Miguel Urbano Rodrigues*
Nota do editor
Reproduzimos
este artigo de Miguel Urbano Rodrigues publicado logo após a reeleição de
Daniel Ortega para o terceiro mandato consecutivo como presidente da Nicarágua
em 2016. Decorridos cinco anos, Ortega assume seu quarto mandato e as traições
a Revolução Sandinista denunciadas no artigo de Miguel Urbano se aprofundaram.
A trajetória pessoal e
política de Ortega, agora reeleito presidente da Nicarágua, é um caso de
estudo. De dirigente da luta armada anti-somozista a possuidor de uma fortuna
pessoal que supera a que o próprio Somoza extorquiu ao seu povo, de lutador
pelo socialismo a patriarca de uma família de oligarcas, o sucesso de Ortega é
o insucesso da libertação do seu povo.
Miguel Urbano Rodrigues |
Daniel Ortega foi reeleito
presidente da Nicarágua. É o terceiro mandato consecutivo.
O principal partido da
oposição apelou ao boicote, mas a abstenção foi inferior à prevista pelas
sondagens.
A vitória do candidato
sandinista foi bem recebida pelo governo de Obama. As relações econômicas dos
EUA com a Nicarágua são aliás consideradas corretas pelo Departamento de
Estado.
Paradoxalmente, Ortega não
abdicou do discurso de esquerda, cultivando uma imagem anti-imperialista que
lhe permitiu nos últimos anos manter relações privilegiadas com Cuba,
Venezuela, Bolívia, Equador e alguns partidos comunistas.
Mas a fachada progressista
do regime é hoje incompatível com a realidade política, social e econômica do
país.
Desde que perdeu as eleições
presidenciais em 1990 Daniel Ortega imprimiu à FSLN uma orientação que deslocou
gradualmente para a direita o partido revolucionário fundado por Carlos Fonseca
Amador, que destruiu a ditadura de Somoza numa luta épica de anos. Fonseca, que
foi o ideólogo da guerrilha, era um marxista criativo e talentoso. Conseguiu o
que parecia impossível: unificou as três tendências da organização
revolucionária, obtendo no combate ao somozismo o apoio da Igreja, dos
sindicatos, dos trabalhadores e de intelectuais liberais.
A Revolução Sandinista vitoriosa em 1979 |
A vitória da FSLN, dirigida
por Daniel Ortega e um punhado de comandantes com prestígio internacional,
gerou uma grande esperança na América Latina. Transcorrida mais de uma década
da morte do Che na Bolívia, os Sandinistas demonstraram que em circunstâncias
excecionais a luta armada podia enfrentar e derrotar regimes apoiados pelo
imperialismo.
Tive a oportunidade em 1983
de visitar a Nicarágua revolucionária e conhecer alguns dos comandantes
sandinistas nesses dias em que a FSLN mobilizava a solidariedade das forças
progressistas da América Latina e da Europa.
No exercício do poder, o
governo da FSLN não demonstrou porem a mesma lucidez e firmeza da organização
guerrilheira.
Alvo de uma ofensiva
permanente do imperialismo americano, que financiou e armou os mercenários
contra-revolucionários, a Frente Sandinista fracassou na tarefa de reconstruir
a economia e perdeu gradualmente o apoio de amplos setores da população.
Cedendo a pressões de
Washington, Ortega – contra a opinião de Fidel Castro - convocou eleições para
a Presidência em 1990. A campanha eleitoral da oposição foi generosamente
financiada pelos EUA. O desfecho foi a eleição da liberal Violeta Chamorro e
ficou a assinalar o fim inesperado da Revolução Sandinista.
A CRISE DA FSLN
A Frente Sandinista
mergulhou numa crise profunda logo após o seu afastamento do governo.
Daniel Ortega candidatou-se
à Presidência nas eleições seguintes, tendo perdido novamente. Mas não foi uma
surpresa a sua eleição em 2006. O desfecho era esperado.
Alguns dos comandantes mais
destacados que haviam participado da guerra contra Somoza tinham rompido com
Ortega por discordarem da guinada à direita que o ex-presidente imprimira ao
partido. Entre outros, Ernesto Cardenal, Luis Carrion e Victor Tirado.
Ortega tinha optado por uma política
de alianças incompatível com os princípios e a ideologia do sandinismo. Firmou
nomeadamente um acordo com o ex-presidente Arnoldo Aleman, condenado a 20 anos
de prisão por corrupção e branqueamento de capitais. Aleman fora, sublinhe-se,
um somozista esforçado.
ROSARIO MURILLO, «A BRUXA»
Foi sobretudo a mulher,
Rosario Murillo, que teve um papel decisivo na metamorfose do dirigente máximo
da FSLN.
Professora, escritora,
poeta, Rosario, que foi também guerrilheira, é uma católica fervorosa.
Amiga pessoal desde a
juventude do arcebispo de Manágua, defendeu sempre a necessidade de boas
relações com a Igreja. Teve o descaramento de propor o seu nome para o Premio
Nobel da Paz.
Fez o marido esquecer que
Don Miguel Obando y Bravo fora admirador de Anastasio Somoza e apoiara a
contra-revolução.
Elevado a Cardeal, Obando
cimentou uma íntima aliança com Daniel Ortega quando este voltou à Presidência
em 2007.
Rosario, reeleita
vice-presidente, concentra hoje nas suas mãos um enorme poder e acumulou em
negócios ilícitos, uma fortuna colossal.
Ocorreu o inimaginável. A
família Ortega-Murillo concentra hoje mais riqueza do que Somoza no auge da sua
ditadura.
Quatro dos filhos de Daniel
são multimilionários. Laureano negociou com a China o projeto de construção do
Canal que ligará através da Nicarágua o Atlântico ao Pacifico, obra faraônica
que ameaça arruinar o Canal do Panamá. Juan controla o audiovisual. Outros
irmãos enriqueceram com a distribuição de petróleo barato recebido da Venezuela
bolivariana. Um regabofe!
Rosario, conhecida pela
alcunha de “Bruxa”, é a personalidade que domina a família e o governo.
DE HERÓIS A GRANDES
EMPRESÁRIOS
A crise da FSLN principiou
com a deserção de Sergio Ramirez, que foi vice-presidente da República no
primeiro governo de Ortega.
Sergio, que estudou na
Alemanha, era um socialdemocrata mascarado de revolucionário. Escritor de
talento, passou em tempo mínimo de sandinista a inimigo da Revolução.
Seguiram-se outras rupturas
com o passado, mais graves.
Humberto Ortega, irmão de
Daniel, foi durante a luta armada o principal estrategista da guerrilha.
Ministro da Defesa após a vitória, reformou o exército e aderiu à esdruxula
doutrina do «centrismo». Recebeu inclusive a medalha do mérito militar dos EUA.
A sua adesão ao capitalismo não surpreendeu. Enriqueceu no negócio das madeiras.
O ministro da Agricultura de
Daniel, Jaime Weelock, é hoje um próspero empresário. Bayardo Arce, outro dos
comandantes da insurreição, também enriqueceu rapidamente.
Daniel Ortega repete com
frequência que a situação económica do país melhorou acentuadamente. Mas não
diz que a Nicarágua recebeu durante os seus governos 4 800 milhões de dólares
de organizações financeiras internacionais tuteladas pelos EUA.
Do FMI tem recebido elogios.
Daniel Ortega insiste em
afirmar que pratica uma política de esquerda. Não se abstém de criticar o
imperialismo nos seus discursos enquanto elogia Cuba e a Venezuela bolivariana.
Mas Washington considera inofensiva essa oratória.
Poder-se-ia inferir deste
artigo que encaro com pessimismo o futuro do povo Nicaraguense. Seria uma
conclusão errada. A memória de Sandino, de Carlos Fonseca e da gesta heroica da
insurreição guerrilheira que destruiu a ditadura de Somoza permanece viva no
povo da Nicarágua. Um dia ele retomará a luta rumo ao socialismo interrompida
pela traição de Daniel Ortega.
Estou consciente de que um
governo do partido de extrema-direita seria pior do que o de Ortega-Murillo. Mas
indigna-me a hipocrisia da mídia e dirigentes de esquerda que insistem em
caracterizar o governo de Ortega como revolucionário.
Vila Nova de Gaia, Novembro
de 2016
*Miguel Urbano Rodrigues: (Moura, 2 de agosto de 1925 – Vila Nova de Gaia, 27 de maio de 2017) foi um jornalista, escritor e político português. Foi redactor do Diário de Notícias entre 1949 e 1956, chefe de redacção do Diário Ilustrado (1956 e 1957), antes de se exilar no Brasil, onde foi editorialista principal de O Estado de S. Paulo (1957 a 1974) e editor internacional da revista brasileira Visão (1970 a 1974). Após a Revolução dos Cravos retornou a Portugal, foi chefe de redacção do Avante! em 1974 e 1975 e director de O Diário entre 1976 e 1985. Assistente de História Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1974-75), presidente da Assembleia Municipal de Moura em 1977 e 1978, deputado pelo Partido Comunista Português entre 1990 e 1995 e deputado às Assembleias Parlamentares do Conselho da Europa e da União da Europa Ocidental, tendo sido membro da comissão política desta última.
Edição: Página 1917
Fonte: https: https://www.odiario.info/daniel-ortega-traiu-a-revolucao-sandinista/
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