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sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Agildo Barata: o relatório Kruchev e os impactos no PCB*

Agildo Barata

Preso após o levante de 1935, o capitão Agildo Barata, segundo da esquerda para a direita,
 é conduzido por policiais para prestar depoimento.

Meu rompimento com o PCB

No dia 13 de maio de 1957 dirigi aos membros do CC um bilhete redigido nos seguintes termos:

"Camaradas do CC.:

Depois de 22 anos de militância ininterrupta nas fileiras do PCB, resolvi, baseado no art. 1º dos Estatutos, em caráter irrevogável, solicitar minha demissão de membro do partido e de membro efetivo do Comitê Central.

As razões que me levaram a tal decisão não cabem nos limites estreitos de um rápido bilhete e reservo-me o direito de voltar ao assunto quando julgue correto fazê-lo."

Uma semana depois, os jornais do PCB noticiaram que o CC resolvera me expulsar do partido e a partir de então, os órgãos do partido entraram a insultar-me e e caluniar-me da maneira mais torpe e soez. Apenas um exemplo: um dos números da "Voz Operária", tabloide de 16 páginas, e que, nessa época, era o órgão central do partido, dedicava 14 páginas a insultar-me. O núcleo dirigente qual uma professorinha que quisesse exercitar seus pupilos na prática de uma composição deu o assunto para os militantes que sabiam escrever: o tema é caluniar e insultar o "renegado" Agildo Barata; "vale tudo"; e, durante meses seguidos, foi um chorrilho de subliteratura no mais puro e requintado estilo de chavões e de insultos usados pelo sr. Prestes.

Todos buscavam imitar o mestre e - honra lhes seja feita - muitos o conseguiram e alguns o sobrepujaram.

Vou narrar como os fatos que cercaram essa minha decisão se passaram: Uma noite, eu realizava em São Paulo uma de minhas costumeiras reuniões  num "círculo de amigos" na residência de um deles. Todos queriam saber se o famoso relatório Kruchev no XX Congresso do PCUS sobre o culto à personalidade de Stalin e as tremendas revelações que se continham no documento, eram verdadeiras ou não.

 O jornal "O Estado de São Paulo" havia publicado, na íntegra, o relatório, transcrevendo-o, aliás de outros jornais estrangeiros.

[...] Em poucas palavras, o relatório significava que a propaganda soviética não era tão somente mentirosa; ela dizia o oposto da verdade. Ensinava a admirar e a elogiar os traidores do movimento socialista e, ao mesmo tempo, odiar àqueles que foram assassinados porque ergueram o seu protesto contra as odiosas práticas stalinistas.

De tal maneira eu me deixara empolgar pela propaganda stalinista; de tal maneira eu me deixara embalar pelos sonhos da existência de um verdadeiro paraíso na União Soviética; com tal intensidade eu me deixara convencer das excelências dos métodos  e processos usados por Stalin e caprichosamente dourados pelos incensadores do semidivino Stalin, que eu repelia com todas minhas forças a possibilidade da autenticidade do relatório Kruchev. É mais uma provocação e uma mentira do Departamento de Estado. É só isso e nada mais. Aferrei-me a essa ideia e não admitia nenhuma versão que não fosse a de declarar falso o tal relatório. Essa obsessão com que eu procurava negar a verdade encontra completa explicação naquela profunda e sábia observação do grade filósofo que foi F. Engels: "O erro mais comum em política - dizia o companheiro de K. Marx - é confundir os desejos com a realidade." Eu desejava que o relatório fosse falso e daí a considerar a falsidade como uma realidade não foi senão um passo. Além disso, não me conformava só em tachar de falsa a versão divulgada pelo relatório.  Entrei a querer provar que ele era falso e arquitetei mesmo uma série de pseudoargumentos para servir a minha tese sobre a não autenticidade do documento.

Era precisamente essa incrível "teoria" da falsidade do relatório que eu desenvolvia perante meu auditório de simpatizantes, quando entrou na sala um estafeta do CC me convocando para uma reunião plenária do CC, perante a qual a delegação brasileira do PCB que tinha ido ao XX Congresso do PCUS, vinha, de regresso, prestar contas perante o CC do que vira e ouvira, como representante do PCB no congresso do partido soviético.

O estafeta ouvira um dos trechos de minha palestra e puxando-me para um lado, me segredou: "Camarada, você está completamente errado afirmando ser provocação o relatório Kruchev. Acabo de avistar-me com um dos membros da delegação do CC que esteve em Moscou e que firma ser autêntica a versão divulgada pelo "O Estado de São Paulo". Como militante, constrange-me ver você, um membro do CC, a sustentar tão ingenuamente uma tese tão falsa. Não há mais dúvida: o relatório é verdadeiro! E o que é mais trágico ainda: ele não é toda a verdade! Há outras cousas muito piores."

 Senti uma dor no estômago, percebi que a vista estava-me escurecendo e, com náuseas, tive uma vontade irresistível de vomitar. O choque era tremendo. Desmoronavam-se, de um golpe, velhos sonhos e ilusões que enchiam, há mais de 20 anos, toda a minha imaginação de admirador entusiasta e incondicional de Stalin e daquilo que eu supunha ser sua grandiosa obra. Se o que o relatório Kruchev dizia era verdadeiro, era preciso e indispensável uma revisão completa de tudo que havíamos fazendo e dizendo. Desde logo era preciso analisar profundamente as causas que levaram o grande PCUS a todos aqueles erros e crimes. Pesquisar estas causas e afastá-las corajosamente. No PCB tinha-se generalizado e criado raízes profundas o culto à personalidade de Stalin, e o PCUS era um exemplo de organização perfeita, a "cuja imagem e semelhança" nós devíamos plasmar o PCB.

 Generalizara-se, entre nós, uma formulação inteiramente falsa do ponto de vista teórico e doutrinário e nós sabíamos que tal formulação não era adotada e praticada apenas pelo Partido Comunista no Brasil, ela passara a ser uma orientação para quase todos os Partidos Comunistas do mundo, com exceção única, talvez, do PC da Iugoslávia.

Tinha-se adotado uma absurda formulação que era a de submissão de todos os Partidos Comunistas ao partido russo. A nova e perigosa formulação defendida pelo próprio Stalin e pelo PCUS e imposta e aceita incondicionalmente pelos comunistas do mundo inteiro era a seguinte: "A pedra de toque do internacionalismo proletário é a fidelidade sem limites à União Soviética e ao PC da URSS."

[...] Compreendi que o que se tinha a fazer era um trabalho tão grande, tão gigantesco que não acreditei tivesse o PCB forças e capacidade para realizá-lo. E mais: não era possível realizar-se uma tão profunda revisão sob a direção e orientação daquele mesmo CC que conduzira o PCB a todos os erros e deformações cuja correção se impunha.

Mas voltemos aos fatos: O núcleo dirigente (sempre o núcleo dirigente!) resolvera convocar uma reunião plenária do CC, ampliando-a com a convocação de mais uns 20 ou 30 camaradas escolhidos como sempre presente núcleo dirigente. A reunião, levando em conta a presença indispensável do pessoal da secretaria e dos hospedeiros, comportava a presença de quase 100 pessoas. Tecnicamente a realização de um tão numeroso conclave, em plena clandestinidade, não era fácil. Quanto a Prestes, apesar da gravidade da situação, continuava enfurnado, teimando em permanecer na toca... Essa atitude de Prestes era absolutamente intolerável e, antes de mais nada, revelava uma grande insensibilidade política sobre o que estava ocorrendo no movimento comunista mundial e que se refletia, com grande intensidade, nas fileiras do PCB.

A reunião se processou num clima de grande emotividade. De início, houve uma como que expectativa esperançosa; Quem sabe o relatório é falso? Ou as cousas não são tão graves como apareceram na sua primeira versão?  Durou muito pouco essa expectativa. Os delegados foram claros e incisivos: o relatório foi realmente feito. E o que era pior: além do relatório os delegados na sua permanência em Moscou, durante os agitados dias da realização do XX Congresso e do início das medidas iconoclastas de "desestalinização" conseguiram ouvir e tomar conhecimento de muitos outros erros e crimes além dos revelados pelo relatório Kruchev.

Quanto a mim, afastadas as últimas dúvidas, tive um choque ainda mais violento que o anterior: tive um intenso derramamento de bílis e fui para a cama, suando frio e com as extremidades geladas. Cito com detalhes esses fatos para dar uma ideia do quão profundamente estavam enraizadas em mim as ideias e as mentiras da anterior propaganda soviética. O desmoronamento de chofre de tudo aquilo que correspondia a todas as minhas convicções pacientemente acumuladas num longo período de mais de 20 anos, foi superior a minha capacidade de resistência física. Um dos companheiros presentes à reunião, no seu discurso, disse que as revelações do relatório tinha-lhe dado a sensação de haver recebido um "violento soco na boca de meu estômago". O soco que deram na boca do meu  estômago, foi demolidor, possivelmente porque minha capacidade de resistir fosse muito pequena. Fosse pelo que fosse, uma resolução eu havia tomado: "Não pactuo mais com isso!" Ou se mudam radicalmente as cousas ou eu abandono o Partido. E assim pautei, daí por diante, minhas atitudes. Quando me convenci de que os membros do CC, quais ostras agarradas ao casco de um barco soçobrando, não estavam dispostos a abandonar suas posições de dirigentes; quando me convenci que a submissão ao PCUS ia prosseguir e que o próprio PCUS resolvera interromper, a meio caminho, um processo autocrítico e corretivo que é desses processos irreversíveis que não se pode interromper sem graves consequências; quando me convenci que tudo ia ficar como era antes; tomei a resolução, para mim muito séria e muito penosa de abandonar o partido ao qual dera 22 anos de minha vida. Minha indignação chegou ao auge quando o CC, sob a pressão de uma carta de Prestes, resolveu encerrar os debates em torno dos problemas. Encerrar-se os debates antes de chegar-se a qualquer conclusão! Enfurnado teimosamente na sua toca, Prestes não compreendeu, não quis compreender, ou pouco lhe importavam as consequências do silêncio que impunha.

Logo que o CC resolveu abrir os debates eu escrevi um artigo: "Pela democratização do Partido", que causou grande sensação nas fileiras do partido, sacudindo-o. O núcleo dirigente proibiu a publicação do artigo nos jornais do partido, mas alguns jornais desobedeceram a ordem do núcleo e o publicaram.

O núcleo mobilizou alguns militantes fanáticos e mandou invadir as redações da "Imprensa Popular" e do "Voz Operária", expulsando os jornalistas de suas redações. O núcleo fez o que a polícia não conseguira fazer: silenciar os jornais do Partido! Realmente era demais!

Enfim, o núcleo conseguiu fazer o que a polícia até então não conseguira: expulsar das redações os jornalistas do partido. Prestes estimulou e aplaudiu todas as tropelias ordenadas pelo núcleo. Estimulou e aplaudiu, mas continuou enfurnado...

O meu artigo provocara uma grande indignação no núcleo porque eu propunha que se realizassem imediatas eleições em todo o partido, desde as bases até o CC. Propunha mesmo que se substituísse todo o CC, pois ele não mais poderia merecer a confiança do partido, principalmente merecer confiança para presidir uma discussão que, antes de mais nada, ia examinar os erros e deformações cometidos por essa mesma direção. O núcleo admitia tudo, menos isso de querer substituí-lo e resolveu encarregar o mais reacionário e jesuítico de seus membros de escrever um artigo rebatendo o que eu escrevera. Deu a mais forte divulgação ao artigo-resposta e em alguns jornais o meu artigo apareceu ao lado do artigo encomendado pelo núcleo. O artigo do núcleo era assinado por João Amazonas e embora um pouco cauteloso quanto ao insultos pessoais, não deixava de insinuar uma série de insultos contra mim. Daí em diante, os jornais do partido passaram a reservar colunas e colunas de ataques a mim e à minha proposta de eleições gerais. E, de repente, surgiu a carta de Prestes que logo recebeu o justo epíteto de "carta rolha".

[...] O centralismo democrático

A meu ver, o materialismo dialético e sua forma materialista de interpretação dos fenômenos da natureza, da história e das sociedades humanas, representa a maneira justa e exata do pensamento filosófico; é aquele corpo de doutrina que mais satisfaz a e meus anseios intelectuais. À medida que os anos passam a apesar das contrafacções e acréscimos deformadores que desfiguram o materialismo dialético, ele representa, no meu entender, o ponto mais exato e mais alto do pensamento humano.

[...] Servido por esse método de análise tenho procurado estabelecer quais as causas que levaram os partidos comunistas, a começar pelo PC russo, a cometerem tantos e tão graves erros e até mesmo crimes. Qual a causa de uma organização criada para conquistar uma sociedade onde a felicidade humana atinja níveis jamais alcançados; por que uma tal organização comete tantos e tão repetidos equívocos e erros e por que, por vezes, chega a fazer exatamente o oposto do que devia fazer? Serão os erros fatais? Inevitáveis? Creio que não. A obra humana, obviamente, é sempre imperfeita e pode conter erros, mas que eles sejam inevitáveis e fatais eis uma cousa que o fatalismo consagra mas que o materialismo dialético repele. Sempre que se consegue descobrir a causa de um erro é possível evitá-lo, desde que o experimentador de laboratório, ou o político, o sociólogo esteja firmemente disposto a remover a causa do erro.

Tenho procurado incessantemente e com os acanhados recursos de que disponho estudar a causa que leva um partido comunista que antes de mais nada, devia ser uma organização democrática, a se transformar numa espécie de seita mística, fanatizada, a obedecer cegamente a um chefe único ao qual tecem os mais alucinantes elogios e endeusamentos. Por que ao invés de ser uma organização democrática, usando a sabedoria coletiva e organizada de seus militantes, vivendo e praticando uma intensa e saudável democracia interna, os Partidos Comunistas se reduziram a um restrito conglomerado de fanáticos, sem vontade e sem opinião outra que não seja a do chefe, a do "guia genial", a do "esclarecido e bem amado" secretário-geral?

Antes de mais nada, quero afirmar que com a experiência que tenho da vida político-partidária nas fileiras do PCB não alimento a ilusão de que militante algum possa dar-me razão nas considerações que aqui exponho. Faço-as apenas para cumprir o que me parece ser um dever. Devo a meus amigos e compatriotas, principalmente aos jovens, e a meus contemporâneos, uma explicação qual seja a deter-me para tentar explicar porque abandonei o PCB. Faço-o também em homenagem aos militantes de base do PCB, muitos dos quais, até hoje, não se detiveram nas causas que fazem com que suas células sempre aprovem por unanimidade resoluções de que a unanimidade de seus membros discorda.

Por que o partido se transformou nessa máquina de forjar unanimidades contra a opinião dessas mesmas unanimidades? Por que o partido não é uma organização democrática na fase da discussão, mesmo que venha a ser um bloco monolítico na fase de execução? E isto necessário? Inevitável? Que consequências trazem uma tão absurda e anti-socialista conduta?

Será que a indispensável unidade monolítica na ação só pode ser alcançada à custa de uma completa castração mental na fase democrática  de elaboração dialética do pensamento? Do tracejamento da linha política?

* Vida de um Revolucionário (memórias); Agildo Barada; Editora MELSO, Rio de Janeiro; 1962.

Edição: Página 1917 


 

    

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