu monopólio do poder sem ser derrotada. Ou seja, se se
pensa em progresso social, em passagem do capitalismo ao socialismo, é
obrigatório colocarmo-nos na perspectiva da insurreição, da derrubada violenta
das instituições e da instauração de um regime de ditadura do proletariado
sobre a burguesia.
Que
essa é uma perspectiva tremendamente difícil, hoje mais do que nunca, devido à
eficácia dos aparelhos de poder da burguesia, não oferece dúvida. Que ela ainda
não está na ordem do dia, é fácil de constatar: nos países capitalistas
desenvolvidos, porque o proletariado está soterrado sob a ideologia
reformista-imperialista das classes médias; nos países subjugados, porque são
as reivindicações nacionais-burguesas que conduzem as massas populares. Mas
isso não pode ser justificação para nos lançarmos a imaginar vias
“alternativas” à insurreição dos oprimidos. Há sim que trabalhar por ela e, a
partir da posição atrasada em que nos encontramos, buscar as vias de melhor
acumulação de forças para esse objetivo.
A perspectiva de Samir
Amin na entrevista que nos concedeu é a de uma passagem gradual, universal e
relativamente pacífica ao socialismo. É o que exprimem as suas opiniões sobre o
crescimento das “lógicas anticapitalistas” e do Estado como “lugar de
conflitos”. Mas isto equivale, é preciso dizê-lo, à perspectiva
social-democrata clássica, essa sim, exaustivamente desmentida pela história.
Edição: Página 1917
Fonte: https://anabarradas.com/
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