Florestan Fernandes
Desde o início de suas atividades
intelectuais e políticas, Lênin sempre se considerou um marxista – e, o que é
mais importante, sempre procurou ser um marxista ortodoxo. Por isso, não se
contentou com a rica produção socialista que encontrou à sua disposição como
jovem: foi diretamente aos textos de Marx e Engels, estudou-os sistematicamente
e aos poucos tentou dominar também os autores que estavam nas raízes da
formação do marxismo. A sua primeira obra de grande envergadura, O
Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, evidencia três coisas:
1 - Completo domínio crítico
das teorias econômicas de Marx e do materialismo histórico;
2 - Aplicação exclusiva
dessas teorias na descrição e interpretação dos fatos (isto é, sem qualquer
modalidade erudita de ecletismo);
3 - As teorias econômicas de
Marx forneciam “hipóteses diretrizes”, estando longe de ser a fonte de um
dogmatismo estéril: o que assegurava a marcha criadora da investigação, que se
abria para a descoberta tanto do que era geral, quanto para o que era peculiar
à manifestação do capitalismo na Rússia.
Esse estilo de trabalho aparece com igual
maestria nos escritos especificamente políticos da época, principalmente
naqueles em que faz a crítica marxista do “populismo” e “economicismo” no
movimento socialista russo. Portanto, as aplicações do marxismo ao plano
prático revelam o mesmo espírito de identificação congruente, a um tempo flexível,
mas intransigente com os princípios do socialismo revolucionário. Que Fazer?,
como obra de síntese e de superação das experiências políticas acumuladas
durante o período de formação, constitui a face política das descobertas históricas
e econômicas contidas em O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia. Sua total
fidelidade ao marxismo não pressupunha a “repetição de Marx” ou a ossificação
da dialética, e sim a busca de caminhos novos, que só o marxismo podia
desvendar, desde que aplicado de forma precisa, exigente e imaginativa, como um
saber vivo, em intrínseca conexão com a vida.
Na cisão de 1903, vários bolcheviques, mais
intimamente associados a Lênin e à sua liderança política, foram designados
como “leninistas” (palavra que reaparece em outros contextos e mesmo, de
passagem, em escritos de Lênin). No entanto, após a reviravolta de abril e a
tomada do poder, o “leninismo” ganhou expressão política, que se acentuou
graças á luta pela sucessão de Lênin após sua morte. O “leninismo”, assim
entendido, significa pouca coisa: na primeira acepção, “seguidor de Lênin”, no
sentido de uma oposição intransigente ao reformismo, e ao oportunismo; na
segunda acepção, alguém que fazia profissão de fé diante da natureza
revolucionária do partido comunista, da ditadura do proletariado e do Estado
soviético (e, implicitamente, no desdobramento das etapas de transição para o
socialismo e para o comunismo). Ora, se isso fosse tudo, não haveria razão para
o uso crescente da expressão marxismo-leninismo, que finalmente se
universalizou e se viu consagrada de modo definitivo. O legado de Lênin
transformou o marxismo e é essa transformação que nos interessa aqui.
Sem subestimar-se a contribuição teórica de
Lênin (crucial em vários pontos para o enriquecimento e o aprofundamento do
marxismo: como no estudo da penetração do capitalismo na agricultura, das
condições e efeitos do desenvolvimento desigual ou do imperialismo, na
explicação da guerra e da revolução, na sistematização das explicações
marxistas do Estado e da própria utopia marxista, tão mal representada e
conhecida antes dele, etc.), é no terreno da prática que se acha o eixo da
transmutação leninista do marxismo. Isto não quer dizer que esta prática
estivesse desligada da teoria – pois nunca esteve ou poderia estar, no
pensamento dialético-materialista – nem tampouco que Marx, Engels e seus
seguidores tivessem negligenciado, na teoria e na ação, as várias dimensões da
pratica (especialmente a política). Mas significa, isso sim, que Lênin se impôs
como tarefa de sua vida a adequação instrumental, institucional e política do
marxismo à concretização da revolução proletária. O marxismo, depois de Lênin,
não é mais a mesma coisa, porque ele incorporou um “modelo” de como passar da
ditadura burguesa à ditadura do proletariado.
Esse modelo desloca o âmago do marxismo para
a reflexão política, ou seja, para as condições concretas da ação política e da
transformação política, quando se focaliza dialeticamente as relações de
classes como relações de poder (a luta de classes como um processo que conduz à
formação e ao controle do que destrói e instaura a transição para o
socialismo). Antes de Lênin, semelhante elemento político estava incluído no
marxismo como uma previsão e, também, como um momento da vontade política. Com
Lênin, esse elemento converte-se no ponto central da indagação marxista e, do
próprio marxismo como movimento político. Sob as condições mais ou menos
paralisadoras da democracia burguesa, como dar ao proletariado – classe que
pode arrastar atrás de si a massa não-possuidora e constituir-se em núcleo
hegemônico de uma maioria atuante – a capacidade de converter seu poder
potencial em poder real? Absorveu-se, assim, no problema político da sociedade
de classes; e, como marxista, não apenas para explicar como a minoria pode
suplantar a maioria e submetê-la, mesmo sob o “capitalismo agonizante”, mas
também para descobrir como transformar o inócuo poder potencial da maioria em
poder especificamente político, concentrado e disciplinado de forma
revolucionária.
Atento
ás estruturas de poder e aos efeitos políticos da dominação de classe,
inerentes à democracia burguesa, Lênin chegou rapidamente à conclusão de que a
revolução proletária possui um padrão histórico próprio. Em contraste com a
revolução burguesa, ela não pode iniciar-se antes da tomada do poder pelo
proletariado e da dominação pela maioria. Por isso, o problema estratégico de
luta pelo poder tinha de ser proposto em termos do uso, revolucionário do
espaço político que a classe operária pode conquistar e manejar com relativa
autonomia, ilegal e legalmente, no seio da sociedade de classes. Como a
dominação burguesa também implica socialização ideológica e politica do resto
da sociedade pela burguesia, tal uso do espaço político impunha, naturalmente,
certas condições básicas: 1) formação de uma minoria contestadora fortemente
organizada, capaz de atuar legalmente e ilegalmente, sem vacilações, como vanguarda
revolucionária da classe operária; 2) a ruptura com todas as formas diretas ou
indiretas e visíveis ou invisíveis de acomodação à ordem democrática burguesa;
3) a educação política do proletariado e, na medida do possível, das massas
pobres e da pequena burguesia, através de situações e de reivindicações
concretas, do desenvolvimento da consciência de classe e da agudização (aos
níveis econômico, sociocultural e político) dos conflitos de classe. Isso punha
em primeiro plano a questão da organização do partido revolucionário do
proletariado e de sua orientação política. E, de outro lado, exigia uma nova
mentalidade e uma nova prática política nas relações do partido com sua base e
com a massa.
Com
referência à organização do partido, Lênin fixou normas de racionalização que
deviam ser iguais ou superiores às que têm vigência na grande empresa
capitalista, no exército moderno ou no Estado democrático burguês. Em consequência,
as tarefas de agitação e propaganda podiam irradiar-se por toda a sociedade,
embora concentrando-se com maior intensidade na classe operária; e as tarefas
políticas, imediatas e de largos prazos, podiam ser definidas segundo critérios
específicos de flexibilidade e de eficácia. A ideia básica consistia em que a
revolução não nasce pronta e acabada – o partido revolucionário do proletariado
deveria travar duas batalhas, clandestina ou abertamente, tendo em vista as
combinações que poderiam favorecer, em determinado momento, ou o fortalecimento
da democracia burguesa, ou o deslocamento desta no sentido de uma democracia
operária, ou a tomada pura e simples do poder.
Todas
essas estratégias foram exploradas, com as táticas correspondentes, e Lênin foi
o mestre das principais diretrizes (embora a sua produção intelectual e
política, nessa direção, aguarde estudo sistemático). Por sua vez, para cumprir
essa missão era indispensável interromper a infiltração ou a corrupção
burguesa, impedindo as soluções de compromisso ou de aparente “revolução dentro
da ordem” (ambas de exclusivo interesse para a dominação burguesa e a
consolidação do status quo). Daí a necessidade impetuosa de combater sem
tréguas o oportunismo, o reformismo e o ultra-esquerdismo, por vários motivos
dissolventes do espírito revolucionário, da atuação revolucionária racional e
da solidariedade política do proletariado. Por fim, uma vanguarda
revolucionária do proletariado não podia nem devia representar-se e comporta-se
como uma elite e segundo valores elitistas. Se ela devia contribuir para a
expansão da consciência de classe do proletariado de “fora para dentro” (isto
é, imprimindo às suas tarefas políticas um teor pedagógico), ela nunca foi
concebida por Lênin, em si mesma, como o polo decisivo. Este tinha de ser,
naturalmente, o proletariado, como sujeito da ação revolucionária em escala
coletiva, já que de sua impulsão dependeria a vitória da revolução proletária
ou da contra-revolução. Por conseguinte, as relações do partido revolucionário
do proletariado com sua base e com a massa eram definidas segundo um esquema dialético:
para dirigir o processo político, aquele partido teria de sintonizar-se com a
classe operária e com as massas, acompanhando as evoluções de sua aprendizagem
e de sua socialização política através das flutuações da luta de classes.
Apesar da extrema condensação, essas
formulações sugerem como Lênin, a partir do marxismo e dentro do marxismo,
quebrou a circularidade política que pesava sobre a ação revolução proletária.
Ele ignorou o peso paralisante da existência ou inexistência de “condições objetivas”
que permitissem a revolução proletária. Fez isso deslocando em várias direções
o aproveitamento revolucionário das condições objetivas existentes (na
consolidação da democracia burguesa, na acentuação da influência operária
dentro da democracia burguesa ou na criação de uma democracia operária sem a
destruição do Estado proletário, etc.), sempre em direções que atendessem, a
curto e longo prazos, os alvos finais de destruição do capitalismo e de
transição para o socialismo. Doutro lado deu maior ênfase (e mesmo maior peso
relativo) ao controle político das “condições subjetivas”, mais suscetíveis de
tratamento político deliberado, segundo manipulações estratégicas e táticas.
Nessa esfera, tanto era possível aproveitar a influência direta da vanguarda revolucionária
sobre o proletariado e as massas, quanto os efeitos educativos, seja da
ineficácia do Estado democrático burguês para atender ás reivindicações do
proletariado, seja de uma vitória eventual da contra-revolução. A vantagem de
dispensar maior atenção às “condições subjetivas” procedia de outro resultado
previsível: a rápida transformação do proletariado em classe politicamente
consciente e apta para proceder à reeducação política do resto da maioria.
Assim, em “condições objetivas” aparentemente desvantajosas, um país atrasado
como a Rússia logrou realizar a primeira revolução proletária da história.
As
revoluções de 1905 e de 1917 forneceram à Lênin base política para a ampliação
e o aperfeiçoamento desse “modelo” básico. A primeira revolução, em particular,
submeteu à prova a própria consistência do “modelo”. O comportamento do
proletariado e do campesinato pobre demonstrou que ele era correto: a vanguarda
revolucionária não ficou sozinha (e por vezes andou atrás das massas!).
Portanto, dadas as condições adequadas de organização e de orientação política,
o partido revolucionário do proletariado podia colocar-se à frente do movimento
político revolucionário e dirigi-lo. De outro lado, eclodiram e
multiplicaram-se greves de massa, econômicas e políticas, que abriram os olhos
de Lênin e dos socialistas europeus para as novas técnicas revolucionárias que
emergiam, as quais envolviam a contraviolência armada. À medida que os sovietes
se firmam, por sua vez, como o equivalente russo da Comuna, as reflexões de
Lênin se voltam para os aspectos institucionais e militares da tomada do poder.
O soviete oferecia uma solução para a pressão democrático-revolucionária do
proletariado, de alguns setores do campesinato ou das massas urbanas. Todavia,
ao longo do processo ficou patente que os sovietes não detinham a força real e
que não podiam, por si mesmos, suprimir a dominação da classe burguesa. Ainda
aí voltava a ser decisivo o “modelo” central esboçado acima. Só que a situação
compelia a novas definições, relacionadas com a natureza e variedade dos meios
institucionais de que se deveria valer a ditadura do proletariado para atingir
seus objetivos.
Os
sovietes permitiam resolver o problema das fontes e da natureza do poder
proletário, que deveria emanar da maioria e exprimi-la o mais democraticamente
possível, em sua estrutura interna. As fases iniciais, porém, teriam de ser de
dominação exclusiva e plena da maioria (portanto, não de abolição imediata das
classes, que não iriam desaparecer por um passe de mágica, mas de sua
destruição progressiva). Lênin formula o Estado desse período como um Estado
proletário, fundado no poder real da maioria (isto é, o poder soviético), mas
submetido à necessidade inelutável de construir uma fortíssima maquinaria
estatal, instrumentalizada pelo partido revolucionário do proletariado e pelos
sovietes. Antes de promover a transição para o socialismo, esse Estado
proletário ou soviético deveria proceder ao reajustamento das “condições
objetivas”, levando a revolução proletária a todas as estruturas econômicas,
sociais, culturais e políticas da sociedade russa.
Aí
está, em linhas gerias, o “modelo” ampliado de Lênin, quanto à passagem da
ditadura burguesa à ditadura do proletariado. Para o marxismo, a contribuição
de Lênin representa um acréscimo substantivo em duas direções. Primeiro, ela
repôs o marxismo como política em suas bases revolucionárias, avançando do
conhecimento da realidade política da sociedade de classes para o modo de
organizar politicamente a sua transformação e destruição, como etapa preliminar
à instauração do socialismo. Segundo, ela traz consigo a primeira descrição
teórica e a primeira formulação prática da revolução proletária como processo
histórico e vivido. Embora Lênin se preocupasse mais com as condições, as
técnicas e os processos políticos de intervenção revolucionária na realidade,
limitando as formalizações abstratas ao conhecimento teórico essencial para
atingir tais fins, suas indagações e reflexões introduzem no marxismo um
tratamento mais livre e dialético do político.
Sem
ignorar que qualquer transformação política possui uma base econômica e social
concreta, ele desvendou, mais que os outros pensadores marxistas, o grau de
autonomia relativa do político e a intensificação dessa autonomia nos momentos
de crise e revolução. Com ele, o marxismo torna-se politicamente operacional, o
que explica porque, depois dele, converte-se em marxismo-leninismo.
Fonte: “Lenin; Política”, Coleção Grandes Cientistas Sociais, Editora Ática.
Edição: Página 1917.
Nenhum comentário:
Postar um comentário