*Essa carta foi enviada ao Comitê Central do PCB em 18 de agosto de 2020, nela eu comunicava minha saída do CC e do partido, explicando as razões da decisão. O texto não foi divulgado pela direção, permanecendo assim desconhecido pela grande maioria dos militantes. Decorridos três anos, resolvi torná-la pública na íntegra, por acreditar que possa trazer alguma luz sobre o processo que desaguou na recente crise do PCB.
Naquela ocasião, conforme explico em detalhes na carta, a maioria do CC já tinha colocado na gaveta os pressupostos da política de Reconstrução Revolucionária instituídos no XIV e XV congressos assim como em resoluções anteriores do próprio CC. O descumprimento das diretivas emanadas pela instância máxima do partido era consequência natural do giro político à direita iniciado pela direção alguns anos antes, em 2016.
O conluio entre reformistas e oportunistas consolidou essa maioria vigente até hoje no Comitê Central, composta de dirigentes acomodados e adaptados à institucionalidade burguesa. Sua política de direita, os seus métodos burocráticos e mandonistas estão na raiz da crise atual. O desfecho para o PCB não poderia ter sido outro, que não essa verdadeira "crônica de uma morte anunciada".
Ney Nunes, 30/09/2023.
Carta aos Dirigentes e Militantes do PCB
Por vezes o “otimismo da vontade” tem a capacidade de nos turvar a visão durante longo tempo. Hoje chego à conclusão que nos últimos quatro anos foi exatamente isso o que me aconteceu. Por mais que os fatos indicassem um claro giro em nossa linha política na direção oposta às resoluções aprovadas nos dois últimos Congressos do Partido, assim como o progressivo abandono dos pressupostos da estratégia de Reconstrução Revolucionária do PCB, demorei muito para enxergar o verdadeiro alcance dos posicionamentos e atitudes que foram se consolidando no interior do Comitê Central ao longo desse tempo, especialmente entre os membros da atual CPN. O desejo de ver aplicada a Reconstrução Revolucionária, com a consequente adoção de uma estrutura partidária leninista, a construção de um partido de quadros revolucionários efetivamente inserido na vanguarda da classe operária e que levasse à prática um programa anticapitalista, anti-imperialista e socialista, obstruiu a minha visão sobre a dinâmica do processo revisionista em curso no partido.
A verdade é que a Reconstrução Revolucionária se transformou em letra morta. As “letras vivas” passaram a ser as concessões cada vez mais significativas ao pós-modernismo e ao seu filho dileto, o identitarismo. Passamos a promover os “coletivos” em vez de valorizar e impulsionar as células. Assim foi se deturpando o centralismo democrático que só pode existir a partir de células fortes e atuantes, caso contrário, torna-se uma via de mão única, vira centralismo burocrático. Essa estrutura adaptada à democracia burguesa mantém o partido no gueto da pequena-burguesia, sem condições, sem política e sem disposição (a despeito do esforço meritório de alguns militantes da UC e da UJC) para empreender qualquer tentativa mais séria de inserção efetiva junto ao proletariado.
Não tardaria para que essa tendência de giro à direita se consolidasse com a adoção de táticas em completa contradição com a estratégia aprovada desde o XIV Congresso (1) e reafirmada no XV Congresso do Partido (2). Passamos a priorizar cada vez mais a institucionalidade burguesa, inclusive aprofundando a dependência do Fundo Partidário, contrariando as resoluções da Conferência de Organização de 2008 (3) e apesar dos diversos alertas posteriores à Conferência feitos por camaradas nas reuniões do CC.
Nas eleições de 2016 e 2018 ficamos inteiramente a reboque da socialdemocracia, partindo de avaliações completamente fora da realidade de que com essa tática eleitoral teríamos chances de eleger algum parlamentar. O resultado foi que não elegemos ninguém e, como de costume, não houve um balanço autocrítico dos responsáveis na direção por esse completo fiasco. Os recursos materiais e de militância teriam sido melhores empregados numa campanha eleitoral centrada no objetivo de construir o partido no seio do proletariado e nas camadas populares, com a nossa política e nosso programa, afirmando a independência de classe. Ao contrário disso, ficamos reféns do PSOL e do discurso pós-moderno, deseducando a classe, acantonados nos guetos da pequena burguesia intelectualizada.
Da correta posição de frente única contra os ataques aos direitos dos trabalhadores e às liberdades democráticas, que vinham sendo desferidos desde os governos Dilma e Temer, portanto, sob a tutela da democracia burguesa, passamos a respaldar o denominado “Estado Democrático de Direito” ao assinarmos notas conjuntas com partidos da ordem e da conciliação de classes (4), encobertas pela falsa justificativa da “unidade de ação contra o fascismo”. Desde quando, para os comunistas, se trata de “unidade de ação” o endosso à política de colaboração de classes e de respaldo as instituições da democracia burguesa? Unidade de ação se dá em torno de alguma luta específica, concreta, como por exemplo, uma mobilização contra qualquer medida antidemocrática ou de retirada de direitos levadas a cabo pelo governo burguês de turno, o Congresso ou o Poder Judiciário.
A vitória eleitoral da extrema direita e o receio de um possível golpe fascista serviram de biombo para concluir a virada em nossa política. A tática praticada pela CPN e depois ratificada pelo CC para as próximas eleições consegue ser ainda mais rebaixada. Ao não lançarmos candidaturas majoritárias ficaremos a reboque do PSOL, além de jogarmos o PCB na vala comum dos partidos (PT, PC do B, PDT, PSB, etc.) que nos estados e municípios onde governam estão aprovando o ajuste fiscal, reforma da previdência e reprimindo os protestos do funcionalismo.
No âmbito das relações internacionais o giro à direita foi incisivo, ocorreu o abandono da articulação privilegiada com o polo revolucionário do MCI, especialmente com o Partido Comunista da Grécia e o Partido Comunista do México. Pelo contrário, passamos a endossar documentos conjuntos (5) com partidos adeptos da política reformista, do oportunismo eleitoreiro e das alianças com suas respectivas burguesias. Estes são partidos revisionistas que de “comunistas” só conservam o nome no intuito de ludibriar os trabalhadores, ou se livram dele, quando lhes parece mais conveniente do ponto de vista eleitoral. Para completar o giro, passamos a ser coniventes com a ideologia do “socialismo de mercado chinês”, novo farol do revisionismo e da traição à luta revolucionária do proletariado, contra todas as evidências e dados concretos que indicam a completa restauração do capitalismo na China, transformada no paraíso de novos bilionários, como afirma o KKE desde 2010. (6)
Por fim, a consolidação da hegemonia do grupo que orienta esse giro vem levando a uma degradação do método partidário, permitindo que acusações e rotulações levianas contra camaradas prosperem com o intuito evidente de desvirtuar e suprimir o debate interno. Não por coincidência, os mesmos termos usados pelos liquidacionistas de 1992 voltam agora a ser proferidos contra quem ousa questionar a atual linha hegemônica, sendo estes logo taxados de ultraesquerdistas, ortodoxos, sectários e coisas do tipo. Essa prática nefasta, típica dos que não confiam na coerência dos seus próprios argumentos, já causou graves prejuízos ao movimento comunista internacional.
Tenho enorme respeito e admiração pelos comunistas revolucionários que, mesmo em franca minoria, permanecem militando no PCB. Com vocês aprendi bastante nesses dez anos de trabalho comum, foi para mim um orgulho conviver e militar ao lado dos camaradas desde quando ingressei no Partido em 2010. Faço votos de que, apesar do meu “pessimismo da razão”, tenham sucesso na luta para recolocar o Partido nos trilhos da Reconstrução Revolucionária. Da minha parte, saio do Partido por onde entrei: pela porta da frente. Nunca almejei nada além de ser um simples militante. Continuarei fazendo o que faço desde 1976, quando aos 18 anos de idade decidi lutar, dentro das minhas modestas capacidades, pela Revolução Socialista.
O projeto fundado no Brasil em 25 de março de 1922 não tem dono, seu legado pertence ao proletariado brasileiro.
Ney Nunes
Rio de Janeiro, 18 de agosto de 2020.
Notas:
(1) Resoluções XIV Congresso Nacional, pág. 22.
A definição da estratégia da revolução como socialista não significa ausência de mediações políticas na luta concreta, nem é incompatível com as demandas imediatas dos trabalhadores. No entanto, a estratégia socialista determina o caráter da luta imediata e subordina a tática à estratégia e não o inverso, como formulam equivocadamente algumas organizações políticas e sociais. Pelo contrário, os problemas que afligem a população, como baixos salários, moradia precária, pobreza, miséria e fome, mercantilização do ensino, do atendimento à saúde, a violência urbana, a discriminação de gênero e etnia, são manifestações funcionais a ordem capitalista e à sociedade baseada na exploração. A lógica da inclusão subalterna e da cidadania rebaixada acaba por contribuir para a sobrevida do capital e a continuidade da opressão.
O que hoje impede a satisfação das necessidades mais elementares da vida em nosso país não é a falta de desenvolvimento do capitalismo. Pelo contrário, nossas carências são produto direto da lógica de desenvolvimento capitalista adotado há décadas sob o mesmo pretexto, de que nossos problemas seriam resolvidos pelo desenvolvimento da economia capitalista. Hoje, a perpetuação e o agravamento dos problemas que nos afligem, depois de gerações de desenvolvimento capitalista, são a prova de que este argumento é falso.
Portanto, nossa estratégia socialista ilumina a nossa tática, torna mais claro quem são nossos inimigos e os nossos aliados, permite identificar a cada momento os interesses dos trabalhadores e os da burguesia e entender como as diferentes forças políticas concretas agem no cenário imediato das lutas políticas e sociais. Esse posicionamento também busca sepultar as ilusões reformistas, que normalmente levam desorientação ao proletariado, e educa-lo no sentido de que só as transformações socialistas serão capazes de resolver os seus problemas.
(2) Resoluções XV Congresso Nacional do PCB, pág. 37/38/40
41-Afirmamos que a Revolução Brasileira é uma Revolução Socialista, considerando que o Brasil é uma formação social capitalista desenvolvida e monopolista...
43-Portanto, as tarefas estratégicas colocadas ao conjunto dos trabalhadores e, em especial, a classe operária, núcleo estratégico e central do sujeito revolucionário, o proletariado, não podem se realizar nos limites de uma sociedade capitalista...
45-Toda a experiência histórica dos trabalhadores demonstrou que qualquer forma de pacto com a burguesia é uma miragem que confunde os trabalhadores, desorienta a luta de classes e apaga o horizonte socialista... Esses pactos não nos levarão a conquistas parciais que cumulativamente poderiam desembocar em uma sociedade justa e igualitária. Pelo contrário, fortalecerão ainda mais o capital e seu sistema de poder mundial. Toda experiência histórica e presente, nos comprova que o capital e a propriedade privada capitalista, ao se perpetuarem, concentram riquezas, acumulam desigualdades e geram periodicamente as crises que terão que ser pagas pelos trabalhadores para salvar o lucro dos grandes capitalistas.
50-O PCB reafirma que esta transformação histórica não se dará através de um projeto reformista, mas por uma ruptura radical, na qual desempenha papel central a questão do poder, ou seja, a destruição do poder e da dominação política burguesa e a construção de um novo Estado do proletariado da cidade e do campo, comprometido com a construção histórica da capacidade dos trabalhadores chegarem ao autogoverno e, portanto, a superação do Estado. Isto implica que nossa política de alianças deve se materializar no campo proletário popular. A aliança de classes capaz de formar o Bloco Revolucionário do Proletariado deve ser fundamentalmente estruturada entre os trabalhadores urbanos e rurais, os setores médios proletarizados e as massas de proletários precarizados que compõem a superpopulação relativa.
(3) PCB Política e Organização – Resoluções de Conferências Políticas, pág. 148.
144-O encaminhamento desta importante questão passa pelo seu enfrentamento do ponto de vista ideológico. A subestimação das finanças ordinárias do PCB tem como origem o tempo em que o partido vivia da solidariedade internacional e, nos anos 80, do reforço dos recursos obtidos por conta da política de aliança com setores da chamada burguesia nacional. Hoje em dia, outro fator tem contribuído para esta subestimação: os recursos oriundos da distribuição do Fundo Partidário.
145-Não podemos contar com nenhuma dessas fontes de arrecadação citadas: a solidariedade internacional hoje em dia não tem o componente de troca que teve no passado; nossa linha política de ruptura com o capitalismo não comporta ilusões com aliados burgueses. O Fundo Partidário pode deixar de existir a qualquer momento.
(4) https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=2495758870691360&id=1775994142667840
https://pt.org.br/rede-e-pcb-ampliam-para-sete-os-partidos-do-forum-da-oposicao/
(5) https://pcb.org.br/portal2/22960/encontro-dos-partidos-comunistas-da-america-do-sul/
http://www.comunistas-mexicanos.org/%E2%80%A6/2213-por-cuestion-de-?fbclid=IwAR1HmKE9C1408WnWiBj2uWSZ1glq3w7Nee2BMLhUxHYcbyPyaF3tqa6GVVU
(6) O Papel Internacional da China, Elisseos Vagenas, membro do CC do KKE, responsável pela seção internacional do CC, publicado na Revista Comunista 6ª edição 2010.
https://inter.kke.gr/en/articles/The-International-role-of-China/
“Em conclusão, o domínio das relações capitalistas na China, hoje é um fato, lenta ou rapidamente, levará a uma maior conformidade do sistema político, da ideologia dominante e de todos os elementos da superestrutura cujo caráter capitalista se refletirá em seus símbolos. A intensificação das contradições de classe amadurecerá e também a necessidade de o movimento operário revolucionário ser representado por seu próprio partido contra o poder capitalista.”
Edição: Página 1917
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