Ivan Pinheiro
14/9/2021
Eu não poderia deixar de socializar ao meu círculo de amizade e camaradagem um resumo dos pensamentos e sentimentos que me envolvem e fazem refletir, desde quando, há poucos dias, li um texto de Luiz Carlos Prestes, de março de 1981 (“Aprender com os erros do passado, para construir um partido novo, efetivamente revolucionário”), e, logo em seguida, assisti o documentário “Giocondo Dias – um clandestino ilustre”, do cineasta Wladimir Carvalho, lançado recentemente.
Como se sabe, Prestes e
Giocondo protagonizaram uma intensa luta interna que levou à divisão do PCB no
início da década de 1980. Prestes era o Secretário Geral antes da divisão e
Giocondo passou a sê-lo em seguida, até sua morte em 1987.
A coincidência dessas
leituras foi impactante. Esses dois camaradas foram – em épocas e por razões
diferentes – as minhas principais referências políticas no PCB, inclusive no
momento em que, como militante do partido, fui obrigado a fazer uma escolha
dramática entre os distintos caminhos que os dois seguiriam. Como minha
militância sindical à época resultava em alguma exposição pública, foi natural
ter sido convidado para conversas particulares com ambos e que obviamente eu as
aceitasse. No meu caso, esses encontros foram muito mais para ouvir do que
dialogar, até porque havia poucas informações sobre as divergências, além dos
rumores.
Depois de conhecer opiniões
de outros quadros e de intermináveis debates na célula em que militava,
consolidei uma opinião que me dividia ao meio: concordava (e ainda concordo)
com a maioria das críticas do camarada Prestes expostas na Carta aos Comunistas
(de março de 1980), mas não com sua decisão de sair do PCB antes do seu próximo
Congresso Nacional, que iniciou-se em 13 de dezembro de 1982 [¹], o que pode
ter sido um dos fatores que inviabilizaram o seu projeto de criar um novo
partido, efetivamente revolucionário, como anuncia no texto.
Respeito a opinião dos que
consideram que naquele momento já não havia mais espaço no partido para a luta
interna, mas penso que essa conclusão só é razoável se a análise daquela
correlação de forças levar em conta apenas a que existia no interior do então
Comitê Central, em que Prestes não só era minoritário, mas vítima de isolamento
e apagamento político, que ficam evidentes em alguns depoimentos no filme sobre
Giocondo e que percebi no dia em que o Cavaleiro da Esperança foi recebido
calorosamente no aeroporto do Galeão, ao retornar de um longo exílio em Moscou
após a anistia política, no final de 1979.
Alguns dias antes desse
evento, fui procurado por um dos poucos membros do CC que ficaram clandestinos
no Brasil e escaparam de ser presos e desaparecidos, como os camaradas que
Prestes homenageia no texto. Os demais membros do CC estavam no exílio, uma
parte em Moscou e Praga, outra em Paris, Roma, Lisboa e outros destinos. Este
camarada, com quem me encontrava em “pontos” [²] e que me dava assistência em
questões que extrapolavam o âmbito da célula de bancários a que eu pertencia,
orientou-me, segundo ele em nome do Secretariado do CC, a não comparecer à
recepção do camarada Prestes, porque a ditadura podia “desconfiar” que eu fosse
militante do partido! Em vão, ponderei que a figura de Prestes, um herói
nacional, extrapolava em muito as fronteiras do partido e que uma recepção
expressiva a ele seria um importante ato público contra a ditadura e favorável
à imagem do PCB.
Apesar de desconfiado,
respeitando essa orientação levei de carro ao Galeão três camaradas bancários,
entre os quais minha então companheira, e os fiquei aguardando no
estacionamento do aeroporto, decepcionado porque o som dos discursos não descia
ao subsolo! Só tive certeza de que se tratara de uma manobra para esvaziar a
recepção a Prestes quando, alguns dias depois, veio a público a luta interna,
desconhecida até então por todos os militantes de base do partido.
Luiz Carlos Prestes |
Minha opinião divergente da
posição de Prestes, de romper com o partido sem insistir mais na luta interna
(que fatos como o mencionado explicam), era baseada na vivência que eu tinha
entre os camaradas que atuavam no movimento sindical, não só no Rio de Janeiro,
onde eu era presidente do Sindicato dos Bancários e coordenava a Intersindical
estadual, mas em outros Estados. Entre minhas tarefas vinculadas à Fração
Sindical do CC, estava o esforço do partido para criar articulações
intersindicais estaduais, na perspectiva de uma central sindical nacional. Eu
circulava, portanto, entre camaradas que atuavam diretamente nas lutas em
defesa dos interesses dos trabalhadores, em geral mais refratários à
conciliação de classe.
Naquele momento o PCB era a
força mais expressiva e influente entre as que atuavam no movimento sindical
brasileiro, por conta de sua militância não ter abandonado o trabalho sindical,
mesmo em plena ditadura. É bom lembrar que infelizmente esse patrimônio
político foi sendo destruído, de forma mais acentuada a partir de 1983, quando
o reformismo vigente no CC optou pelo rompimento com o projeto de criação da
então combativa CUT, em favor da aliança com o sindicalismo burocrático e
conciliador que resultou em centrais pelegas.
Mas essa diferença de
avaliação sobre aquele impasse que resultou na saída de Prestes do PCB não
desmerece o legado político deste que, na minha avaliação, foi o mais importante
revolucionário brasileiro de todos os tempos.
Já nos depoimentos que
Wladimir Carvalho colheu de mim e editou em seu documentário sobre Giocondo,
presto uma justa homenagem a este também herói por, entre outras virtudes que
valorizo, ter entregue sua vida ao partido e pela franqueza como expunha suas
opiniões, em qualquer circunstância, e respeitava as divergências. Com ele
convivi no CC e na então Executiva Nacional do PCB até sua morte, em 1987.
No balanço sobre o seu papel
na formulação da linha política e da ação do partido, entre o golpe de 1964 e o
fim da década de 1970, debito em sua conta o papel que teve na manutenção das
Resoluções do VI Congresso (1967), que insistiram na equivocada estratégia
nacional libertadora e democrática burguesa, e credito sua contribuição para a
manutenção do partido na clandestinidade em condições adversas e para uma
tática (datada!) de frente democrática, que privilegiou a atuação no MDB, único
e à época plural partido consentido, entre a intelectualidade progressista e no
ambiente sindical. Nesse período, as derrotas eleitorais da ditadura, a
revogação do AI-5 e o advento da anistia, apesar de poupar os torturadores,
contribuíram para a explosão do movimento sindical e de massas e o surgimento
de outras correntes políticas à esquerda, na virada da década de 70 para 80.
Apesar do respeito que nutro
pelo camarada Giocondo Dias, não reivindico o saldo do seu legado político como
Secretário Geral do PCB durante a década de 1980, pois o considero negativo
para as novas e futuras gerações de militantes comunistas, por estimular a
conciliação de classe e as ilusões sobre a humanização do capitalismo e a
democracia burguesa.
Giocondo Dias |
A partir de 1979, a
emergência das lutas sindicais e operárias em nosso país indicava evidentemente
a necessidade de uma inflexão na linha política, na perspectiva de alianças com
forças de esquerda que surgiam, ainda que majoritariamente socialdemocratas,
como o PT e o PDT de Brizola. Sob a liderança de Giocondo, as resoluções de
viés eurocomunista do VII Congresso do PCB (“Alternativa democrática da crise
brasileira”), divulgadas em janeiro de 1984 [¹], escalaram a trajetória de
conciliação de classes e de degeneração ideológica do partido, que levou os
reformistas inclusive a ousarem tentar liquidar o PCB, em 1991 e 1992, quando,
é justo lembrar, Giocondo já havia falecido.
Mas não me valho do
benefício da dúvida para me iludir com a posição que ele adotaria no “racha”,
que se deu em janeiro de 1992. Se vivo fosse, estaria com certeza ao lado dos
que tentaram acabar com o PCB, ainda que talvez iludido com a lenda de que o
partido sobreviveria de fato como núcleo dirigente da sigla que o sucedesse,
como tentou convencer-me Salomão Malina, cuja trajetória também respeito. Além
de suas afinidades políticas, grande parte dos velhos dirigentes que mantiveram
o partido vivo, mesmo durante os piores momentos da ditadura, cultivava um
compreensível espírito de corpo.
A aliança que fundou o PPS
(que se apresentava popular e socialista) uniu, de um lado, comunistas
históricos que não conseguiam imaginar a sobrevivência do partido comunista no
Brasil sem a direção e o apoio do Partido Comunista da União Soviética, ao qual
sempre seguiram à risca, nos erros e acertos e, de outro, parlamentares que não queriam perder suas reeleições e
intelectuais e profissionais que não queriam perder seus prestígios e
privilégios, em um momento em que os escombros da contrarrevolução na União
Soviética caiam apenas sobre nossas cabeças. Era hora de “salvarem” suas
biografias e abandonarem um navio que imaginavam afundar!
Muitos daqueles que, por
ilusão ou autoengano, acreditaram na falácia de que o partido sobreviveria e
perceberam cedo a degeneração da legenda eleitoral que ajudaram a criar, caíram
em depressão que abreviou suas vidas. Estes, pelo menos, como Malina, Geraldão,
Almir Neves, Lindolfo Silva, Zé Raimundo, Amaro Valentim e Hilário Pinha, com
os quais convivi no CC, não assistiram a legenda PPS abrir mão até da
referência popular socialista para se chamar Cidadania, definição ainda mais
diluída e bem comportada, dentro das “quatro linhas” do intocável estado
democrático de direito. Pelo menos não passaram pelo desgosto de ver até onde
chegou o pântano que objetivamente engendraram, a maioria por omissão!
O documentário vale por
interessantes relatos da trajetória de Giocondo. Mas nele a história do PCB é
contada pela ótica dos que saíram do partido, não apenas para exercer o direito
natural de alguém se desligar de uma união voluntária – que Prestes dignamente
exerceu – mas para tentar acabar com sua existência e nos impedir de mantê-la e
reconstruí-la. Tanto é assim que falsificaram a correlação de forças de uma
farsa que chamaram de “congresso”, dando direito de voto a não membros do PCB
para aprovar a criação de uma nova “forma partido”, e tentaram impugnar no TSE
o nosso pedido de manutenção do registro do partido e da anotação do seu novo
Estatuto que logo em seu primeiro artigo declarava-se “herdeiro de fato e de
direito do PCB, fundado em 25 de março de 1922”, e de seu novo Comitê Central,
em que Oscar Niemeyer era o Presidente de Honra e Horácio Macedo de fato.
Não posso deixar também de
criticar, não o excelente trabalho técnico e artístico do cineasta, mas a
inclusão de alguns comentários desrespeitosos e desonestos em relação ao
camarada Prestes, que ao se desligar do partido não visava a sua destruição,
mas a sua reconstrução ou a construção de um novo partido revolucionário, não
uma legenda para servir às classes dominantes, usando cinicamente a história do
PCB.
Já em relação ao texto de
Luiz Carlos Prestes, que encaminho em seguida[³], recomendo vivamente sua leitura.
Independentemente das conclusões a que cada um de nós chegar, são inegáveis a
extraordinária contribuição política e teórica e os exemplos de abnegação
revolucionária que este grande comunista deixa às novas gerações. Devemos a
preservação de seu rico acervo fundamentalmente ao trabalho de documentação e
divulgação de Anita Prestes, não só como historiadora, mas principalmente como
revolucionária.
Em sua crítica e
autocrítica, em 1981, a respeito dos erros que o PCB insistiria nos anos
seguintes, o camarada Prestes aponta corretamente como o principal erro da
história do partido “a falsa apreciação da realidade, ainda em 1945, de definir
o caráter da revolução brasileira como “democrática-burguesa”, negando, desde
então, que “a formação econômico-social dominante no Brasil fosse a
capitalista, embora desde o início marcada como dependente, mas de qualquer
forma capitalista”.
Uma vez mantido e
reconstruído revolucionariamente, o PCB reconheceu o caráter capitalista da
sociedade brasileira e rompeu com o que chamamos de etapismo, afirmando a
estratégia socialista da Revolução Brasileira.
Entre outras importantes
observações, o camarada Prestes nos chama atenção para a necessidade de não
reincidirmos em erros que a história do movimento comunista registra, como a
incapacidade de articular corretamente todas as lutas à estratégia
revolucionária, que aponta o caminho ao socialismo e de assim não levar em
conta, na prática, que “numa sociedade capitalista, a contradição fundamental é
a existente entre o proletariado e a burguesia”.
Notas:
[1] No VII Congresso do PCB,
cujas Teses e Tribunas de Debate foram publicadas nas páginas do oficioso
semanário Voz da Unidade, não foi possível realizar sequer sua primeira sessão,
em 13/12/1982, já que o local onde se realizaria, no centro de São Paulo, foi invadido
por um contingente da Polícia Federal, o que resultou na prisão dos que éramos
delegados. A invasão se deu menos de meia hora após sua abertura, quando
Giocondo Dias ainda apresentava aos cerca de 80 delegados algumas informações e
o balanço político em nome do então CC.
Durante o ano de 1983, o Congresso realizou-se de forma “fatiada”, em um
cronograma de reuniões em datas diferentes de grupos de 15 a 20 delegados, de
forma discreta, no escritório de advocacia que nos defendia no processo com
base na Lei de Segurança Nacional, extinto anos depois. Por isso, as Resoluções
só foram tornadas públicas em janeiro de 1984.
[2] Como o partido estava
clandestino e não podia sequer manter sedes, os encontros com os camaradas em
clandestinidade absoluta se davam em locais públicos diferentes e discretos,
geralmente em bairros suburbanos.
[3] https://quefazerquefazer.blogspot.com/2021/09/aprender-com-os-erros-do-passado-para.html
Edição: Página 1917
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