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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Derrrota da Revolução Cultural e Via Capitalista na China

Charles Bettelheim* (1979) 

     Depois que este livro foi escrito**, acontecimentos de enorme alcance histórico ocorreram na China. Estes acontecimentos colocaram radicalmente em causa os avanços da Revolução Cultural


Revolução Cultural mobilizou a juventude proletária.


     Assim, no fim de 1976, um “novo curso” abre-se pouco depois da morte de Mao Zedong (9/09/1976). Nos dias que se seguem imediatamente ao desaparecimento do Presidente Mao, a direção do PCC dá a impressão de estar ainda unida em torno de uma linha inalterada. A 18 de setembro, o Primeiro Ministro Hua Guofeng (que não é então presidente do partido) pronuncia um discurso no qual cita a fórmula pela qual caracterizava Deng Xiaoping e seus partidários:

“Dirige-se a revolução socialista, e não se sabe mesmo onde está a burguesia; ora ela existe no Partido Comunista, são os responsáveis pela via capitalista. Eles não cessaram de seguir esta via.”²

     Entretanto, dezoito dias mais tarde, a 6 de outubro, Hua opera um golpe de estado. Com apoio das forças de segurança, faz prender os quatro dirigentes do partido que desempenharam papel decisivo durante a Revolução Cultural.³ No dia 8 de outubro faz-se nomear Presidente do Comitê Central, em condições duvidosas, porque o CC não se reuniu (no máximo, uma parte do bureau político pôde se reunir). A partir de 10 de outubro desencadeia-se uma campanha violenta contra os quatro (doravante cortados do resto do mundo) e contra seus partidários, acusados de “revisionismo”.

     Nos meses que se seguem ao golpe de Estado, uma espécie de culto de Hua Guofeng se organiza. Seu retrato aparece em toda a parte ao lado de Mao, do qual é proclamado o continuador “clarividente”. Entretanto enquanto se estabelece a primazia formal de Hua, assiste-se a “ascenção” de uma outra personalidade: a de Deng Xiaoping.

     Este último fora afastado da direção do Partido desde os primeiros meses da Revolução Cultural (no momento em que esta eclode, ele dirigia o secretariado do CC e era Vice-Primeiro Ministro). É então criticado como revisionista, tão severamente quanto Liu Shaoqi. No entanto, em 1968, as críticas dirigidas a Deng cessam. Ele próprio reaparece na cena política em abril de 1973. Esta “reabilitação” informal realiza-se simultaneamente ao retorno à atividade de numerosos quadros criticados durante os primeiros anos da Revolução Cultural. Durante algum tempo, Deng torna-se o suplente do Primeiro Ministro Chu En Lai: é um dos principais defensores das “quatro modernizações”. Mas esta primeira ascensão é interrompida em abril de 1976, porque seu nome está associado aos incidentes que tiveram lugar na praça Tien-An-Men, onde manifestações em memória de Zhou Enlai dão lugar a atos de violência. Deng é então submetido a críticas severas, inclusive por parte de Hua. Ora, nos primeiros meses de 1977, Deng – que goza de numerosos apoios no Partido, notadamente entre antigos quadros e no exército, retorna uma vez mais ao primeiro plano. Em julho de 1977, sua presença é oficializada e, em fevereiro de 1978, ele se torna Vice-Primeiro Ministro e “número dois” do PCC. Esta ascensão de Deng é acompanhada pelo retorno a postos importantes de quadros e dirigentes de antes da Revolução Cultural, das ideias em nome das quais esta foi feita. Vê-se, então, cada vez mais claramente, que a primazia é dada à economia e ao desenvolvimento das forças produtivas frente à transformação das relações de produção.

     O golpe de Estado de Hua anuncia assim, de maneira praticamente aberta, uma mudança nas relações de força entre as classes. Abre amplamente a porta do poder e das responsabilidades para uma burguesia de Estado.

     Nestas condições, os avanços socialistas da Revolução Cultural são destruídos. Os comitês revolucionários de fábrica são suprimidos. A disciplina de novo imposta do alto pela direção das empresas e pelos engenheiros e técnicos. Os regulamentos autoritários são restabelecidos nas fábricas. O mesmo ocorre quanto aos prêmios e os “estímulos materiais”. No ensino, os concursos desempenham de novo o papel de antes da Revolução Cultural. Estabelecimentos de ensino especializados são criados para os alunos mais “dotados”. O modo de vida urbano afasta-se cada vez mais daquele dos camponeses. Para desenvolver as forças produtivas, insiste-se antes de tudo na acumulação, no recurso à técnica “mais moderna” e na centralização das decisões. O papel do comércio exterior e mesmo do endividamento em relação ao estrangeiro cresce, enquanto a palavra de ordem “desenvolver-se por suas próprias forças”, cai no esquecimento.

     Esta mudança total de curso levanta numerosas questões. É impossível examiná-las neste posfácio. Limitar-me-ei, portanto, a algumas observações.

     Primeiramente, é necessário dizer que era inevitável que a burguesia desencadeasse, um dia ou outro, uma contra-ofensiva, como escrevia eu no posfácio de 1973: “É inevitável que a linha proletária tenha ainda que enfrentar a linha burguesa. Este enfrentamento é, ele próprio, o efeito inelutável da luta de classes, luta que se enraíza na existência, durante o período de transição, de relações burguesas que não podem ser substituídas por relações novas senão graças às lutas revolucionárias

     Entretanto, a contra-ofensiva se revestiu de uma enorme amplitude. Ela quebrou o essencial das relações das relações sociais novas surgidas no curso da Revolução Cultural. Conduziu à eliminação da maioria dos quadros saídos das massas no curso dessa Revolução e à eliminação física de muitos deles. Além do mais, a resistência oposta pelos trabalhadores a esta contra-ofensiva foi fraca. O que deve ser examinado são as razões que explicam a amplitude da contra-ofensiva da burguesia e das vitórias que ela alcançou e, portanto, porque as massas no conjunto ficaram passivas, ou mesmo acolheram de maneira favorável o que se passava.

     Para compreender as razões do curso tomado pelos acontecimentos, é necessário, em primeiro lugar, analisar concretamente como a Revolução Cultural se desenvolveu, as etapas que percorreu, os compromissos que, em diferentes momentos, foram feitos entre as diferentes tendências existentes, de fato, no interior do PCC, e os erros cometidos pelos partidários da Revolução Cultural. Foi o que tentei fazer, muito imperfeitamente, nas Questions sur la Chine après la mort de Mao Zedong. Aqui eu desejaria, sobretudo, ressaltar que a amplitude da derrota me parece devida, entre outros, ao fato de que a Revolução Cultural não foi acompanhada de uma expansão suficientemente ampla e poderosa das práticas democráticas, e que esta insuficiência se explica pelas relações políticas e ideológicas que continuaram a prevalecer no interior do PCC mesmo durante a Revolução Cultural.

     A existência destas relações progressivamente freiou o movimento próprio das massas. Condenou-as à passividade. Tornou-as, assim, indiferentes, pouco a pouco, a apelos revolucionários que não desembocavam mais em uma prática real de transformações sociais.

     Tais apelos acabaram por se tornar cansativos e preparam o terreno para que fosse acolhida de maneira mais ou menos favorável uma linha que acentuava a “ordem”, a “estabilidade” e a “modernização”. Assim, as massas se encontravam preparadas, ao menos em sua maioria, para acreditar nas declarações da direção instalada após a morte do Presidente Mao e para se deixar influenciar pelo quadro falsamente pessimista traçado da situação econômica “legada” pela Revolução Cultural. Elas puderam acreditar nas promessas associadas as palavras de ordem “modernização” e nela ver a garantia de uma melhoria rápida, possível, de seu nível de vida.

     Uma análise séria mostra que o “balanço” econômico pessimista traçado dos anos 1966-1976 é um balanço falsificado. Tal análise mostra também, que as promessas de melhoria rápida do nível de vida são em grande parte falaciosas, porque, o programa econômico da nova direção é irrealista e comporta mesmo aspectos aventureiros, que podem comprometer a independência econômica futura da China. O futuro se encarregará de fazer aparecer isso.

     A derrota da Revolução Cultural não significa, certamente, que ela não tenha deixado uma profunda marca nas massas chinesas. A despeito dos limites da Revolução Cultural, esta transformou o estado de espírito do povo chinês. Assim, quando as massas virem que as promessas feitas pelos dirigentes atuais são falaciosas, e que os discursos atuais sobre uma “maior democracia” mascaram a consolidação do poder de uma burguesia instalada no aparelho de Estado, o povo chinês só poderá se lançar contra a exploração e retomar sua marcha para a frente. Os ensinamentos tirados da Revolução Cultural o ajudarão a avançar vitoriosamente.

     De fato, as lições da Revolução Cultural são imensas, mesmo se estão ainda em parte para serem decifradas. Trata-se de lições positivas como as descritas no presente livro, ou como aquelas, mais teóricas, que estão inscritas nos textos de Mao Zedong e dos dirigentes da Revolução Cultural. Mas trata-se, também, de lições negativas: estas últimas só poderão ser extraídas analisando as razões profundas das derrotas sofridas pela Revolução Cultural Chinesa e pela Revolução Soviética. Esta análise é hoje urgente.

Paris, 05 de março de 1979.


* Charles Bettelheim (20 de novembro de 1913 - 20 de julho de 2006) Economista e historiador marxista francês. Fundador do Centro para o Estudo de Modos de Industrialização na Sorbonne.

** Fonte: Revolução Cultural e Organização Industrial na China; Graal; 1979; p. 171.

Notas:

1 – Apresentei os elementos de uma análise destes acontecimentos em “Questions sur la Chine après la mort de Mao Zedong”, Paris, Maspero, 1978. Neste livro tentei também esclarecer o que tornou tais acontecimentos possíveis.

2 – Pekin Information, nº 38, 1976, p. 15.

3 – Estes dirigentes pertenciam às mais altas instâncias do Partido. A imprensa chinesa fala doravante deles como constituindo “o bando dos quatro”. Trata-se de Wang Hongwen (Vice-Presidente do Partido desde agosto de 1973; Zhang Chunquiao, membro do comitê permanente do bureau político; Yao Wenyuan e Jiang Qing, viúva do Presidente Mao. Estes dois últimos eram membros do bureau político desde 1969. Em julho de 1977, “os quatro” são excluídos por “toda a vida” do Partido.

4 – Lembremos que Hua entrara no bureau em 1973, tornara-se Ministro da Segurança em 1975 e Primeiro-Ministro em 1976, numa época em que ele parecia se opor ativamente a Deng Xiaoping e a seus partidários.

5 – C.F. Sobre este ponto, Questions sur la Chine…, op. Cit., p. 105.

Edição: Página 1917

 

 

 

 

    

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