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quarta-feira, 29 de julho de 2020

POSIÇÕES DO KKE NA XII CONFERÊNCIA INTERNACIONAL "LENIN E O MUNDO CONTEMPORÂNEO"


O perigo da guerra imperialista e a posição dos comunistas




As contradições inter-imperialistas que, no passado, deram origem a dezenas de guerras locais, regionais e duas mundiais, continuam a levar a duros confrontos econômicos, políticos e militares, independentemente da composição ou recomposição, mudanças na estrutura e  dos objetivos das uniões imperialistas internacionais, a chamada nova "arquitetura". "A guerra é a continuação da política por outros meios", especialmente em condições de profunda crise de sobre-acumulação de capital e grandes mudanças no equilíbrio de forças no sistema imperialista internacional, onde a redistribuição de mercados raramente ocorre sem derramamento de sangue.

Agudos antagonismos inter-imperialistas e as grandes contradições de estados fortes e interesses capitalistas hoje levam a reconfigurações constantes de alianças, fenômenos contínuos de formação de eixos e anti-eixos em nível internacional.

A intensificação dos antagonismos interimperialistas levou não apenas ao aumento dos gastos militares, mas também à reordenação entre os estados capitalistas, em termos de seu poder militar. Segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), os gastos militares mundiais em 2015 atingiram US $ 1,7 trilhão, um aumento de 1% em relação a 2014.

Os Estados Unidos continuam sendo a maior potência militar do planeta, gastando mais de US $ 600 bilhões por ano, ou seja, tanto quanto as outras dez potências militares mais fortes gastam juntas.

A Rússia é a segunda força militar mais forte. Ao atualizar e fortalecer seu poder militar, pretende garantir os interesses econômicos de seus monopólios. Assim, em 2015, gastou US $ 66,4 bilhões, um montante aumentado em 7,5% em relação a 2014 e em 91% em relação a 2006.

Este período também destaca a corrida armamentista da China e da Índia (3ª e 4ª potências militares do mundo) para preencher as lacunas e aumentar seu poder militar a níveis que correspondem à potência econômica e ao alcance de seus grupos empresariais.
Outros estados que são aliados dos EUA na OTAN, como França (5), Grã-Bretanha (6), Turquia (8), Alemanha (9), Itália (10) ou fora da OTAN Como o Japão (7a), a Coréia do Sul (11a) e Israel (16a), também concentraram grandes forças militares.

 Obviamente, o poder militar não é determinado apenas levando em consideração os gastos militares, a capacidade de armas e o controle da produção e o mercado global de armas. É uma questão mais complexa que tem a ver com a capacidade total de cada classe burguesa de defender seus interesses, tanto no país quanto internacionalmente, com meios militares, quando os meios econômico e político-diplomático não são suficientes.

Portanto, além dos gastos militares anuais, o poder militar também tem a ver com o tamanho das forças militares adquiridas ao longo do tempo, a superioridade tecnológica, a existência de bases no exterior em combinação com o controle de territórios de importância estratégica, superioridade na coleta de informações, a capacidade de realizar guerras não ortodoxas. O poder militar está relacionado ao poder econômico, embora a forte presença econômica de um Estado não determine necessariamente seu poder militar. Este último exige uma forte indústria militar, a capacidade de treinar forças na arte da guerra e em novas tecnologias,
As armas nucleares são de extrema importância hoje. Os estados que possuem armas nucleares são Estados Unidos, Rússia, China, Índia, Grã-Bretanha, França, Israel, Paquistão e Coréia do Norte.

No entanto, mesmo entre essas potências nucleares existem grandes diferenças, pois dentre elas se destacam o potencial dos Estados Unidos e da Rússia. Além desses dois países que têm milhares de ogivas nucleares prontas para serem lançadas, apenas a Bretanha e a França têm armas nucleares prontas para serem usadas, e possivelmente Israel.
A Rússia é potencialmente a única potência militar que pode responder aos EUA no caso de um ataque nuclear, causando danos devastadores. Acredita-se que esse perigo seja um fator que impede o uso de armas nucleares. No entanto, foi historicamente demonstrado que, no caso da intensificação do antagonismo inter-imperialista e sua transformação em conflito militar, os estados capitalistas não hesitam em usar esse tipo de arma.

Com base no exposto, entende-se por que um dos principais temas do atual confronto entre os EUA e a Rússia é a instalação na Europa e na região do Pacífico do "escudo" anti-míssil dos EUA. Essas medidas visam impedir possível resposta da Rússia se os EUA e a aliança da Otan tentarem fazer um "primeiro ataque nuclear".

Além disso, a capacidade de uma resposta militar rápida é de grande importância. A OTAN deu grande ênfase à formação de um corpo militar de intervenção rápida, que, para realizar sua tarefa, precisa de meios contemporâneos de apoio, como porta-aviões ou bombardeiros estratégicos, além de novos territórios, como apoios geopolíticos, que é alcançado através de alianças políticas e militares, bem como com bases no exterior.

No próximo período, a correlação de forças militares será decisivamente afetada pelo uso de novas tecnologias, aeronaves de 5ª e 6ª geração, armas a laser, etc. Cada classe burguesa tenta aumentar seu poder através de alianças político-militares. A OTAN continua a ser a mais forte aliança político-militar, apesar da intensificação das contradições e da evidente tendência para a formação de um mecanismo militar independente da UE. As resoluções da OTAN em Varsóvia "deram o tom" à determinação dos imperialistas norte-americanos e europeus de defender seus interesses contra a burguesia russa, usando todos os meios militares à sua disposição em toda a fronteira entre a Rússia e a OTAN.

Planos semelhantes para fortalecer sua presença foram desenvolvidos pela OTAN e pelos Estados Unidos na região do Pacífico (com a estratégia "Pivot para a Ásia"), bem como em outras regiões.

Quanto aos campos existentes ou possíveis de confronto militar, destacam-se o sudeste do Mediterrâneo, o sudeste da Ásia, o norte da África e o Ártico, sem excluir outras fontes ou regiões voláteis, como o Cáucaso, o Golfo Pérsico, a região de Aden e Balcãs.
Além disso, tanto os confrontos militares na Europa (sudeste da Ucrânia, Crimeia) quanto o fortalecimento da OTAN no mar Báltico, no mar Negro, nos Balcãs e no mar Egeu, são fatores que advogam a possibilidade de que Conflitos militares surjam mesmo em solo europeu.
No entanto, além da OTAN, já surgiram outras alianças político-militares (Organização de Cooperação de Xangai, Organização do Pacto de Segurança Coletiva etc.), que apesar de serem ainda mais "frágeis" e menos desenvolvidas do que A OTAN coincide em seu caráter de classe, ou seja, são alianças de estados capitalistas.

Ao mesmo tempo, em algumas regiões, como América Latina e África, também estão sendo formadas alianças político-econômicas relacionadas a opções específicas e à cooperação político-militar, como com a UE. Além disso, Estados latino-americanos (como Colômbia, Peru, Chile, México) e outros (como Austrália) estão integrados no plano geral de promoção de "parcerias" com a OTAN.

Nos últimos anos, os exércitos mercenários, ou seja, empresas militares privadas, desenvolveram missões baseadas em vários pretextos (por exemplo, pirataria, tráfico de drogas, treinamento militar, "terrorismo") em dezenas de regiões em guerra, enviadas por estados capitalistas. Esses exércitos estão integrados aos planos imperialistas, nas chamadas guerras não ortodoxas, e dão aos governos burgueses a possibilidade de gerenciar melhor as perdas humanas nas operações militares em que participam.

Os confrontos militares ocorrem nas seguintes questões:

·         Controle de depósitos de energia e rotas de transporte de recursos energéticos (por exemplo, petróleo, gás natural, tubulações, etc.).
·         Controle de rotas terrestres e marítimas para o transporte de mercadorias (por exemplo, a Rota da Seda, rotas marítimas no Mediterrâneo, Bósforo, Corno de África, etc.).
·         Controle da riqueza subterrânea no Ártico, riqueza mineral, terras raras e reservas de água.
·         O uso do espaço para fins militares.
·         A luta pela participação no mercado, na qual os meios militares são utilizados não apenas para obter maior participação nos mercados, mas também para diminuir a participação dos antagonistas.

Sob essas condições, a atividade dos chamados grupos "terroristas islâmicos" é parte integrante da guerra imperialista no século 21. Isso ocorre independentemente do nível em que a atividade dessas organizações é formada sob o apoio ou a tolerância dos centros imperialistas ou se se manifesta como um elemento que afirma a independência dessas forças dos poderosos centros que as fortaleceram no passado.

A atividade dessas organizações é usada objetivamente como elemento da "guerra não ortodoxa" de um Estado ou de alguns setores contra os interesses de outro Estado capitalista ou como pretexto para realizar uma intervenção imperialista. Evidentemente, a atividade dessas organizações não possui apenas esses objetivos, mas é usada para fortalecer os mecanismos de repressão de vários estados burgueses, bem como para a preparação ideológica dos trabalhadores diante da possibilidade de envolver seus países em novas intervenções imperialistas em nome da luta contra o "terrorismo".

É claro que, juntamente com o feroz antagonismo sobre os lucros do monopólio, estão sendo feitos esforços para comprometer, chegar a um acordo, suspender temporariamente qualquer generalização do confronto, inclusive para reconfigurar alianças, como eventos no " Campo euro-atlântico.

Os eventos na Turquia e na Síria são caracterizados pela fluidez e mobilidade na formação de alianças entre estados capitalistas e a possível reconfiguração de alianças. No entanto, nem a tendência de preservar as antigas alianças nem a tendência de sua diferenciação devem ser absolutas. É importante acompanhar continuamente esses desenvolvimentos, porque eles estão relacionados ao rearranjo na correlação de forças entre alianças e centros imperialistas, inclusive na Europa, e podem desencadear desenvolvimentos mais gerais.

Nesta fase, apesar de a Otan estar se desenvolvendo e se expandindo ainda mais, mantendo sempre os Estados euro-atlânticos como um núcleo duro, não podemos dizer que, em geral, garantiu um curso permanente, estável e inalterável, uma vez que as alianças se formam num contexto de profundas contradições.

AS TAREFAS DO PARTIDO NA LUTA CONTRA A GUERRA IMPERIALISTA

O 20º Congresso do KKE avaliou que os conflitos locais e regionais continuarão como expressão e resultado de antagonismos e contradições inter-imperialistas mais aguçados, com possíveis cenários de operações militares no Oriente Médio, Mar Egeu, Balcãs, Norte da África, Mar Negros, Ucrânia, Estados Bálticos, Ártico e Mar do Leste e do Sul da China.

Em relação à nossa região, em particular, a situação entre a Grécia e a Turquia pode se tornar mais aguda com o envolvimento de outros países. O questionamento das fronteiras e dos direitos soberanos da Grécia pela burguesia turca faz parte de suas relações antagônicas com a burguesia grega na região.

A burguesia grega participa vigorosamente dos planos, intervenções, antagonismos e guerras imperialistas, a fim de melhorar sua posição na região. É responsável por um possível envolvimento militar no país.

O Programa do Partido determinou nossa posição em relação à guerra imperialista e nossa linha de atividade. Ele diz: “A luta pela defesa das fronteiras, os direitos soberanos da Grécia, do ponto de vista da classe trabalhadora e dos setores populares, é parte integrante da luta pela derrubada do poder do capital. Não tem nada a ver com a defesa dos planos de um ou outro polo imperialista e da lucratividade de um ou outro grupo monopolista.

No caso de envolvimento da Grécia em uma guerra imperialista, seja defensiva ou agressiva, o Partido deve liderar a organização independente dos trabalhadores e a luta popular em todas as suas formas, para que a luta pela derrota completa da burguesia - nacional e estrangeira como invasor – se vincule a conquista do poder na prática. O Partido tomará a iniciativa e dirigirá a construção de uma frente operária e popular que utilizará todas as formas de luta, sob o lema: O povo dará liberdade e o caminho de saída do sistema capitalista que, enquanto prevalece, traz guerra e "Paz com a pistola apontada para a cabeça do povo.

A tarefa da vanguarda da classe trabalhadora, o KKE, é ajustar, especializar e intensificar gradual e constantemente suas palavras de ordem, sem perder a principal que é o caráter da guerra, que é imperialista de ambos os lados, independentemente de quem foi o primeiro a atacar. Esta é a posição que promovemos na classe trabalhadora e nos estratos populares e, com base nisso estamos lutando hoje nas seguintes direções:

Explicar ao povo o caráter imperialista da guerra, os perigos, quem são os responsáveis, a necessidade de sua condenação política, a luta para impedir qualquer tentativa de mudar as fronteiras. Enfatizar que a política do governo burguês em caso de envolvimento militar vem depois da política geral, em detrimento da classe trabalhadora e dos estratos populares, tanto em condições de recuperação capitalista quanto em plena crise econômica. Destacar a necessidade de o povo não confiar no governo burguês; que a "unidade nacional" não pode e nunca poderá existir entre a burguesia e a classe trabalhadora em qualquer estado.
Salientar a necessidade de se opor a qualquer aliança imperialista, de lutar pelo fechamento de todas as bases estrangeiras, de saída da OTAN e da UE, de retirar as forças militares da OTAN do Egeu.

Destacar a necessidade de organizar a luta, a resistência e o contra-ataque da classe trabalhadora, das outras camadas populares, da sua Aliança Social, para acabar com a mudança de fronteiras, uma possível invasão-ocupação e participação em guerras fora de nossas fronteiras. Fortalecer a luta contra os governos da burguesia que prepararam o terreno junto com as classes burguesas de outros Estados no âmbito da OTAN e levaram ao massacre dos filhos do povo. Coordenar a luta com os trabalhadores e o movimento popular de outros Estados, vinculá-la ao objetivo de derrubar o poder capitalista na Grécia e nos países vizinhos, para que seus povos vivam pacificamente sob o poder dos trabalhadores.

Os eventos exigem intensificação de atividades anti-guerra e intervenções imperialistas, com extenso trabalho político de organizações do Partido e do KNE, bem como do trabalho dos sindicatos, do movimento operário-popular em geral, com o aumento da atividade da EEDYE ((Comite Grego pela Distensão Internacional e a Paz), especialmente em regiões com bases militares e quartéis servindo a OTAN e a "Política Comum de Segurança e Defesa da UE".

Fonte: https://inter.kke.gr/es/firstpage/

Edição: Página 1917



sexta-feira, 24 de julho de 2020

América Latina na Hora do Lúmpen-Capitalismo

Ilusões Progressistas Devoradas pela Crise

Jorge Beinstein
21 de março de 2016

   A conjuntura global é marcada por uma crise deflacionária motorizada pela grandes potências. A queda dos preços das commodities, cujo aspecto mais saliente foi, desde meados de 2014, o das cotações de petróleo, revela o desinchar da procura internacional enquanto ao mesmo tempo estanca-se a onda financeira, muleta estratégica do sistema durante as últimas quatro décadas. A crise da financeirização da economia mundial vai entrando de maneira zigzagueante numa zona de depressão. As principais economias capitalistas tradicionais crescem pouco ou nada(1) e a China desacelera rapidamente. Frente a isto o ocidente recorre ao seu último recurso: o aparelho de intervenção militar integrando componentes armados profissionais e mercenários, mediáticos e mafiosos, articulados como "Guerra de Quarta Geração" destinada a destruir sociedades periféricas para convertê-las em zonas de saqueios. É a radicalização de um fenômeno de longa duração de decadência sistêmica onde o parasitismo financeiro e militar foi-se convertendo no centro hegemônico do ocidente.

    Não presenciamos a "recomposição" política-econômica-militar do sistema, tal como se verificou com a reconversão keynesiana (militarizada) dos anos 1940 e 1950, e sim a sua degradação geral. A mutação parasitária do capitalismo converte-o num sistema de destruição de forças produtivas, do meio ambiente e de estruturas institucionais onde as velhas burguesias vão-se transformando em círculos de bandidos, nova ascensão planetária de lumpen-burguesias centrais e periféricas.

 

O declínio do progressismo

   Imersa neste mundo desdobra-se a conjuntura latino-americana onde convergem dois factos notáveis: o declínio das experiências progressistas e a prolonga degradação do neoliberalismo que as antecedeu e as acompanhou a partir de países que não entraram nessa corrente, da qual agora esse neoliberalismo degradado surge como o sucessor.

    Os progressismos latino-americanos instalaram-se em cima da base dos desgastes, e em certos casos da crise, dos regimes neoliberais. E quando chegaram ao governo os bons preços internacionais das matérias-primas, somados a políticas de expansão dos mercados internos, puderam recompor a governabilidade.

    A ascensão progressista apoiou-se em duas impotências. A das direitas que não podiam assegurar a governabilidade, em alguns casos colapsadas (Bolívia em 2005, Argentina em 2001-2002, Equador em 2006, Venezuela em 1998) ou gravemente deterioradas em outros casos (Brasil, Uruguai, Paraguai). A outra impotência foi a das bases populares que derrubaram governos, desgastaram regimes, mas que inclusive nos processos mais radicalizados não puderam impor revoluções, transformações que fossem mais além da reprodução das estruturas de dominação existentes.

    Nos casos da Bolívia e Venezuela os discursos revolucionários foram acompanhados de práticas reformistas praguejadas de contradições, anunciavam-se grandes transformações mas as iniciativas embrulhavam-se em infinitas idas e vindas, ameaças, desacelerações "realistas" e outras astúcias que exprimiam o temor profundo a saltar as valas do capitalismo. Isso não só possibilitou a recomposição das direitas como também a proliferação a nível estatal de podridões de todo tipo, grandes e pequenas corrupções.

    A Venezuela surge como o caso mais evidente de mistura de discursos revolucionários, desordem operacional, transformações a meio caminho e auto-bloqueios ideológicos conservadores. Não se conseguiu encaminhar a transição revolucionária proclamada (muito pelo contrário) ainda que se tenha conseguido tornar caótico o funcionamento de um capitalismo estigmatizado mas de pé. Obviamente os Estados Unidos promovem e aproveitam esta situação para avançar na sua estratégia de reconquista do país. O resultado é uma recessão cada vez mais grave, uma inflação descontrolada, importações fraudulentas maciças que agravam a escassez de produtos e a evasão de divisas que marcam uma economia em crise aguda(2).

   No Brasil, o zigzaguear entre um neoliberalismo "social" e um keynesianismo light quase irreconhecível foi reduzindo o espaço de poder de um progressismo que exalava fanfarronice "realista" (inclusive sua astuta aceitação da hegemonia dos grupos econômicos dominantes). A dependência das exportações de commodities e a submissão a um sistema financeiro local transnacionalizado acabaram por bloquear a expansão econômica. Finalmente, a combinação da queda dos preços internacionais das matérias-primas e a exacerbação da pilhagem financeira precipitaram uma recessão que foi gerando uma crise política sobre a qual começaram a cavalgar os promotores de um "golpe brando" executado pela direita local e monitorado pelos Estados Unidos.

     Na Argentina, o "golpe brando" ocorreu protegido por uma máscara eleitoral forjada por uma manipulação mediática desmesurada. O progressismo kirchnerista na sua última etapa havia conseguido evitar a recessão, ainda que com um crescimento anêmico sustentado por um fomento do mercado interno respeitoso do pode econômico. Também foi respeitada a máfia judicial que, junto com a máfia mediática, o acossaram até deslocá-lo politicamente em meio a uma onda de histeria reacionária das classes altas e do grosso das classes médias.

    Na Bolívia, Evo Morales sofreu sua primeira derrota política significativa no referendo sobre a reeleição presidencial. Sua chegada ao governo assinalou a ascensão das bases sociais submersas pelo velho sistema racista colonial. Mas a mistura híbrida de proclamações anti-imperialistas, pós-capitalista e indigenistas com a persistência do modelo mineiro-extrativista de deterioração ambiental e de comunidades rurais e do burocratismo estatal gerador de corrupção e autoritarismo terminaram por diluir o discurso do "socialismo comunitário". Assim, ficou aberto o espaço para a recomposição das elites econômicas e a mobilização revanchista das classes altas e seu séquito de classes médias, penetrando num vasto leque social desconcertado.

    Agora as direitas latino-americanas vão ocupando as posições perdidas e consolidam as preservadas, mas já não são aquelas velhas camarilhas neoliberais optimistas dos anos 1990. Foram mudando através de um complexo processo econômico, social e cultural que as converteu em componentes de lúmpen-burguesias embarcadas na onda global do capitalismo parasitário.

    Grupos industriais ou do agrobusiness foram combinando seus investimentos tradicionais com outros mais rentáveis mas também voláteis: aventuras especulativas, negócios ilegais de todo tipo (desde o narco até operações imobiliárias opacas passando por fraudes comerciais e fiscais e outros empreendimentos turvos) convergindo com "investimentos" saqueadores provenientes do exterior como a mega-mineração ou as rapinas financeiras.

    A referida mutação tem longínquos antecedentes locais e globais, variantes nacionais e dinâmicas específicas, mas todas tendem a uma configuração baseada no predomínio de elites económicas enviesadas pela "cultura financeira-depredadora" (curtoprazismo, densenraizamento territorial, eliminação de fronteiras entre legalidade e ilegalidade, manipulação de redes de negócios com uma visão mais próxima do video-jogo do que da gestão produtivas e outras características próprias do globalismo mafioso) que dispõem do controle mediático como instrumento essencial de dominação, cercando-se de satélites políticos, judiciais, sindicais, policiais-militares, etc.

Restaurações conservadoras ou instaurações de neofascismos coloniais?

   Em geral o progressismo qualifica suas derrotas ou ameaças de derrotas como vitórias ou perigos de regresso do passado neoliberal. Também costuma utilizar-se a expressão "restauração conservadora", mas acontece que esses fenômenos são sumamente inovadores, têm muito pouco de "conservadora". Quando avaliamos personagens como Aécio Neves, Maurício Macri ou Henrique Capriles não encontramos chefes autoritários de elites oligárquicas estáveis e sim personagens totalmente inescrupulosos, sumamente ignorantes das tradições burguesas dos seus países (inclusive, em certos casos, com olhares depreciativos para com as mesmas), surgem como uma espécie de mafiosos entre primitivos e pós-modernos encabeçando politicamente grupos de negócios cuja norma principal é a de não respeitar nenhuma norma (na media do possível).

   Outro aspecto importante da conjuntura é o da irrupção de mobilizações ultra-reaccionárias de grande dimensão onde as classes médias ocupam um lugar central. Os governos progressistas supunham que a bonança económica facilitaria a captura política desses sectores sociais, mas ocorreu o contrário: as camadas médias se direitizavam enquanto ascendiam economicamente, olhavam com desprezo os de baixo e assumiam como próprios os delírios neofascistas dos de cima. O fenômeno sincroniza-se com tendências neofascistas que ascendem no ocidente, desde a Ucrânia até os Estados Unidos passando pela Alemanha, França, Hungria, etc, expressão cultural do neoliberalismo decadente, pessimista, de um capitalismo nihilista que entra na sua etapa de reprodução ampliada negativa, onde o apartheid surge como a tábua de salvação.

    Mas este neofascismo latino-americano inclui também a reaparição de velhas raízes racistas e segregacionistas que haviam ficado tapadas pela crise de governabilidade dos governos neoliberais, pela irrupção de protestos populares e pelas primaveras progressistas. Sobreviveram à tempestade e em vários casos ressurgiram inclusive antes do começo do declínio do progressismo, como na Argentina o egoísmo social da época de Menem ou o gorilismo racista anterior; na Bolívia o desprezo para com o índio e em quase todos os casos recuperando restos do anti-comunismo da época da Guerra-fria. Sobrevivências do passado, latências sinistras agora misturadas com as novas modas.

    Uma observação importante é que o fenômeno assume características de tipo "contra-revolucionário", apontando para uma política de terra arrasada, de extirpação do inimigo progressista. É o que se vê virtualmente na Argentina ou o que promete a direita na Venezuela ou Brasil. A brandura do adversário, seus medos e vacilações excitam a ferocidade reacionária. Referindo-se à vitória do fascismo na Itália, Ignazio Silone a definia como uma contra-revolução que havia operado de maneira preventiva contra uma ameaça revolucionária inexistente(3). Essa não existência real de ameaça ou de processo revolucionário em marcha, de avalancha popular contra estruturas decisivas do sistema a desmoronarem-se ou quebradas, encoraja (concede sensação de impunidade) as elite e sua base social.

   A maré contra-revolucionária é um dos resultados possíveis da decomposição do sistema impondo, com êxito em alguns casos do passado, projetos de recomposição elitista. No caso latino-americano exprime decomposição capitalista sem recomposição à vista.

    Se o progressismo foi a superação fracassada do fracasso neoliberal, este neofascismo subdesenvolvido exacerba ambos os fracassos e inaugura uma era de duração incerta de contração econômica e desintegração social. Basta ver o que ocorreu na Argentina com a chegada de Macri à presidência: numas poucas semanas o país passou de um crescimento débil a uma recessão que se vai agravando rapidamente, resultado de uma gigantesca pilhagem. Não é difícil imaginar o que pode ocorrer no Brasil ou na Venezuela, que já estão em recessão, se a direita conquistar o poder político.

   A queda dos preços das commodities e sua crescente volatilidade, que o prolongamento da crise global certamente agravará, foram causas importantes do fracasso progressista e surgem como bloqueios irreversíveis dos projetos de reconversão elitista-exportadora medianamente estáveis. As vitórias direitistas tendem a instaurar economias a funcionarem em baixa intensidade, com mercados internos contraído e instáveis. Isso significa que a sobrevivências desses sistemas de poder dependerá de factores que as máfias governantes pretenderão controlar. Em primeiro lugar, ao descontentamento da maior parte da população aplicando doses variáveis de repressão, legal e ilegal, embrutecimento mediático, corrupção de dirigentes e degradação moral das classes baixas. Trata-se de instrumentos que a própria crise e a combatividade popular podem inutilizar, nesse caso o fantasma da revolta social pode converter-se em ameaça real.

 A estratégia imperial

Os Estados Unidos desenvolvem uma estratégia de reconquista da América Latina, aplicando-a de maneira sistemática e flexível. O golpe brando nas Honduras foi o pontapé inicial, ao qual seguiu-se o golpe no Paraguai e um conjunto de ações desestabilizadora, algumas muito agressivas, de variado êxito que foram avançando ao ritmo das urgências imperiais e do desgaste dos governos progressistas. Em vários casos as agressões mais ou menos abertas ou intensas combinaram-se com bons modos que tentavam vencer sem violências, militar ou econômica, ou somando doses menores das mesmas com operações domesticadores. Onde não funcionava eficazmente a agressão começou a ser praticado o abrandamento moral, implementaram-se pacotes persuasivos de configuração variável combinando penetração, cooptação, pressão, prêmios e outras formas retorcidas de ataque psicológico-político.

    O resultado desse desdobramento complexo é uma situação paradoxal: enquanto os Estados Unidos retrocedem a nível global em termos econômicos e geopolíticos, vão reconquistando passo a passo seu pátio traseiro latino-americano. Para o Império, a queda da Argentina foi uma vitória de grande importância, trabalhada durante muito tempo, ao que é necessário acrescentar três manobras decisivas do seu jogo regional: o submetimento do Brasil, o fim do governo chavista na Venezuela e a rendição negociada da insurgência colombiana. Cada um destes objetivos tem um significado especial:

   A vitória imperialista no Brasil mudaria dramaticamente o cenário regional e produziria um impacto negativo de grande envergadura ao bloco BRICS, afectando seus dois inimigos estratégicos globais: China e Rússia. A vitória na Venezuela não só lhe concederia o controle de 20% das reservas petrolíferas do planeta (a maior reserva mundial) como teria um efeito dominó sobre outros governos da região como os a Bolívia, Equador e Nicarágua – e prejudicaria Cuba sobre a qual os Estados Unidos fazem uma espécie de abraço de urso.

   Finalmente, a extinção da insurgência colombiana, além de afastar o obstáculo principal ao saqueio desse país, deixaria as suas forças armadas de mãos livres para eventuais intervenções na Venezuela. Do ponto de vista estratégico regional o fim da guerrilha colombiana retiraria do cenário uma poderosa força combatente que poderia chegar a operar como um mega-multiplicador de insurgências numa região em crise onde a generalização de governos mafiosos-direitistas agravará a decomposição das suas sociedades. Trata-se talvez da maior ameaça estratégica à dominação imperial, de um enorme perigo revolucionário continental. É precisamente essa dimensão latino-americana do tema que é ocultado pelos meios de comunicação dominantes.

Decadência sistêmica e perspectivas populares

Para além do curioso paradoxo de um império decadente a reconquistar sua retaguarda territorial, do ponto de vista da conjuntura global, da decadência sistêmica do capitalismo, a generalização de governos pró norte-americanos na América Latina pode ser interpretada superficialmente como uma grande vitória geopolítica dos Estados Unidos. Ainda assim, se aprofundarmos a análise e introduzirmos por exemplo o tema do agravamento da crise impulsionada por esses governos tenderíamos a interpretar o fenômeno como expressão específica regional da decadência do sistema global.

   O afastamento do estorvo progressista pode chegar a gerar problemas maiores à dominação imperial – apesar de as inclusões sociais e as mudanças econômicas realizada terem sido insuficientes, embrulhadas, estivesse impregnadas de limitações burguesas e de que a sua autonomia em matéria de política internacional teve uma audácia restrita. O certo é que seu percursos deixou marcas, experiências sociais, dignificações (suprimidas pela direita) que serão muito difíceis extirpar e que em consequência podem chegar a converter-se em contribuições significativa para futuros (e não tão longínquos) irrupções populares radicalizadas.

    A ilusão progressista de humanização do sistema, de realização de reformas "sensatas" dentro dos quadros institucionais existentes, pode passar da decepção inicial a uma reflexão social profunda, crítica da institucionalizada mafiosa, da opressão mediática e dos grupos de negócios parasitários. Isso inclui a farsa democrática que os legitima. Nesse caso a doença progressista poderia converter-se, cedo ou tarde, em furacão revolucionário – não porque o progressismo como tal evolua para a radicalidade anti-sistema e sim porque emergiria uma cultura popular superadora, desenvolvida na luta contra regimes condenados a degradar-se cada vez mais.

    Nesse sentido poderíamos entender um dos significados da revolução cubana, que logo se estendeu como onda anti-capitalista na América Latina, como superação críticas dos reformismos nacionalistas democratizantes (como o varguismo no Brasil, o nacionalismo revolucionário na Bolívia, o primeiro peronismo na Argentina ou o governo de Jacobo Arbenz na Guatemala). A memória popular não pode ser extirpada, pode chegar a afundar-se numa espécie de clandestinidade cultural, numa latência subterrânea digerida misteriosamente, pensada pelos de baixo, subestimada pelos de cima, para reaparecer como presente, quando as circunstâncias o exijam, renovada, implacável.

(1) Se consideramos o último quinquênio (2010-2014) o crescimento médio real da economia do Japão foi da ordem dos 1,5%, o dos Estados Unidos de 2,2% e o da Alemanha de 2% (Fonte: Banco Mundial). (retornar ao texto)

 (2) Um bom exemplo é o da "importação" de fármacos onde empresas multinacionais como a Pfizer, Merck e P&G fazem fabulosos negócios ilegais perante um governo "socialista" que lhes fornece dólares a preços preferenciais. Com um jogo de sobrefaturações, sobrepreços e importações inexistentes as empresas farmacêuticas haviam importando em 2003 umas 222 mil toneladas de produtos pelos quais pagaram 434 milhões de dólares (uns 2 mil dólares por tonelada), em 2010 as importações baixaram para 56 mil toneladas e pagaram-se 3410 milhões de dólares (60 mil dólares por tonelada) e em 2014 as importações desceram ainda mais para 28 mil toneladas e pagaram-se 2400 milhões de dólares (um pouco menos de 87 mil dólares por tonelada). Como bem assinala Manuel Sutherland, de cujo estudo extraio essa informação, "longe de contemplar a criação de uma grande empresa estatal de produção de fármacos, o governo prefere dar divisas preferenciais a importadores fraudulentos, ou confiar em burocratas que realizam importações sob a maior opacidade". Manuel Sutherland, "2016: La peor de las crisis económicas, causas, medidas y crónica de una ruina anunciada", CIFO, Caracas 2016. (retornar ao texto)

 (3) Ignazio Silone, "L'École des dictateurs", Collection Du monde entier, Gallimard, París, 1964. (retornar ao texto)

Edição: Página 1917


 


sexta-feira, 10 de julho de 2020

Uma Admoestação*


Antonio Gramsci

     É o caso ou a sorte que pretende que o Congresso do Partido Socialista Italiano** se reúna em Livorno no aniversário do sacrifício de Karl Liebknecht? Não acreditamos nas datas fatais, nem nas fatídicas coincidências da história e muito menos acreditamos que o espírito dos mortos tenha o poder de regressar entre os vivos e de inspirá-los. Mas se aqueles de quem se comemora a morte são os “nossos” mortos, os que caíram com as armas levantadas no fervor da luta, e com o espírito tenso, nas alternativas desesperadas do combate, a resistir, a esperar – destes mortos, também nós sentimos a vitalidade eterna, sentimos também a permanência do seu espírito animador entre nós -, por estes mortos também nós quase nos sentimos repetir as palavras da esperançosa superstição cristã: estes estão ainda vivos e julgam e esperam. Na realidade, somos nós próprios que julgamos e esperamos, mas queremos pensar a ação e o juízo, nestes momentos supremos, como que inspirados, quase ditados por um ensinamento que brota da vida de quem mais intensamente do que nós, operou pela afirmação e vitória dos nossos princípios.

     Sob os auspícios do nome de Karl Liebknecht se abre, pois, o Congresso de Livorno. Quem evocar, com o nome, os fatos e os ensinamentos, só poderá extrair deles uma admoestação, de acordo com a nossa espera, a nossa confiança, os nossos propósitos.
     Com a morte de Karl Liebknecht, em janeiro de 1919, acabava no sacrifício cruel a primeira grande afirmação dos comunistas da Europa central e ocidental. A insurreição armada do proletariado alemão que ele dirigiu com a autoridade da sua pessoa, enorme quando comparada às meias figuras de traidores e de hesitantes, e com uma precisão de pensamento e de propósitos igual ao ardor e à tenacidade inquebrantável da vontade, aquela insurreição foi na verdade, a primeira, a única grande tentativa séria e dotada de probabilidades de sucesso, de inserir e compreender o desenvolvimento da crise europeia pós-bélica no mesmo quadro da revolução russa. A insurreição dos comunistas alemães pareceu por um instante realizar a soldagem entre a revolução russa vitoriosa e os esforços de minorias revolucionárias dos países da Europa central e ocidental. Se a soldagem se tivesse completado, em vez de esgotar-se numa série de tentativas esporádicas e no grande épico, mas doloroso esforço de um povo isolado, a revolução europeia teria tido a sua orientação natural numa revolta de todo o proletariado contra todos os governos da Aliança. Por isso nos dias trágicos de janeiro de 1919, o coração do mundo inteiro pulsou à volta de Berlim, e o destino do mundo inteiro pareceu suspenso do êxito dos confrontos raivosos nos quais vertia o seu sangue a flor dos proletários da Alemanha. O próprio nome de Liebknecht pareceu então a todo o mundo, de modo evidente, o que tinha parecido nos anos da guerra à fantasia de Henri Barbusse, uma síntese viva, um símbolo: a síntese e o símbolo da revolta proletária contra as infâmias, contra os horrores, contra a escravidão da guerra e da paz capitalistas.    
Karl Liebknecht
     Mas hoje, quando recordamos estes fatos à distância de dois anos, podemos acrescentar qualquer coisa àquela representação simbólica, podemos acrescentar a experiência de um período revolucionário aberto com as maiores esperanças e com a maior audácia, e ainda não concluído, embora a recordação dos acontecimentos, mais lenta e menos febril, pareça indicar uma depressão dos espíritos e da vontade de revolta. O desenvolvimento dos fatos apresenta-se hoje, também ele, mais claro, em conjunto com o lógico encadear das causas e dos efeitos, e o sacrifício de Liebknecht aparece-nos em toda a sua plenitude de valor que teve, não só na história da revolução europeia, mas na própria e íntima história da formação, nas fileiras do proletariado, de uma preciosa consciência e de uma válida capacidade de ação. Por isso, antes de qualquer outra coisa, ao recordar a morte atroz, recordamos que os seus instrumentos foram preparados ainda antes do que pela classe burguesa, pelos traidores saídos das filas do partido do proletariado. Comemoramos o mártir e o herói, o homem em cuja vida se resumiu, num instante, a sorte de toda a classe rebelde, e não podemos deixar de recordar, como parte essencial de um ensinamento que não se apaga, que a sua sorte foi traçada por aqueles que tinham menos fé, que tinham passado para as fileiras adversárias ou permanecido entre as fileiras dos combatentes para semear ali a dúvida, incerteza e ceticismo. A insurreição de Berlim, de janeiro de 1919, faliu porque encontrou contra si, organizadas pelos sociais-democratas, as forças da reação; depois dela, o proletariado alemão esteve impedido de ressurgir, válido e potente, pelos mesmos que um dia pareciam ser os guias da ação e depois se revelaram traidores escondidos sob a capa do teórico ou do funcionário, ou do parlamentar. Apenas atualmente, depois de um longo período de elaboração interior, depois de um período fatigante de libertação e de renovação, a classe operária alemã está encontrando a sua estrada. E encontra através das diretrizes de Karl Liebknecht.
     Mas nós dissemos que no seu nome e na sua ação víamos um exemplo para todos os povos. Mais do que um exemplo, é uma prova. Karl Liebknecht provou-nos da maneira mais válida, com o sacrifício, qual é a estrada e quais são os obstáculos.
     Quem evocar o seu nome no Congresso de Livorno saberá exprimir completamente a admoestação que esse fato contém?
     Sob os auspícios do seu nome – e agora parece-nos realmente que a coincidência é fatídica – queremos pôr a origem do Partido Comunista Italiano.

* Publicado em L"Ordine Nuovo, 15/01/1921.

** Congresso do Partido Socialista Italiano realizado em Livorno, Itália, de 15 a 21 de janeiro de 1921, nele ocorreu o rompimento dos comunistas, que se retiraram e reuniram-se na mesma cidade, para fundação do Partido Comunista Italiano.

Edição: Página 1917.
    
    


quarta-feira, 8 de julho de 2020

O Vírus "Contra-Revolucionário"

Ney Nunes

   Quando as esperanças de redenção diante de uma situação adversa, como essa que estamos enfrentando na atualidade, são depositadas na ação fatal de um vírus sobre uma determinada pessoa ou grupo de pessoas, por mais abjetas que sejam, isto significa que o sentimento de impotência está se tornando predominante entre nós. Ainda mais quando sabemos que os efeitos da doença são majoritariamente fatais entre os estratos mais desfavorecidos da população, ou seja, entre os que estão amontoados em moradias minúsculas e insalubres, os que são obrigados a se deslocar em busca do ganha-pão em transportes superlotados e, quando são contaminados pelo vírus, deparam-se com o desmonte e a insuficiência dos serviços de saúde.



Trabalhadores enfrentam transportes lotados na pandemia.

  Se as exceções acontecem, vimos políticos burgueses e até banqueiros serem contagiados e falecerem, elas não passam disso, exceções que apenas confirmam a regra e não mudam em nada a situação. Até porque, não faltam substitutos prontos para continuar executando a tarefa de lacaios rastejantes do capital e do imperialismo, podendo constituir soluções até mais eficazes, do ponto de vista das classes dominantes, para prosseguir com os planos de superexploração do povo trabalhador.

 O vírus mostrou-se um “contra-revolucionário”. Seus efeitos são pesadamente desmobilizadores, restringindo, até aqui, as possibilidades de reação das massas populares no enfrentamento com as medidas aplicadas pelo governo e empresários para salvar os negócios e os lucros, em detrimento das condições de vida e sobrevivência da maioria da população. Mas essas condições não são insuperáveis, os caminhos da organização e da luta começam a ser desbravados, ainda que de forma lenta. A necessidade acaba por exigir que as parcelas mais exploradas superem as posturas imobilistas e puramente defensivas recomendadas pelas forças políticas situadas no campo da enganosa conciliação de classes. 

   O sentimento de impotência precisa ser vencido, ele aprisiona nossa capacidade de ação e leva ao comodismo dos atalhos ilusórios. Justamente quando o que mais precisamos nesse momento é reforçar nossa confiança na ação coletiva, organizada e independente do proletariado e dos seus aliados, condição indispensável para derrotar os planos desse governo Bolsonaro, serviçal da burguesia e capacho do imperialismo em nosso país.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Atrocidades de Bill Clinton na Guerra da Sérvia Expostas em Nova Acusação



JAMES BOVARD

O combatente da liberdade favorito do presidente Bill Clinton acaba de ser indiciado por assassinato em massa, tortura, sequestro e outros crimes contra a humanidade. Em 1999, o governo Clinton lançou uma campanha de bombardeio de 78 dias que matou até 1500 civis na Sérvia e Kosovo, no que a mídia americana orgulhosamente retratou como uma cruzada contra o preconceito étnico. Essa guerra, como a maioria das pretensões da política externa dos EUA, sempre foi uma farsa.
 
Bil Clinton e o genocida Hashim Traci.
O presidente do Kosovo, Hashim Thaci, foi acusado de dez crimes de guerra e crimes contra a humanidade por um tribunal internacional em Haia, na Holanda, que acusou Thaci e nove outros homens de “crimes de guerra, incluindo assassinato, desaparecimento forçado de pessoas, perseguição e tortura”. Thaci e os outros suspeitos ​​foram acusados ​​de serem “criminalmente responsáveis ​​por quase 100 assassinatos” e a acusação envolveu “centenas de vítimas conhecidas do Kosovo albanês, sérvio, cigano e outras etnias e incluem oponentes políticos”. Mas o viés ridículo da mídia americana e / ou a incompetência sobre essa guerra continuam. O New York Times respondeu à acusação de Thaci com um tweet declarando que "O líder da Sérvia foi indiciado por crimes de guerra".

A carreira de Hashim Thaci ilustra como o antiterrorismo é uma bandeira de conveniência para os formuladores de políticas de Washington. Antes de se tornar presidente do Kosovo, Thaci era o chefe do Exército de Libertação do Kosovo (KLA), lutando para forçar os sérvios a sair do Kosovo. Em 1999, o governo Clinton designou os "combatentes da liberdade" do KLA, apesar de seu passado criminoso, e deu-lhes ajuda maciça. No ano anterior, o Departamento de Estado condenou "a ação terrorista do chamado Exército de Libertação do Kosovo". O KLA estava fortemente envolvido no tráfico de drogas e tinha laços estreitos com Osama bin Laden.

Mas armar o KLA e bombardear a Sérvia ajudou Clinton a se retratar como um cruzado contra a injustiça e a desviar a atenção do público após seu julgamento de impeachment. Clinton foi ajudado por muitos vergonhosos membros do Congresso, ansiosos por santificar as matanças dos EUA. O senador Joe Lieberman (D-CN) afirmou que os Estados Unidos e o KLA “representam os mesmos valores e princípios. Lutar pelo KLA é lutar pelos direitos humanos e pelos valores americanos.” E como as autoridades do governo Clinton compararam publicamente o líder sérvio Slobodan Milošević a Hitler, toda pessoa decente foi obrigada a aplaudir a campanha de bombardeio. (Alexander Cockburn foi um dos poucos jornalistas que condenaram a guerra injusta na época.)

Tanto os sérvios quanto os albaneses étnicos cometeram atrocidades no conflito amargo no Kosovo. Mas, para santificar sua campanha de bombardeios, o governo Clinton agitou uma varinha mágica e fez desaparecer as atrocidades do KLA. O professor britânico Philip Hammond observou que a campanha de bombardeios de 78 dias “não foi uma operação puramente militar: a OTAN também destruiu o que chamou de alvos de 'uso duplo', como fábricas, pontes da cidade e até o principal edifício de televisão no centro de Belgrado, numa tentativa de aterrorizar o país e se render." A OTAN repetidamente lançou bombas de fragmentação em mercados, hospitais e outras áreas civis. As bombas de fragmentação são dispositivos antipessoal projetados para serem espalhados pelas formações de tropas inimigas. A OTAN lançou mais de 1.300 bombas de fragmentação na Sérvia e Kosovo e cada bomba continha 208 bombas separadas que flutuavam de pára-quedas até cair na terra. Especialistas em bombas estimaram que mais de 10.000 bombas não explodidas estavam espalhadas pelo solo quando o bombardeio terminou e mutilaram crianças muito depois do cessar-fogo.

Nos últimos dias da campanha de bombardeios, o Washington Post relatou que "alguns assessores presidenciais e amigos estão descrevendo Kosovo em tom de Churchillianos, como a "melhor hora de Clinton". O Post também informou que, de acordo com um amigo de Clinton, o que Clinton acredita ter sido os motivos morais inequívocos para a intervenção da OTAN representavam uma chance de acalmar os arrependimentos da própria consciência de Clinton. O amigo disse que Clinton às vezes lamentou que a geração anterior a ele fosse capaz de servir em uma guerra com um propósito claramente nobre, e ele se sente 'quase enganado' que 'quando chegou a sua vez, ele não teve a chance de fazer parte de uma causa moral. Segundo o padrão de Clinton, o abate de sérvios era “suficientemente próximo para o trabalho do governo” de uma “causa moral”.

Logo após o final da campanha de bombardeio de 1999, Clinton enunciou o que seus assessores chamavam de doutrina Clinton: “Seja dentro ou fora das fronteiras de um país, se a comunidade mundial tem o poder de detê-lo, devemos parar o genocídio e a limpeza étnica.” Na realidade, a doutrina de Clinton era que os presidentes têm o direito de começar a bombardear terras estrangeiras com base em qualquer mentira descarada que a mídia americana regurgitará. Na realidade, a lição de bombardear a Sérvia é que os políticos americanos precisam apenas recitar publicamente a palavra "genocídio" para obter uma licença para matar.

Após o término do atentado, Clinton garantiu ao povo sérvio que os Estados Unidos e a OTAN concordaram em manter a manutenção da paz apenas "com o entendimento de que protegeriam os sérvios e os albaneses étnicos e que partiriam quando a paz se estabelecer". Nos meses e anos subsequentes, as forças americanas e da OTAN permaneceram, enquanto o KLA retomou sua limpeza étnica, matando civis sérvios, bombardeando igrejas sérvias e oprimindo qualquer não-muçulmano. Quase 250 mil sérvios, ciganos, judeus e outras minorias fugiram do Kosovo depois que Clinton prometeu protegê-los. Em 2003, quase 70% dos sérvios que viviam no Kosovo em 1999 haviam fugido, e o Kosovo era 95% albanês.

Mas Thaci permaneceu útil para os formuladores de políticas dos EUA. Embora tenha sido amplamente condenado por opressão e corrupção depois de assumir o poder no Kosovo, o vice-presidente Joe Biden saudou Thaci em 2010 como o "George Washington do Kosovo". Alguns meses depois, um relatório do Conselho da Europa acusou os agentes de Thaci e do KLA de tráfico de órgãos humanos. O The Guardian observou que o relatório alegava que o círculo interno de Thaci "levou cativos do outro lado da fronteira para a Albânia após a guerra, onde se diz que vários sérvios foram assassinados e seus rins vendidos no mercado negro". O relatório afirmava que, quando os “cirurgiões de transplante” estavam “prontos para operar, os cativos [sérvios] foram trazidos para fora da 'casa segura' individualmente, executados sumariamente por um atirador do KLA, e seus cadáveres foram transportados rapidamente para a clínica em operação”.

Apesar da acusação de tráfico de corpos, Thaci foi participante principal da conferência anual Global Initiative da Clinton Foundation em 2011, 2012 e 2013, onde posou para fotos com Bill Clinton. Talvez isso tenha sido uma vantagem do contrato de lobby de US $ 50.000 por mês que o regime de Thaci assinou com o The Podesta Group, co-gerenciado pelo futuro gerente de campanha de Hillary Clinton, John Podesta, como noticiou o Daily Caller .

Clinton continua sendo um herói no Kosovo, onde uma estátua dele foi erguida na capital, Pristina. O jornal Guardian observou que a estátua mostrava Clinton “com a mão esquerda levantada, um gesto típico de um líder cumprimentando as massas. Na mão direita, ele está segurando documentos gravados com a data em que a OTAN iniciou o bombardeio da Sérvia, em 24 de março de 1999.” Teria sido uma representação mais precisa mostrar Clinton em pé sobre uma pilha de cadáveres de mulheres, crianças e outros mortos na campanha de bombardeio nos EUA.

Em 2019, Bill Clinton e sua ex-secretária de Estado fanaticamente pró-bombardeio, Madeline Albright, visitaram Pristina, onde foram "tratados como estrelas do rock" enquanto posavam para fotos com Thaci. Clinton declarou: "Eu amo este país e sempre será uma das maiores honras da minha vida ter ficado com você contra a limpeza étnica (pelas forças sérvias) e pela liberdade". Thaci concedeu medalhas de liberdade a Clinton e Albright "pela liberdade que ele trouxe para nós e pela paz em toda a região". Albright se reinventou com um alerta visionário sobre o fascismo na era Trump. Na verdade, o único honorífico que Albright merece é "Açougueira de Belgrado".

A guerra de Clinton na Sérvia era uma caixa de Pandora na qual o mundo ainda sofre. Como os políticos e a maioria da mídia retrataram a guerra contra a Sérvia como um triunfo moral, era mais fácil para o governo Bush justificar o ataque ao Iraque, para o governo Obama bombardear a Líbia e para o governo Trump bombardear repetidamente a Síria. Todas essas intervenções semearam o caos que continua amaldiçoando os supostos beneficiários.

O bombardeio de Bill Clinton na Sérvia em 1999 foi uma fraude tão grande quanto a que levou George W. Bush a atacar o Iraque. O fato de Clinton e outros altos funcionários do governo dos EUA continuarem a glorificar Hashim Thaci, apesar das acusações de assassinato em massa, tortura e tráfico de corpos, é outro lembrete da venalidade de grande parte da elite política americana. Os americanos serão crédulos novamente na próxima vez que os formuladores de políticas de Washington e seus aliados da mídia inventarem pretextos falsos para instaurar o inferno em alguma  infeliz terra estrangeira?O 

* O original se encontra em:
https://www.counterpunch.org/2020/06/30/bill-clintons-serbian-war-atrocities-exposed-in-new-indictment/

Edição e tradução: Página 1917

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