Charles Bettelheim* (1979)
Depois que este livro foi escrito**,
acontecimentos de enorme alcance histórico ocorreram na China. Estes
acontecimentos colocaram radicalmente em causa os avanços da Revolução Cultural.¹
Revolução Cultural mobilizou a juventude proletária.
Assim, no fim de 1976, um “novo curso”
abre-se pouco depois da morte de Mao Zedong (9/09/1976). Nos dias que se seguem
imediatamente ao desaparecimento do Presidente Mao, a direção do PCC dá a
impressão de estar ainda unida em torno de uma linha inalterada. A 18 de setembro,
o Primeiro Ministro Hua Guofeng (que não é então presidente do partido)
pronuncia um discurso no qual cita a fórmula pela qual caracterizava Deng
Xiaoping e seus partidários:
“Dirige-se a revolução
socialista, e não se sabe mesmo onde está a burguesia; ora ela existe no
Partido Comunista, são os responsáveis pela via capitalista. Eles não cessaram
de seguir esta via.”²
Entretanto, dezoito dias mais tarde, a 6
de outubro, Hua opera um golpe de estado. Com apoio das forças de segurança,
faz prender os quatro dirigentes do partido que desempenharam papel decisivo
durante a Revolução Cultural.³ No dia 8 de
outubro faz-se nomear Presidente do Comitê Central, em condições duvidosas,
porque o CC não se reuniu (no máximo, uma parte do bureau político pôde se
reunir). A partir de 10 de outubro desencadeia-se uma campanha violenta contra
os quatro (doravante cortados do resto do mundo) e contra seus partidários,
acusados de “revisionismo”.
Nos meses que se seguem ao golpe de
Estado, uma espécie de culto de Hua Guofeng se organiza. Seu retrato aparece em
toda a parte ao lado de Mao, do qual é proclamado o continuador “clarividente”. Entretanto enquanto se estabelece a primazia formal
de Hua, assiste-se a “ascenção” de uma outra personalidade: a de Deng Xiaoping.
Este último fora afastado da direção do
Partido desde os primeiros meses da Revolução Cultural (no momento em que esta
eclode, ele dirigia o secretariado do CC e era Vice-Primeiro Ministro). É então
criticado como revisionista, tão severamente quanto Liu Shaoqi. No entanto, em
1968, as críticas dirigidas a Deng cessam. Ele próprio reaparece na cena
política em abril de 1973. Esta “reabilitação” informal realiza-se simultaneamente
ao retorno à atividade de numerosos quadros criticados durante os primeiros
anos da Revolução Cultural. Durante algum tempo, Deng torna-se o suplente do
Primeiro Ministro Chu En Lai: é um dos principais defensores das “quatro
modernizações”. Mas esta primeira ascensão é interrompida em abril de 1976,
porque seu nome está associado aos incidentes que tiveram lugar na praça Tien-An-Men,
onde manifestações em memória de Zhou Enlai dão lugar a atos de violência. Deng
é então submetido a críticas severas, inclusive por parte de Hua. Ora, nos
primeiros meses de 1977, Deng – que goza de numerosos apoios no Partido,
notadamente entre antigos quadros e no exército, retorna uma vez mais ao
primeiro plano. Em julho de 1977, sua presença é oficializada e, em fevereiro
de 1978, ele se torna Vice-Primeiro Ministro e “número dois” do PCC. Esta
ascensão de Deng é acompanhada pelo retorno a postos importantes de quadros e
dirigentes de antes da Revolução Cultural, das ideias em nome das quais esta
foi feita. Vê-se, então, cada vez mais claramente, que a primazia é dada à
economia e ao desenvolvimento das forças produtivas frente à transformação das
relações de produção.
O golpe de Estado de Hua anuncia assim, de
maneira praticamente aberta, uma mudança nas relações de força entre as
classes. Abre amplamente a porta do poder e das responsabilidades para uma
burguesia de Estado.
Nestas condições, os avanços socialistas
da Revolução Cultural são destruídos. Os comitês revolucionários de fábrica são
suprimidos. A disciplina de novo imposta do alto pela direção das empresas e
pelos engenheiros e técnicos. Os regulamentos autoritários são restabelecidos
nas fábricas. O mesmo ocorre quanto aos prêmios e os “estímulos materiais”. No
ensino, os concursos desempenham de novo o papel de antes da Revolução
Cultural. Estabelecimentos de ensino especializados são criados para os alunos
mais “dotados”. O modo de vida urbano afasta-se cada vez mais daquele dos
camponeses. Para desenvolver as forças produtivas, insiste-se antes de tudo na
acumulação, no recurso à técnica “mais moderna” e na centralização das
decisões. O papel do comércio exterior e mesmo do endividamento em relação ao
estrangeiro cresce, enquanto a palavra de ordem “desenvolver-se por suas
próprias forças”, cai no esquecimento.
Esta mudança total de curso levanta
numerosas questões. É impossível examiná-las neste posfácio. Limitar-me-ei,
portanto, a algumas observações.
Primeiramente, é necessário dizer que era
inevitável que a burguesia desencadeasse, um dia ou outro, uma contra-ofensiva,
como escrevia eu no posfácio de 1973: “É
inevitável que a linha proletária tenha ainda que enfrentar a linha burguesa.
Este enfrentamento é, ele próprio, o efeito inelutável da luta de classes, luta
que se enraíza na existência, durante o período de transição, de relações
burguesas que não podem ser substituídas por relações novas senão graças às
lutas revolucionárias”
Entretanto, a contra-ofensiva se revestiu
de uma enorme amplitude. Ela quebrou o essencial das relações das relações
sociais novas surgidas no curso da Revolução Cultural. Conduziu à eliminação da
maioria dos quadros saídos das massas no curso dessa Revolução e à eliminação
física de muitos deles. Além do mais, a resistência oposta pelos trabalhadores
a esta contra-ofensiva foi fraca. O que deve ser examinado são as razões que
explicam a amplitude da contra-ofensiva da burguesia e das vitórias que ela
alcançou e, portanto, porque as massas no conjunto ficaram passivas, ou mesmo
acolheram de maneira favorável o que se passava.
Para compreender as razões do curso tomado
pelos acontecimentos, é necessário, em primeiro lugar, analisar concretamente
como a Revolução Cultural se desenvolveu, as etapas que percorreu, os
compromissos que, em diferentes momentos, foram feitos entre as diferentes tendências
existentes, de fato, no interior do PCC, e os erros cometidos pelos partidários
da Revolução Cultural. Foi o que tentei fazer, muito imperfeitamente, nas Questions sur la Chine après la mort de Mao
Zedong. Aqui eu desejaria, sobretudo, ressaltar que a amplitude da derrota
me parece devida, entre outros, ao fato de que a Revolução Cultural não foi
acompanhada de uma expansão suficientemente ampla e poderosa das práticas
democráticas, e que esta insuficiência se explica pelas relações políticas e
ideológicas que continuaram a prevalecer no interior do PCC mesmo durante a
Revolução Cultural.
A
existência destas relações progressivamente freiou o movimento próprio das
massas. Condenou-as à passividade. Tornou-as, assim, indiferentes, pouco a
pouco, a apelos revolucionários que não desembocavam mais em uma prática real
de transformações sociais.
Tais apelos acabaram por se tornar
cansativos e preparam o terreno para que fosse acolhida de maneira mais ou
menos favorável uma linha que acentuava a “ordem”, a “estabilidade” e a “modernização”.
Assim, as massas se encontravam preparadas, ao menos em sua maioria, para
acreditar nas declarações da direção instalada após a morte do Presidente Mao e
para se deixar influenciar pelo quadro falsamente pessimista traçado da
situação econômica “legada” pela Revolução Cultural. Elas puderam acreditar nas
promessas associadas as palavras de ordem “modernização” e nela ver a garantia
de uma melhoria rápida, possível, de seu nível de vida.
Uma análise séria mostra que o “balanço”
econômico pessimista traçado dos anos 1966-1976 é um balanço falsificado. Tal
análise mostra também, que as promessas de melhoria rápida do nível de vida são
em grande parte falaciosas, porque, o programa econômico da nova direção é
irrealista e comporta mesmo aspectos aventureiros, que podem comprometer a
independência econômica futura da China. O futuro se encarregará de fazer
aparecer isso.
A derrota da Revolução Cultural não significa,
certamente, que ela não tenha deixado uma profunda marca nas massas chinesas. A
despeito dos limites da Revolução Cultural, esta transformou o estado de
espírito do povo chinês. Assim, quando as massas virem que as promessas feitas
pelos dirigentes atuais são falaciosas, e que os discursos atuais sobre uma “maior
democracia” mascaram a consolidação do poder de uma burguesia instalada no
aparelho de Estado, o povo chinês só poderá se lançar contra a exploração e
retomar sua marcha para a frente. Os ensinamentos tirados da Revolução Cultural
o ajudarão a avançar vitoriosamente.
De fato, as lições da Revolução Cultural
são imensas, mesmo se estão ainda em parte para serem decifradas. Trata-se de
lições positivas como as descritas no presente livro, ou como aquelas, mais
teóricas, que estão inscritas nos textos de Mao Zedong e dos dirigentes da
Revolução Cultural. Mas trata-se, também, de lições negativas: estas últimas só
poderão ser extraídas analisando as razões profundas das derrotas sofridas pela
Revolução Cultural Chinesa e pela Revolução Soviética. Esta análise é hoje
urgente.
Paris, 05 de março de 1979.
* Charles Bettelheim (20 de novembro de 1913 - 20 de julho de 2006) Economista e historiador marxista francês. Fundador do Centro para o Estudo de Modos de Industrialização na Sorbonne.
** Fonte: Revolução Cultural e Organização Industrial na China; Graal; 1979; p. 171.
Notas:
1 – Apresentei os elementos
de uma análise destes acontecimentos em “Questions
sur la Chine après la mort de Mao Zedong”, Paris, Maspero, 1978. Neste
livro tentei também esclarecer o que tornou tais acontecimentos possíveis.
2 – Pekin Information, nº
38, 1976, p. 15.
3 – Estes dirigentes
pertenciam às mais altas instâncias do Partido. A imprensa chinesa fala
doravante deles como constituindo “o bando dos quatro”. Trata-se de Wang Hongwen
(Vice-Presidente do Partido desde agosto de 1973; Zhang Chunquiao, membro do
comitê permanente do bureau político; Yao Wenyuan e Jiang Qing, viúva do
Presidente Mao. Estes dois últimos eram membros do bureau político desde 1969.
Em julho de 1977, “os quatro” são excluídos por “toda a vida” do Partido.
4 – Lembremos que Hua
entrara no bureau em 1973, tornara-se Ministro da Segurança em 1975 e
Primeiro-Ministro em 1976, numa época em que ele parecia se opor ativamente a
Deng Xiaoping e a seus partidários.
5 – C.F. Sobre este ponto, Questions
sur la Chine…, op. Cit., p. 105.
Edição: Página 1917
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