Antonio
Gramsci
É o caso ou a sorte que pretende que o
Congresso do Partido Socialista Italiano** se reúna em Livorno no aniversário do
sacrifício de Karl Liebknecht? Não acreditamos nas datas fatais, nem nas fatídicas
coincidências da história e muito menos acreditamos que o espírito dos mortos
tenha o poder de regressar entre os vivos e de inspirá-los. Mas se aqueles de
quem se comemora a morte são os “nossos” mortos, os que caíram com as armas
levantadas no fervor da luta, e com o espírito tenso, nas alternativas desesperadas
do combate, a resistir, a esperar – destes mortos, também nós sentimos a
vitalidade eterna, sentimos também a permanência do seu espírito animador entre
nós -, por estes mortos também nós quase nos sentimos repetir as palavras da esperançosa
superstição cristã: estes estão ainda vivos e julgam e esperam. Na realidade,
somos nós próprios que julgamos e esperamos, mas queremos pensar a ação e o
juízo, nestes momentos supremos, como que inspirados, quase ditados por um
ensinamento que brota da vida de quem mais intensamente do que nós, operou pela
afirmação e vitória dos nossos princípios.
Sob os auspícios do nome de Karl
Liebknecht se abre, pois, o Congresso de Livorno. Quem evocar, com o nome, os
fatos e os ensinamentos, só poderá extrair deles uma admoestação, de acordo com
a nossa espera, a nossa confiança, os nossos propósitos.
Com a morte de Karl Liebknecht, em janeiro
de 1919, acabava no sacrifício cruel a primeira grande afirmação dos comunistas
da Europa central e ocidental. A insurreição armada do proletariado alemão que
ele dirigiu com a autoridade da sua pessoa, enorme quando comparada às meias
figuras de traidores e de hesitantes, e com uma precisão de pensamento e de
propósitos igual ao ardor e à tenacidade inquebrantável da vontade, aquela
insurreição foi na verdade, a primeira, a única grande tentativa séria e dotada
de probabilidades de sucesso, de inserir e compreender o desenvolvimento da
crise europeia pós-bélica no mesmo quadro da revolução russa. A insurreição dos
comunistas alemães pareceu por um instante realizar a soldagem entre a
revolução russa vitoriosa e os esforços de minorias revolucionárias dos países
da Europa central e ocidental. Se a soldagem se tivesse completado, em vez de
esgotar-se numa série de tentativas esporádicas e no grande épico, mas doloroso
esforço de um povo isolado, a revolução europeia teria tido a sua orientação
natural numa revolta de todo o proletariado contra todos os governos da
Aliança. Por isso nos dias trágicos de janeiro de 1919, o coração do mundo
inteiro pulsou à volta de Berlim, e o destino do mundo inteiro pareceu suspenso
do êxito dos confrontos raivosos nos quais vertia o seu sangue a flor dos
proletários da Alemanha. O próprio nome de Liebknecht pareceu então a todo o
mundo, de modo evidente, o que tinha parecido nos anos da guerra à fantasia de
Henri Barbusse, uma síntese viva, um símbolo: a síntese e o símbolo da revolta
proletária contra as infâmias, contra os horrores, contra a escravidão da
guerra e da paz capitalistas.
Mas hoje, quando recordamos estes fatos à
distância de dois anos, podemos acrescentar qualquer coisa àquela representação
simbólica, podemos acrescentar a experiência de um período revolucionário
aberto com as maiores esperanças e com a maior audácia, e ainda não concluído,
embora a recordação dos acontecimentos, mais lenta e menos febril, pareça
indicar uma depressão dos espíritos e da vontade de revolta. O desenvolvimento
dos fatos apresenta-se hoje, também ele, mais claro, em conjunto com o lógico
encadear das causas e dos efeitos, e o sacrifício de Liebknecht aparece-nos em
toda a sua plenitude de valor que teve, não só na história da revolução europeia,
mas na própria e íntima história da formação, nas fileiras do proletariado, de
uma preciosa consciência e de uma válida capacidade de ação. Por isso, antes de
qualquer outra coisa, ao recordar a morte atroz, recordamos que os seus
instrumentos foram preparados ainda antes do que pela classe burguesa, pelos
traidores saídos das filas do partido do proletariado. Comemoramos o mártir e o
herói, o homem em cuja vida se resumiu, num instante, a sorte de toda a classe
rebelde, e não podemos deixar de recordar, como parte essencial de um
ensinamento que não se apaga, que a sua sorte foi traçada por aqueles que
tinham menos fé, que tinham passado para as fileiras adversárias ou permanecido
entre as fileiras dos combatentes para semear ali a dúvida, incerteza e
ceticismo. A insurreição de Berlim, de janeiro de 1919, faliu porque encontrou
contra si, organizadas pelos sociais-democratas, as forças da reação; depois
dela, o proletariado alemão esteve impedido de ressurgir, válido e potente,
pelos mesmos que um dia pareciam ser os guias da ação e depois se revelaram
traidores escondidos sob a capa do teórico ou do funcionário, ou do
parlamentar. Apenas atualmente, depois de um longo período de elaboração
interior, depois de um período fatigante de libertação e de renovação, a classe
operária alemã está encontrando a sua estrada. E encontra através das
diretrizes de Karl Liebknecht.
Mas nós dissemos que no seu nome e na sua
ação víamos um exemplo para todos os povos. Mais do que um exemplo, é uma
prova. Karl Liebknecht provou-nos da maneira mais válida, com o sacrifício,
qual é a estrada e quais são os obstáculos.
Quem evocar o seu nome no Congresso de
Livorno saberá exprimir completamente a admoestação que esse fato contém?
Sob os auspícios do seu nome – e agora
parece-nos realmente que a coincidência é fatídica – queremos pôr a origem do
Partido Comunista Italiano.
* Publicado em L"Ordine Nuovo, 15/01/1921.
** Congresso do Partido Socialista Italiano realizado em Livorno, Itália, de 15 a 21 de janeiro de 1921, nele ocorreu o rompimento dos comunistas, que se retiraram e reuniram-se na mesma cidade, para fundação do Partido Comunista Italiano.
Edição: Página 1917.
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