Graciliano Ramos (09/12/1945)
O meu prezado José Lins, romancista José Lins do Rego, teve há dias, em artigo da imprensa vespertina, um grito de sinceridade, natural no homem que forjou o Ciclo da Cana-de-Açúcar e a figura inesquecível de Vitorino Papa-Rabo. Esse grito deve ter ecoado — longe — e é inútil mencionar tudo quanto encerra o artigo, certamente lido com amargura e raiva por muito político vaidoso.
É a confissão espontânea de que o Partido
a que se filia o escritor ruiu fragorosamente por ser uma confusa mistura de
paixões e interesses diversos. Andou às "tontas", “sem contato com as
massas” e, “num pleito livre, admirável espetáculo de civismo", perdeu em
vinte e quatro horas todos os sonhos acariciados em longos meses de cegueira
voluntária, cegueira que o autor de “Banguê ", depois dessa louvável
franqueza, tenta inexplicavelmente prolongar.
Aí José Lins se embaraça em contradições.
Afirma que só os comunistas têm um “plano
estabelecido, com palavras de ordem, firmeza de ação para determinar fins".
"Esses homens são um bloco e rolam como um bloco sobre os fatos”.
Que devemos concluir? José Lins diz quatro
vezes que essas forças batidas representam a democracia — asserção duvidosa — e
conclui:
"Por tudo isso, cada vez mais se faz urgente a fundação de um partido
democrático que una o Brasil, que seja o verdadeiro amigo do povo, um complexo
de ideias generosas, de compromissos com a dignidade humana, sem sectarismo, a
bem de nossa terra e de nossa gente".
Reproduzi o período inteiro, a fim de
notarmos a incongruência do nosso querido romancista.
Quem vai estruturar esse partido?
Naturalmente os mesmos homens que se revelam agora incapazes, com certeza pouco
dispostos a visitar favelas, pichar muros, viajar centenas de léguas para dizer
quatro palavras a algumas dúzias de operários. Assevera José Lins que apesar de
terem os "melhores propósitos, a consciência limpa", não conseguiram
chegar às massas.
Como poderiam chegar? Não nos interessam
os bons propósitos e a consciência limpa de certos privilegiados que rodam nos
automóveis, infinitamente longe de nós. Basta que um desses cavalheiros, em
momento de enjoo, se refira à canalha dos morros, à malta dos desocupados para
se desvanecerem todos os bons propósitos. Vivem na superfície, reciprocam
amabilidades, incham em demasia — e supõem que atrás deles há multidões
emboscadas esperando milagres impossíveis. Nesse período citado integralmente,
José Lins, depois de ter sido tão honesto, cai na demagogia e nas promessas
vagas. Um partido que seja o verdadeiro amigo do povo, um complexo de ideias
generosas, de compromissos com a dignidade humana. Linguagem diferente da
linguagem ordinária do criador de “Fogo Morto". Palavras, nada mais.
Isso que José Lins deseja fundar, sem
indicar os meios, já existe, segundo ele próprio declara:
"Só o Partido Comunista foi um órgão inteiriço em todo o território
nacional."
Diabo! Não é suficiente? Ou será que não
somos amigos do povo, não possuímos ideias generosas nem dignidade humana? José
Lins não admite semelhante coisa. Observador por índole e por ofício, sabe
perfeitamente isto, o único amigo do povo é o povo organizado; temos ideias bem
claras, e as ideias generosas dos amigos da onça nos deixam de orelha em pé; a
nossa dignidade é pouco mais ou menos igual à dos outros bichos que a humanidade
produz.
Sinto discordar do meu velho amigo José
Lins, grande cabeça e enorme coração. Discordo. Penso como Vitorino Papa-Rabo,
notável sujeito que deixou de ser personagem de romance e a esta hora deve
fazer discursos numa pequena célula remota, no interior da Paraíba.
Fonte: https://www.marxists.org/portugues/graciliano/1945/12/09.htm
Edição: Página 1917.
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