SOBRE A MORTE DE RAYAN SULIMAN E O SEU MEDO DE MONSTROS
28.10.22
Embora as crianças
palestinianas desenvolvam a consciência política numa idade muito jovem, muitas
vezes a sua ação de protestar contra os militares israelitas, entoando cantos
contra soldados invasores ou mesmo atirando pedras não são compelidas pela
política, mas por algo totalmente diferente: o seu medo de monstros.
Criança palestina presa por soldado israelense. |
As crianças do meu campo de
refugiados de Gaza raramente tinham medo de monstros, mas de soldados
israelitas. Isto é tudo o que conversávamos antes de ir para a cama. Ao
contrário dos monstros imaginários no armário ou debaixo da cama, os soldados
israelitas são reais, e eles podem aparecer a qualquer minuto – na porta, no
telhado ou, como era frequentemente o caso, mesmo no meio da casa.
A recente trágica morte de
um menino de 7 anos, Rayan Suliman, um menino palestiniano da vila de Tuqu,
perto de Belém, na Cisjordânia ocupada, despertou muitas memórias. O menino com
pele cor de oliva, rosto inocente e olhos brilhantes caiu no chão enquanto era
perseguido por soldados israelitas, que o acusaram e aos seus amigos de atirar
pedras. Ele caiu inconsciente, o sangue jorrou da sua boca e, apesar dos
esforços para reanimá-lo, deixou de respirar.
Este foi o fim abrupto e trágico
da vida de Rayan. Todas as coisas que ele poderia ter sido, todas as
experiências que ele poderia ter vivido e todo o amor que ele poderia ter
transmitido ou recebido, tudo terminou de repente, como o menino deitado de
bruços na calçada de uma estrada empoeirada, numa aldeia pobre, sem nunca
experimentar um único momento de ser verdadeiramente livre, ou mesmo sentir-se
seguro.
Ryan Suleiman |
Os adultos muitas vezes projetam a sua compreensão do mundo sobre as crianças. Queremos acreditar que as crianças palestinianas são guerreiras contra a opressão, a injustiça e a ocupação militar. Embora as crianças palestinianas desenvolvam consciência política numa idade muito jovem, muitas vezes a sua ação de protestar contra os militares israelitas, entoando cantos contra soldados invasores ou mesmo atirando pedras, não são compelidas pela política, mas por algo totalmente diferente: o seu medo de monstros.
Essa ligação veio-me à mente
quando li os detalhes da experiência angustiante que Rayan e muitas crianças da
aldeia suportam diariamente.
Tuqu é uma aldeia
palestiniana que, era uma vez, existia numa paisagem incontestável. Em 1957, o
colonato ilegal judeu de Tekoa foi estabelecido em terras palestinianas
roubadas. O pesadelo tinha começado.
As restrições israelitas às
comunidades palestinianas nessa área aumentaram, juntamente com a anexação de
terras, as restrições de viagem e o aprofundamento do apartheid. Vários
moradores, na sua maioria crianças da aldeia, foram feridos ou mortos por soldados
israelitas durante repetidos protestos: os moradores queriam ter a sua vida e a
sua liberdade de volta; os soldados queriam garantir a contínua opressão de
Tuqu em nome da salvaguarda da segurança de Tekoa. Em 2017, um garoto
palestiniano de 17 anos, Hassan Mohammad al-Amour, foi baleado e morto durante
um protesto; em 2019, outro, Osama Hajahjeh, ficou gravemente ferido.
As crianças de Tuqu tinham
muito a temer, e os seus medos eram todos bem fundamentados. Uma viagem diária
para a escola, que Rayan e muitos dos
seus amigos faziam, acentuou esses medos. Para chegar à escola, as crianças
tinham de atravessar o arame farpado militar israelita, muitas vezes vigiado
por soldados israelitas fortemente armados.
Às vezes, as crianças
tentavam evitar o arame farpado para evitar o terrível encontro. Os soldados
antecipavam isso. "Tentamos caminhar pelos olivais ao lado do caminho, mas
os soldados escondem-se nas árvores apanham-nos lá", disse um menino de 10
anos de Tuqu, Mohammed Sabah, citado num artigo de Sheren Khalel, publicado há
anos atrás.
O pesadelo está a acontecer
há anos. Rayan experimentou aquela jornada aterrorizante durante mais de um
ano, de soldados esperando atrás de arames farpados, criaturas misteriosas
escondidas atrás de árvores, mãos a agarrar os pequenos corpos, crianças a
gritar pelos seus pais, implorando a Deus e correndo em todas as direções.
Após a morte de Rayan em 29
de setembro, o Departamento de Estado dos EUA, o governo britânico e a União
Europeia exigiram uma investigação, como se a razão pela qual o menino sucumbiu
aos seus medos paralisantes fosse um mistério, como se o horror da ocupação
militar israelita e da violência não fosse uma realidade quotidiana.
A história de Rayan, embora
trágica além das palavras, não é única, mas uma repetição de outras histórias
vividas por inúmeras crianças palestinianas.
Quando Ahmad Manasra foi
atropelado por um carro de um colono israelita, e o seu primo, Hassan, foi
morto em 2015, a mídia israelita e os apologistas apagaram as chamas da
propaganda alegando que Manasra, de 13 anos na época, era uma representação de
algo maior. Israel alegou que Manasra foi baleado por tentar esfaquear um
guarda israelita, e que tal ação refletia o ódio palestiniano profundo pelos
judeus israelitas, outra prova conveniente da doutrinação de crianças
palestinianas pela sua cultura supostamente violenta. Apesar dos ferimentos e
da pouca idade, Manasra foi julgado em 2016 e condenado a doze anos de prisão.
Manasra vem da cidade
palestiniana de Beit Hanina, perto de Jerusalém. A sua história é, em muitos
aspetos, semelhante à de Rayan: uma cidade palestiniana, um colonato judeu
ilegal, soldados, colonos armados, limpeza étnica, roubo de terras e monstros
reais por toda a parte. Nada disso importava para os tribunais israelitas ou
para a mídia corporativa. Em vez disso, eles transformaram um garoto de 13 anos
num monstro e usaram a sua imagem como
um cartaz da propaganda do terrorismo palestiniano ensinado numa idade
muito jovem.
A verdade é que as crianças
palestinianas atiram pedras nos soldados israelitas, nem só por causa do seu
ódio, supostamente inerente, aos israelitas, nem como atos puramente políticos.
Eles fazem isso porque é sua única maneira de enfrentar os seus próprios medos
e ajustar contas com a sua humilhação
diária.
Pouco antes de Rayan
conseguir escapar da multidão de soldados israelitas e ser perseguido até a
morte, houve uma troca entre o seu pai e os soldados. O pai de Rayan disse à
Associated Press que os soldados ameaçaram que, se Rayan não fosse entregue,
voltariam à noite para prendê-lo juntamente com os seus irmãos mais velhos, de
8 e 10 anos. Para uma criança palestiniana, um ataque noturno de soldados
israelitas é a perspectiva mais aterrorizante. O coração jovem de Rayan não
podia suportar esse pensamento. Caiu inconsciente.
Médicos do hospital
palestiniano de Beit Jala deram uma explicação médica convincente sobre a razão
por que Rayan morreu. Um especialista em pediatria falou sobre o aumento dos
níveis de estresse causado pelo "excesso de secreção de adrenalina" e
aumento dos batimentos cardíacos, levando a uma paragem cardíaca. Para Rayan,
os seus irmãos e muitas crianças palestinianas, a culpa é de outra coisa: os
monstros que voltam à noite e aterrorizam as crianças adormecidas.
As chances são de que os
irmãos mais velhos de Rayan estejam de volta às ruas de Tuqu, de pedras e
fisgas na mão, prontos para enfrentar os seus medos de monstros, mesmo que
paguem o preço com as suas próprias vidas.
Edição: Página 1917
Fonte: https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/por-que-e-que-as-criancas-palestinianas-221725
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