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sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Nem Fascismo nem Revolução*

Francisco Martins Rodrigues 

“Não existe meio termo entre a ditadura da burguesia e a ditadura do proletariado. Todos os sonhos de uma solução intermediária não passam de lamentações reacionárias de pequeno-burgueses.” Lenin(1)

 

Frentes Populares: "vitórias" que resultaram em derrotas.


Aparentemente, a questão da estratégia foi deixada de parte no relatório de Dimitrov e nos debates do congresso. Concentrando-se nas questões políticas imediatas, Dimitrov não poupou críticas aos “apelos sem futuro a favor da luta pela ditadura do proletariado”, às “frases gerais e às palavras de ordem gerais sobre a saída revolucionária da crise”, às “fórmulas gerais que não dizem nada”(2). “Eliminamos — disse no discurso de encerramento — as frases sonoras sobre as perspectivas revolucionárias”, a fim de “desembaraçar os nossos partidos de qualquer tendência para substituir a atividade bolchevique por frases revolucionárias ou discussões estéreis sobre a apreciação da perspectiva”(3).

Na realidade, esta preocupação de eficácia política encobria um propósito deliberado de desacreditar como “doutrinária” a perspectiva da revolução proletária, porque ela era inconciliável com a política de Frente Popular.**

O oportunismo na tática impunha o abandono da estratégia. E, no lugar onde antes estava a meta da conquista revolucionária do poder, surgiu uma espécie de semiestratégia, o governo de frente única proletária ou de frente popular, como “etapa intermediária” entre a ditadura fascista e a ditadura do proletariado. Este foi o embrião da teoria da “revolução democrático-popular”, lançada no ano seguinte por Dimitrov, a propósito da guerra de Espanha. Aos “apelos sem futuro a favor da ditadura do proletariado” iria suceder a luta “realista” pela semi-revolução operário-pequeno-burguesa.

Um governo de novo tipo

Que espécie de governo era o governo de frente única proposto por Dimitrov como coroamento da política de Frente Popular?

A sua posição acerca do assunto apresenta, como todo o relatório, duas faces: de um lado, irrepreensíveis garantias de princípio; do outro lado, soluções políticas concretas, que as comprometem e anulam. Só pondo em confronto estas duas faces compreenderemos como o reformismo e a retórica revolucionária se casam como um todo em Dimitrov, num típico jogo centrista.

Os comunistas, disse Dimitrov, deviam estar preparados sem hesitação para a formação de um governo de frente única proletária ou de frente popular, de luta contra a reação e o fascismo, governo que não tinha que se manter no quadro da democracia burguesa mas devia adotar “medidas resolutas contra os magnatas contra-revolucionários da finança e os seus agentes fascistas”. “Exigimos de cada governo de frente única... que realize reivindicações radicais"... “por exemplo, o controle da produção, o controle dos bancos, a dissolução da polícia, a sua substituição pela milícia operária armada, etc.”. O erro dos comunistas alemães ao entrar no governo de Saxe em 1923 fora justamente não terem utilizado as suas posições “antes de tudo para armar o proletariado”. 

O governo de frente única era, pois, muito claramente um governo a formar quando o aparelho de Estado da burguesia estivesse “suficientemente desorganizado e paralisado”, “na véspera da vitória da revolução soviética”. Era “no fundo, uma questão quase análoga” à palavra de ordem de Governo Operário e Camponês defendida pelo 4º e 5º congressos da IC(4).

Esta a face revolucionária. Passemos agora à concretização.

A formação do governo de frente única dependia da existência de uma “crise política”. Esta expressão, que Dimitrov, não por acaso, usou insistentemente(5), significava uma alteração radical em relação ao passado, cujo alcance é necessário sublinhar, antes de irmos mais longe.

Até aí, a IC considerara como condição para se poder encarar o apoio ou participação dos comunistas em qualquer governo a existência de uma crise revolucionária, isto é, de uma situação em que o regime burguês no seu conjunto se encontrasse à beira do descalabro. O papel do Governo Operário e Camponês seria precisamente precipitar o colapso do poder burguês, acelerar a instauração do poder soviético.

Ao substituir, de forma aparentemente casual, “crise revolucionária” por “crise política”, Dimitrov deslocava a questão do governo para um terreno inteiramente novo. A entrada dos comunistas para o governo passava a ser admissível e necessária numa situação em que os trabalhadores e os seus sindicatos “se insurjam impetuosamente contra o fascismo e a reação, mas sem estarem ainda prontos a sublevarem-se para lutar sob a direção do partido comunista pela conquista do poder soviético”, quando as forças aliadas exigissem “medidas implacáveis contra os fascistas e os outros reacionários”(6). 

Quer dizer: Onde antes se tinha em vista um governo para acabar com o capitalismo, agora tratava-se de um governo para acabar com o fascismo. Por isso mesmo, seria “um organismo de colaboração da vanguarda revolucionária do proletariado com os outros partidos antifascistas, no interesse de todo o povo trabalhador, um governo de luta contra a reação e o fascismo”, tendo como base uma “plataforma anti-fascista”. Um tal governo, avisou Dimitrov, “não pode trazer a salvação definitiva”, porque “não está à altura de derrubar a dominação de classe dos exploradores”(7). Destinava-se a “esmagar ou derrubar o fascismo, sem passar imediatamente à liquidação da ditadura da burguesia”(8).

Vemos agora porque falou Dimitrov em “crise política” em vez de “crise revolucionária”. Porque estava a introduzir um princípio novo, até então considerado inadmissível: a aceitação das responsabilidades de governo pelos comunistas sem sair do quadro do capitalismo.

O Governo de Frente Popular surge-nos assim em dois cenários inteiramente opostos. O primeiro é o de um governo revolucionário, formado em situação de crise revolucionária (o aparelho de Estado desorganizado e paralisado), que se apoia nos operários armados, expropria os magnatas, estabelece o controle da produção e dos bancos, etc. O segundo é o de um governo antifascista mas não revolucionário, formado em situação de crise política, que se apoia na coligação do partido comunista com os partidos democrático-burgueses e cujo objetivo não é passar à liquidação da ditadura da burguesia.

A contradição entre as duas perspectivas é flagrante. Como é que um governo de “colaboração” do PC com o PS e outros partidos burgueses, que não estaria “à altura de derrubar a dominação dos exploradores”, iria tomar “medidas resolutas” contra os magnatas da finança e os fascistas? Como é que os operários armados, de posse do controle da produção, se iriam manter nos limites de uma mera plataforma antifascista? E se o aparelho de Estado estaria “paralisado e desorganizado” e os operários armados, o que impediria então os comunistas de conduzirem o proletariado à conquista do poder?

Dimitrov deu duas versões antagônicas do governo de Frente Popular, uma revolucionária e outra meramente “democrática”. E, das duas, a que ficava a valer na prática era a segunda. Porque, ao tomar a coligação com os partidos democrático-burgueses como a base do governo, os comunistas transformavam automaticamente em declarações inócuas de intenções todas as “exigências” sobre milícias operárias e controle da produção. Uma via excluía a outra. Ou se apontava a luta antifascista operária e popular para a conquista de um governo revolucionário, capaz de levar de vencida as resistências, vacilações e traições da democracia burguesa, governo que seria, esse sim, o primeiro passo na conquista integral do poder pelo proletariado. Ou se colocava a luta antifascista no quadro de um governo de coligação com a democracia burguesa e, para atingir esse objetivo, teria que se ir renunciando inevitavelmente, passo a passo, a todas as pretensões revolucionárias.

Dizer que o governo de Frente Única estaria garantido contra uma possível degenerescência pelo fato de se apoiar num movimento combativo de massas contra a reação e o fascismo(9) era apenas uma forma de iludir a questão. Os movimentos antifascistas de massas, por muito combativos que fossem, teriam (e tiveram) as pernas cortadas se girassem na órbita de um governo de colaboração proletariado-pequena burguesia, formado para combater só a reação fascista e não o capitalismo.

A pergunta que se coloca é, portanto, a seguinte: o governo de frente única era um governo popular revolucionário ou um governo democrático-burguês? Tinha como função ser a “véspera da revolução soviética” ou promover a restauração da democracia burguesa com a cooperação do proletariado?

E aqui pomos o dedo na ferida das contradições dimitrovianas. O que Dimitrov tentou, com a palavra de ordem de governo de frente única, foi ganhar a social-democracia e as forças democrático-burguesas em geral para a colaboração com os comunistas contra o fascismo, mas sem romper declaradamente com a anterior linha revolucionária da IC. As duas faces contraditórias do seu governo resultam da mistura de dois discursos: “colaboração dos partidos antifascistas sem derrubar a burguesia”, quando falava para a democracia burguesa; “operários armados e controle da produção”, quando se dirigia aos operários. Para uns, plataforma antifascista; para os outros, “véspera da revolução soviética”.

Deste modo, a garantia de Dimitrov de que o governo de frente única seria “fundamentalmente diferente”, “diferente em princípio” de qualquer governo social-democrata(10) (garantia que E. Hoxha repete como um eco sem lhe juntar um único argumento(11) surge-nos na sua verdadeira dimensão. O governo de frente única seria efetivamente diferente dos habituais governos social-democratas porque podia contar agora com o apoio e participação dos comunistas. A diferença consistia em que seria um governo “progressista”, mas também de colaboração de classe, também no quadro do capitalismo. Seria um governo burguês “de novo tipo”, a tapar o caminho à revolução proletária, no preciso momento em que as convulsões do fascismo podiam pôr em risco a própria sobrevivência da sociedade burguesa.

A História pregou uma peça cruel a Dimitrov ao alinhar os seus governos de Frente Popular em duas tristes categorias: todos os que foram formados em período de ascenso da reação fracassaram na tarefa de deter o fascismo e a guerra (Espanha, França, Chile); todos os que foram formados em período de ascenso da revolução (no fim da guerra mundial, na Europa oriental) fracassaram na tarefa de fazer a passagem ao socialismo e não conseguiram mais do que instaurar o capitalismo de Estado.

* Trecho do cap. III do livro Anti-Dimitrov.

** Grifos do editor.

Notas: 

1) Lenine, no 1° Cong. da IC. 

(2) Dimitrov, 52,103,116. 

(3) Id, 163. 

(4) Id., 86-93. 

(5) Id., 88, 89, 93. 

(6) Id., 88. 

(7) Id., 90, 93.

(8) Id., 129.

(9) Id., 91.

(10) Id., 90. 

(11) E. Hoxha, Eurocomunismo, cap. II.

Edição: Página 1917. 


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