Raphael Machado*
04/08/25
Desde o anúncio das tarifas trumpistas contra o Brasil, nenhuma palavra foi repetida mais do que "soberania". O presidente Lula insiste que Trump "não pode" fazer isso porque o Brasil é "soberano" e, portanto, decide seus assuntos internos (como o caso jurídico de Bolsonaro) sozinho, sem responder a nenhum outro país.
O aparato de propaganda do governo produz materiais gráficos enfatizando a “soberania brasileira” (cujos símbolos, aparentemente, seriam o Banco Itaú, o Bolsa Família e as capivaras), enquanto os apoiadores de Bolsonaro são criticados como “traidores” por buscarem subordinar o Brasil aos EUA, negando, assim, essa “soberania”.
O que fica claro é que o termo "soberania" é tomado como algo dado — uma qualidade inerente que o Brasil possui independentemente das circunstâncias. A soberania é tratada como um atributo imutável do Brasil como nação entre nações.
Bem, há duas maneiras de pensar sobre soberania.
Uma vê a soberania como uma prerrogativa especial conferida a uma figura ou instituição dentro de um sistema político-jurídico (a politeia). A outra vê a soberania como uma qualidade de "igualdade" entre Estados-nação no sistema internacional.
O primeiro não é relevante aqui porque diz respeito a “quem tem a palavra final” dentro de uma politeia — não ao que se quer dizer quando as pessoas dizem “o Brasil é um país soberano”.
Quanto ao segundo tipo de soberania, há uma contradição fundamental. A soberania é considerada — como já mencionado — como um "dado", uma qualidade inata e essencial das nações em um sistema internacional justo e igualitário, onde cada Estado-nação é equivalente a um "indivíduo livre". Mas o que acontece quando um Estado-nação realmente interfere na "liberdade" de outro, e nada pode impedi-lo?
Onde está, então, a soberania?
O primeiro problema, portanto, é ver a soberania como um “ser” em vez de um “deveria ser” — como uma qualidade permanente, dada e incondicional, em vez de uma meta a ser perseguida, um objetivo sempre em questão, sujeito à tensão constante entre forças concorrentes.
Esse problema é típico das teorias contemporâneas de Relações Internacionais. Mesmo a escola realista não está isenta do erro de conceber o Estado-nação como o equivalente geopolítico do "indivíduo" hobbesiano.
E esse tipo de posição sempre esbarra no problema prático de: "Mas o que acontece quando um estado realmente interfere em outro?" Sem uma resposta satisfatória, "soberania" se torna um conceito vazio.
A única resposta satisfatória é precisamente aquela que redefine a “soberania” como algo inconstante — um fator histórico que pode ser fortalecido ou enfraquecido, ganho ou perdido.
Neste caso, se retornarmos a soberania à noção da capacidade de um país de garantir um grau suficiente de autonomia na esfera internacional, então soberania torna-se sinônimo de força ou poder. "Soberania" é o grau de poder necessário para que um país seja concretamente autônomo em relação a outros países no sistema internacional.
A consequência necessária dessa perspectiva é que, na realidade, existem países que são soberanos e países que não o são. De fato, talvez apenas uma minoria de países possa ser considerada soberana, enquanto a maioria sofre de uma falta de poder que os torna fortemente dependentes dessas poucas nações soberanas.
Agora, ao considerar este tópico sob esta perspectiva, ainda acho relevante o conceito de “limiar de poder” (umbral de poder) do geopolítico argentino Marcelo Gullo.
Segundo Gullo, o "limiar de poder" é o nível de poder necessário para que um país seja considerado soberano. Mas o "limiar de poder" é um conceito histórico e, portanto, em constante mudança. Quando alguns países no mundo cruzam um limiar, o tempo passa, e um deles eleva o nível de poder necessário para garantir a soberania, deixando os outros para trás. Assim, haveria uma "hierarquia de soberania" — que nada mais é do que uma "hierarquia de poder".
Gullo analisa a questão com foco na modernidade para classificar os vários limiares de poder e, consequentemente, como se desenrola a “corrida” pela soberania.
Segundo ele, o primeiro limiar de poder era a centralização burocrática — isto é, a superação do feudalismo por Estados com um aparato burocrático suficientemente centralizado, capaz de mobilizar todas as forças da politeia para fins estratégicos de longo prazo. Atingir esse nível de poder marcou certos países dos séculos XIV e XV como soberanos — coincidentemente, muitos dos mesmos que lideraram a Era dos Descobrimentos. As cidades-Estado italianas, incapazes de alcançar a unificação peninsular, caíram sob a hegemonia de Estados burocráticos como a Espanha e a França.
O segundo limiar de poder foi a industrialização, após a conclusão da Revolução Industrial pelos britânicos. A capacidade de mobilização das potências nacionais atingiu um novo patamar com novas máquinas e fontes de energia. A Inglaterra então deixou Portugal e Espanha para trás, e o imperativo geopolítico do século XIX tornou-se a busca pela industrialização. Gradualmente, a França, a Alemanha unificada e o Japão cruzaram esse limiar.
Mas enquanto os países que chegaram mais tarde mal alcançavam o novo limiar de poder, os EUA completaram sua expansão para o oeste, superando o modelo de Estado-nação com o modelo de Estado-continente. Os EUA — atrasados na competição — simultaneamente alcançaram estágios de poder anteriores, enquanto avançavam para um novo patamar. A partir daquele momento, os EUA se tornaram um Estado-continente industrial, deixando para trás Inglaterra, França, Alemanha e outros. Os "impérios" coloniais internacionais não conseguiam competir com o Estado-continente porque este concentrava todo o seu potencial em um espaço contíguo, enquanto os impérios coloniais estavam espalhados por múltiplos continentes e geralmente não se desenvolviam ou se mobilizavam no mesmo grau que a metrópole. A ocupação gradual da Sibéria pela URSS — juntamente com a industrialização stalinista — permitiu que Moscou alcançasse os EUA nesse novo patamar. O expansionismo alemão buscava transformar a Europa em seu próprio Estado-continente, mas Berlim foi bloqueada pela aliança Washington-Moscou.
Não satisfeitos, os EUA posteriormente elevaram ainda mais o limiar de poder ao se tornarem uma potência nuclear. A partir de então, "soberania" passou a significar, na prática, possuir armas nucleares — armas com poder de dissuasão suficiente para conceder ao seu possuidor um nível superior de autonomia no sistema internacional. Coincidentemente, a formação do Conselho de Segurança da ONU consagrou esse limiar de poder ao conceder a filiação permanente justamente aos primeiros países com armas nucleares.
Em termos gerais, esses são os limites atingidos até agora, mas há debate sobre novos: IA, biotecnologia, nanotecnologia, conquista espacial, etc.
Curiosamente, alguns países atingem certos patamares de poder sem antes terem atingido outros. Por exemplo, Israel e Coreia do Norte possuem armas nucleares, mas não possuem escala continental. Assim, embora sejam mais soberanos do que a maioria, permanecem parcialmente dependentes de outros países em alguns setores econômicos.
A tese do Professor Gullo é interessante, entre outros motivos, porque confirma o imperativo continental. A era do Estado-nação acabou, e os países que desejam ser soberanos devem — por meio da conquista ou da integração — expandir suas fronteiras para alcançar escala suficiente para a autossuficiência. Ao mesmo tempo, demonstra que qualquer discurso sobre "soberania" sem a busca por poder militar (que, em alguns casos, pode significar "armas nucleares") é mera tagarelice — palavras vazias para fins de propaganda.
Se o Brasil quiser começar a falar seriamente sobre "soberania", precisa integrar efetivamente a América do Sul e fortalecer suas capacidades militares. E esse será apenas o primeiro passo, pois China e EUA (no primeiro nível) e Rússia (no segundo) já estão avançando em direção a um novo salto de poder.
* Editor e analista geopolítico.
Edição: Página 1917
Fonte: https://strategic-culture.su/news/2025/08/04/what-makes-a-country-sovereign/
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