Francisco Martins Rodrigues
1999
O 25 de Novembro foi, à sua maneira, tão original como o 25 de Abril. Se a «Revolução dos cravos» se distinguira por ter derrubado o fascismo sem combates e sem vítimas, o golpe militar que lhe pôs termo pareceu não querer ficar-lhe atrás em cavalheirismo. A repressão, restrita à área militar, foi relativamente branda, o Conselho da Revolução manteve-se em funções, a legalidade democrática foi prontamente restabelecida, o PCP, alvo de acusações de ter tentado uma insurreição, permaneceu no governo. Cinco meses após o golpe, o país era dotado com uma Constituição avançada, «a caminho da sociedade sem classes»... Tudo funcionou como se a uma meia revolução devesse corresponder uma meia contra-revolução, a uma comédia, outra comédia.
25 de novembro de 1975: golpe contra a Revolução dos Cravos |
Esta singularidade não se explica, naturalmente, pela «índole pacífica» dos portugueses. Os povos africanos podem atestá-lo. Ela tem a ver com o equilíbrio original entre as classes criado durante a crise revolucionária, o qual deu lugar, na sugestiva expressão de Boaventura Sousa Santos, a uma dualidade de impotências em vez de uma dualidade de poderes(10). O 25 de Novembro foi brando porque a contra-revolução não tinha muita energia, mas também porque não havia muita revolução para destruir.
Durante longos meses, o movimento popular, impulsionado pela classe operária e pelo proletariado rural, e o movimento conservador da burguesia tinham-se esgotado em escaramuças incertas, incapazes de fazer pender a balança decisivamente para um dos lados. Se no auge do «Verão quente» a revolução parecia prestes a ganhar a partida, a vantagem era ilusória porque o aparelho de Estado, embora paralisado, se mantinha intacto e as massas não dispunham de forças para o assaltar.
Os três meses finais da crise, entre o pronunciamento de Tancos e o 25 de Novembro, tiveram como pano de fundo precisamente a disputa das tropas por parte da corrente popular. Mas, mesmo nessa fase clássica de desenlace de todas as crises revolucionárias, a impotência foi o traço marcante de parte a parte. Até que a burguesia, enquadrada pelo PS, PPD, CDS e ELP, e estimulada pelos americanos e alemães, reuniu forças pare pôr ponto final ao confronto.
Em que se radicava a impotência da «esquerda» no Outono de 75? Esta é talvez a questão mais importante que os marxistas portugueses têm para responder. Quanto a nós, ela nascia da divisão que dilacerava a corrente revolucionária popular. O proletariado, verdadeiro motor dos acontecimentos, estava tão estreitamente entrelaçado com a pequena burguesia democrática que não conseguia desenganchar-se da sua direção política. Ora, os interesses de um e da outra eram nesse momento abertamente antagônicos. O proletariado precisava, para realizar os seus objetivos, de se lançar na disputa armada do poder; a pequena burguesia de «esquerda» oferecia-lhe, em nome da revolução, uma grande variedade de táticas, que tinham todas um traço comum: manter o poder fora do seu alcance. Daqui, a impotência.
Que isto não é uma tese «dogmática» marxista mostra-o o jogo dos conflitos e alianças, nesses três meses de agonia do PREC*, entre os protagonistas da esquerda: PCP, os «gonçalvistas», o grupo do Copcon, a extrema esquerda.
A queda do V Governo, primeiro dobre a finados pela revolução, pôs em relevo as diferenças táticas entre o PCP e o «gonçalvismo», diferenças que o PS e a direita persistem em ignorar por conveniência e a esquerda «marxista-leninista» por miopia.
Era missão atribuída ao V Governo, segundo o testemunho insuspeito de um seu membro, tomar medidas econômicas de emergência, as quais «implicando sacrifícios para os próprios trabalhadores, tornar-se-iam necessariamente impopulares. Só um Governo, portanto, que merecesse a confiança dos trabalhadores poderia conseguir que estes as aceitassem sem forte reação.»(11) Tratava-se de amainar o descontentamento da burguesia à custa dos trabalhadores e, a este respeito, não havia divergências entre Vasco Gonçalves e o PCP.
O cálculo ficou porém prejudicado à partida pela brusca aparição do Documento dos Nove. A partir desse momento, começou a definir-se um desacordo, discreto, mas cada vez mais profundo, entre Vasco Gonçalves e Cunhal. O primeiro acreditava, com a sua impulsividade um pouco obtusa, poder fazer frente ao desafio de Melo Antunes e avançar com o «poder revolucionário». Mas o secretário-geral do PCP, para quem a unidade dos «militares democratas» era matéria de fé, entendeu desde logo que era preciso abandonar a trincheira.
Assim, enquanto Vasco Gonçalves obtinha do Conselho da Revolução a suspensão dos nove «rebeldes», o CC do PCP fazia votos por «recomposições, reajustamentos, ou reconsiderações que possam aumentar a eficiência governativa e alargar a base de apoio social e político do poder.»(12)
A calorosa e «inabalável» adesão do PCP ao governo durante o turbulento mês de Agosto era em parte forçada — a base proletária do partido não entenderia outra atitude — e em parte calculada — com esse apoio o partido colocava-se em melhores condições para regatear uma plataforma com os Nove.
As motivações do PCP nesta conjuntura foram expressas com franqueza só um ano mais tarde, no relatório do CC ao VIII Congresso: «O PCP repetidas vezes chamou a atenção para os perigos da formação de um tal Governo sem se resolver a situação no MFA.»
Formado este, o PCP insistiu na necessidade de uma «viragem na atitude da Esquerda militar [isto é, os «gonçalvistas»] no sentido da reaproximação e entendimento dos vários sectores do MFA, particularmente a Esquerda e os Nove».(13)
Por fim, a 28 de Agosto, perante a iminência de um desastre que V. Gonçalves se obstinava em não admitir, o PCP decide-se a desautorizá-lo, renegando a FUR e lançando uma proposta pública de negociação ao PS e aos Nove. A proposta — é ainda Cunhal que o diz — «não foi bem recebida. A Esquerda militar, preocupada então numa aproximação com os esquerdistas, achou incorreto admitirem-se conversações com os Nove e com o PS, que os esquerdistas acusavam de fascistas».(14)
Com esta oferta de capitulação ficou traçada a sorte da Assembleia de Tancos, donde Vasco Gonçalves saiu dias depois, amargurado pela derrota mas sobretudo pela traição do aliado.
Como chegara Vasco Gonçalves a colocar-se à esquerda do PCP? O que há de curioso no seu pensamento político e que o separa de Cunhal é que ele levou muito a sério o mito da «transição para o socialismo» no Verão de 75. Com a cabeça esquentada por leituras revisionistas mal digeridas, o «companheiro Vasco» acreditava piamente que se a aliança Povo/MFA se mantivesse firme na sua rota conseguiria levar de vencida todas as oposições, ganhando pedagogicamente a burguesia para o seu lado.
Como expusera com patética ingenuidade no discurso de Almada, abria-se «à pequena e setores da média burguesia» a perspectiva de «por uma via pacifica, ascenderem progressivamente à sociedade sem classes, na qual gozarão exatamente dos mesmos direitos que o resto da população.» (...) «Assim o queiram compreender.»(15) Ascender à sociedade sem classes! — não havia melhor forma de pôr os patrões, os proprietários e os quadros em pé de guerra. Cunhal não tinha esta ingenuidade. Os caminhos do PCP e da «Esquerda militar» podem ter parecido idênticos, nesse Outono febril de manifestações e proclamações. Mas correspondiam a duas táticas em disputa: a de uma fração pequeno-burguesa inexperiente, que pretendia impor o «socialismo militar» em confronto com todos os sectores da burguesia; e a de um corpo pequeno-burguês amadurecido em largas batalhas políticas, considerando-se a si próprio como o condutor natural da classe operária e que se dispunha a procurar uma via mais prudente.
Naturalmente, para uns e para outros o objetivo era desviar o curso dos acontecimentos dos dois desenlaces extremos que os espreitavam: fascismo ou revolução proletária. Por isso, o PCP e os «gonçalvistas» se encontraram unidos, apesar das suas divergências, na luta contra a direita e na luta contra a esquerda.
Notas:
(10) Boaventura Sousa Santos, ibid., p. 21.
(11) J. Teixeira Ribeiro, introdução aos Discursos, conferências, entrevistas de Vasco Gonçalves. Ed. Seara Nova, 1976. p. 10.
(12) Documentos políticos do CC do PCP, 3 o vol, Ed. Avante, 1976. p. 71.
(13) Álvaro Cunhal, A Revolução portuguesa — o passado e o futuro, Ed. Avante, 1976, p. 165.
(14) id., p. 161.
(15) Vasco Gonçalves, ob. cit., p. 367.
Fonte: Abril Traído, Edições Dinossauro, Lisboa, 1999.
Edição: Página 1917
* (Processo Revolucionário em Curso)
Nenhum comentário:
Postar um comentário