Francisco Martins Rodrigues
“Não existe meio termo entre a ditadura da burguesia e a ditadura do proletariado. Todos os sonhos de uma solução intermediária não passam de lamentações reacionárias de pequeno-burgueses.” Lenin(1)
Frentes Populares: "vitórias" que resultaram em derrotas. |
Aparentemente, a questão da
estratégia foi deixada de parte no relatório de Dimitrov e nos debates do
congresso. Concentrando-se nas questões políticas imediatas, Dimitrov não
poupou críticas aos “apelos sem futuro a favor da luta pela ditadura do
proletariado”, às “frases gerais e às palavras de ordem gerais sobre a saída
revolucionária da crise”, às “fórmulas gerais que não dizem nada”(2). “Eliminamos
— disse no discurso de encerramento — as frases sonoras sobre as perspectivas
revolucionárias”, a fim de “desembaraçar os nossos partidos de qualquer
tendência para substituir a atividade bolchevique por frases revolucionárias ou
discussões estéreis sobre a apreciação da perspectiva”(3).
Na realidade, esta
preocupação de eficácia política encobria um propósito deliberado de desacreditar como “doutrinária” a perspectiva
da revolução proletária, porque ela era inconciliável com a política de Frente
Popular.**
O
oportunismo na tática impunha o abandono da estratégia. E,
no lugar onde antes estava a meta da conquista revolucionária do poder, surgiu
uma espécie de semiestratégia, o governo de frente única proletária ou de frente
popular, como “etapa intermediária” entre a ditadura fascista e a ditadura do
proletariado. Este foi o embrião da teoria da “revolução democrático-popular”,
lançada no ano seguinte por Dimitrov, a propósito da guerra de Espanha. Aos
“apelos sem futuro a favor da ditadura do proletariado” iria suceder a luta
“realista” pela semi-revolução operário-pequeno-burguesa.
Um
governo de novo tipo
Que espécie de governo era o
governo de frente única proposto por Dimitrov como coroamento da política de
Frente Popular?
A sua posição acerca do
assunto apresenta, como todo o relatório, duas faces: de um lado,
irrepreensíveis garantias de princípio; do outro lado, soluções políticas
concretas, que as comprometem e anulam. Só
pondo em confronto estas duas faces compreenderemos como o reformismo e a
retórica revolucionária se casam como um todo em Dimitrov, num típico jogo
centrista.
Os comunistas, disse Dimitrov, deviam estar preparados sem hesitação para a formação de um governo de frente única proletária ou de frente popular, de luta contra a reação e o fascismo, governo que não tinha que se manter no quadro da democracia burguesa mas devia adotar “medidas resolutas contra os magnatas contra-revolucionários da finança e os seus agentes fascistas”. “Exigimos de cada governo de frente única... que realize reivindicações radicais"... “por exemplo, o controle da produção, o controle dos bancos, a dissolução da polícia, a sua substituição pela milícia operária armada, etc.”. O erro dos comunistas alemães ao entrar no governo de Saxe em 1923 fora justamente não terem utilizado as suas posições “antes de tudo para armar o proletariado”.
O governo de frente única
era, pois, muito claramente um governo a formar quando o aparelho de Estado da
burguesia estivesse “suficientemente desorganizado e paralisado”, “na véspera
da vitória da revolução soviética”. Era “no fundo, uma questão quase análoga” à
palavra de ordem de Governo Operário e Camponês defendida pelo 4º e 5º congressos
da IC(4).
Esta a face revolucionária.
Passemos agora à concretização.
A formação do governo de
frente única dependia da existência de uma “crise política”. Esta expressão,
que Dimitrov, não por acaso, usou insistentemente(5), significava uma alteração
radical em relação ao passado, cujo alcance é necessário sublinhar, antes de
irmos mais longe.
Até aí, a IC considerara
como condição para se poder encarar o apoio ou participação dos comunistas em
qualquer governo a existência de uma
crise revolucionária, isto é, de uma situação em que o regime burguês no
seu conjunto se encontrasse à beira do descalabro. O papel do Governo Operário e Camponês seria precisamente precipitar o
colapso do poder burguês, acelerar a instauração do poder soviético.
Ao substituir, de forma aparentemente casual, “crise revolucionária” por “crise política”, Dimitrov deslocava a questão do governo para um terreno inteiramente novo. A entrada dos comunistas para o governo passava a ser admissível e necessária numa situação em que os trabalhadores e os seus sindicatos “se insurjam impetuosamente contra o fascismo e a reação, mas sem estarem ainda prontos a sublevarem-se para lutar sob a direção do partido comunista pela conquista do poder soviético”, quando as forças aliadas exigissem “medidas implacáveis contra os fascistas e os outros reacionários”(6).
Quer dizer: Onde antes se tinha em vista um governo
para acabar com o capitalismo, agora tratava-se de um governo para acabar com o
fascismo. Por isso mesmo, seria “um organismo de colaboração da vanguarda
revolucionária do proletariado com os outros partidos antifascistas, no
interesse de todo o povo trabalhador, um governo de luta contra a reação e o
fascismo”, tendo como base uma “plataforma anti-fascista”. Um tal governo,
avisou Dimitrov, “não pode trazer a salvação definitiva”, porque “não está à
altura de derrubar a dominação de classe dos exploradores”(7). Destinava-se a
“esmagar ou derrubar o fascismo, sem passar imediatamente à liquidação da
ditadura da burguesia”(8).
Vemos
agora porque falou Dimitrov em “crise política” em vez de “crise
revolucionária”. Porque estava a introduzir um princípio novo, até então
considerado inadmissível: a aceitação das responsabilidades de governo pelos
comunistas sem sair do quadro do capitalismo.
O Governo de Frente Popular
surge-nos assim em dois cenários inteiramente opostos. O primeiro é o de um
governo revolucionário, formado em situação de crise revolucionária (o aparelho
de Estado desorganizado e paralisado), que se apoia nos operários armados,
expropria os magnatas, estabelece o controle da produção e dos bancos, etc. O
segundo é o de um governo antifascista mas não revolucionário, formado em
situação de crise política, que se apoia na coligação do partido comunista com os
partidos democrático-burgueses e cujo objetivo não é passar à liquidação da
ditadura da burguesia.
A contradição entre as duas
perspectivas é flagrante. Como é que um governo de “colaboração” do PC com o PS
e outros partidos burgueses, que não estaria “à altura de derrubar a dominação
dos exploradores”, iria tomar “medidas resolutas” contra os magnatas da finança
e os fascistas? Como é que os operários armados, de posse do controle da
produção, se iriam manter nos limites de uma mera plataforma antifascista? E se
o aparelho de Estado estaria “paralisado e desorganizado” e os operários
armados, o que impediria então os comunistas de conduzirem o proletariado à
conquista do poder?
Dimitrov
deu duas versões antagônicas do governo de Frente Popular, uma revolucionária e
outra meramente “democrática”. E, das duas, a que ficava a valer na prática era a segunda. Porque, ao
tomar a coligação com os partidos democrático-burgueses como a base do governo,
os comunistas transformavam automaticamente em declarações inócuas de intenções
todas as “exigências” sobre milícias operárias e controle da produção. Uma via
excluía a outra. Ou se apontava a luta antifascista operária e popular para
a conquista de um governo revolucionário, capaz de levar de vencida as
resistências, vacilações e traições da democracia burguesa, governo que seria,
esse sim, o primeiro passo na conquista integral do poder pelo proletariado. Ou
se colocava a luta antifascista no quadro de um governo de coligação com a
democracia burguesa e, para atingir esse objetivo, teria que se ir renunciando
inevitavelmente, passo a passo, a todas as pretensões revolucionárias.
Dizer que o governo de
Frente Única estaria garantido contra uma possível degenerescência pelo fato de
se apoiar num movimento combativo de massas contra a reação e o fascismo(9)
era apenas uma forma de iludir a questão. Os movimentos antifascistas de
massas, por muito combativos que fossem, teriam (e tiveram) as pernas cortadas
se girassem na órbita de um governo de colaboração proletariado-pequena
burguesia, formado para combater só a reação fascista e não o capitalismo.
A
pergunta que se coloca é, portanto, a seguinte: o governo de frente única era
um governo popular revolucionário ou um governo democrático-burguês? Tinha como
função ser a “véspera da revolução soviética” ou promover a restauração da
democracia burguesa com a cooperação do proletariado?
E aqui pomos o dedo na
ferida das contradições dimitrovianas. O que Dimitrov tentou, com a palavra de
ordem de governo de frente única, foi ganhar a social-democracia e as forças
democrático-burguesas em geral para a colaboração com os comunistas contra o
fascismo, mas sem romper declaradamente com a anterior linha revolucionária da
IC. As duas faces contraditórias do seu governo resultam da mistura de dois
discursos: “colaboração dos partidos antifascistas sem derrubar a burguesia”,
quando falava para a democracia burguesa; “operários armados e controle da
produção”, quando se dirigia aos operários. Para uns, plataforma antifascista; para os outros, “véspera da
revolução soviética”.
Deste modo, a garantia de
Dimitrov de que o governo de frente única seria “fundamentalmente diferente”,
“diferente em princípio” de qualquer governo social-democrata(10) (garantia que
E. Hoxha repete como um eco sem lhe juntar um único argumento(11) surge-nos na
sua verdadeira dimensão. O governo de frente única seria efetivamente diferente
dos habituais governos social-democratas porque podia contar agora com o apoio
e participação dos comunistas. A diferença consistia em que seria um governo
“progressista”, mas também de colaboração de classe, também no quadro do
capitalismo. Seria um governo burguês
“de novo tipo”, a tapar o caminho à revolução proletária, no preciso momento em
que as convulsões do fascismo podiam pôr em risco a própria sobrevivência da
sociedade burguesa.
A História pregou uma peça
cruel a Dimitrov ao alinhar os seus governos de Frente Popular em duas tristes
categorias: todos os que foram formados em período de ascenso da reação
fracassaram na tarefa de deter o fascismo e a guerra (Espanha, França, Chile);
todos os que foram formados em período de ascenso da revolução (no fim da
guerra mundial, na Europa oriental) fracassaram na tarefa de fazer a passagem
ao socialismo e não conseguiram mais do que instaurar o capitalismo de Estado.
* Trecho do cap. III do livro Anti-Dimitrov.
** Grifos do editor.
Notas:
1) Lenine, no 1° Cong. da IC.
(2) Dimitrov, 52,103,116.
(3) Id, 163.
(4) Id., 86-93.
(5) Id., 88, 89, 93.
(6) Id., 88.
(7) Id., 90, 93.
(8) Id., 129.
(9) Id., 91.
(10) Id., 90.
(11) E. Hoxha, Eurocomunismo, cap. II.
Edição: Página 1917.
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