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segunda-feira, 6 de abril de 2020

A Revolução e suas Fases*

Nikolai Bukharin**

   O ponto de partida da revolução é, como dissemos, um conflito entre as forças produtivas e as relações de produção, conflito que coloca numa situação particular a classe portadora do novo modo de produção, e «determina» de uma forma precisa sua consciência e sua vontade. As premissas da revolução são, portanto, a modificação profunda da consciência duma nova classe, a revolução ideológica na classe que será o coveiro da antiga sociedade.
Nikolai Bukharin
   É indispensável pararmos neste ponto. Antes de tudo, é preciso lembrar que esta revolução tem uma base material. Depois é preciso compreender nitidamente porque se trata assim de uma transformarão violenta na consciência de uma nova classe, dum processo revolucionário. Examinemos esta questão com atenção. Toda ordem social, como se aprendeu nos capítulos anteriores, não repousa unicamente sobre os fundamentos econômicos: pois qualquer que seja a ideologia reinante numa ordem de coisas dada, ela não é senão o laço que sustem esta ordem.

   As ideologias não são simplesmente acidentes, mas círculos de gêneros diversos que encerram como um tonel o corpo social, e o mantém em equilíbrio. Perguntemos agora o que aconteceria se a psicologia e a ideologia das classes oprimidas estivessem numa posição de hostilidade declarada contra a ordem de coisas reinante. Está claro que, nestas condições, esta ordem não poderia mais se manter. Consideremos com efeito uma forma qualquer de sociedade, e nos convenceremos imediatamente que enquanto subsistir esta sociedade reina, em geral e em conjunto, uma mentalidade e uma ideologia de paz civil. Isto se torna particularmente claro se tomamos por exemplo o capitalismo no início da guerra de 1914-1918. Certamente, a classe operária tinha desenvolvido uma ideologia independente da burguesia. E que vemos nós? Mesmo no seio da classe operária existia uma crença extraordinariamente forte na estabilidade da ordem capitalista, um certo apego ao Estado capitalista, uma psicologia de paz civil. Era preciso toda uma revolução psicológica e ideológica para que uma classe se levantasse efetivamente contra outra. E quando se efetua esta revolução ideológica e psicológica? Quando a evolução objetiva coloca a classe oprimida numa «situação insuportável», quando esta classe vê e adquire uma consciência nítida de que «na ordem de coisas atual não há possibilidades de melhoria possível», «que não existe saída», «que isto não pode durar». Isto se produz quando o conflito entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção provocou o rompimento do equilíbrio social, e a impossibilidade de restabelecê-lo em suas antigas bases. Prossigamos tomando por exemplo a revolução proletária. A classe operária, como já vimos, desenvolveu no curso da evolução capitalista da humanidade uma psicologia e uma ideologia mais ou menos hostil à ordem existente. É no Marxismo que esta ideologia recebeu a sua expressão a mais marcada, a mais nítida, a mais significativa e a mais profunda. No entanto, na consciência das massas, e por este fato de que o capitalismo ainda podia se desenvolver, que ele se desenvolvia e podia mesmo melhorar os salários graças ao saque e à exploração sem piedade das colônias, por este fato o capitalismo não era em absoluto «insuportável» à consciência das massas operárias. Melhor ainda. Na classe operária europeia e norte-americana se estabeleceu mesmo uma «comunidade de interesses» particulares com o «Estado nacional capitalista». Ao mesmo tempo, o Marxismo de Marx, nascido no solo da revolução de 1848, se transformava nos partidos operários num «Marxismo II.ª Internacional» todo especial, que traía, e desnaturava a doutrina de Marx, mesmo sobre a revolução social, o empobrecimento do proletariado, a queda inevitável do capitalismo, a ditadura do proletariado, etc. Tudo isto encontrou sua expressão na traição dos partidos sociais-democratas e no estado de espírito patriótico da classe operária em 1914. Foi preciso que a guerra e suas consequências aparecessem como expressão das contradições do regime capitalista, para mostrar, ou melhor, começar a mostrar, que «isto não podia mais durar». À psicologia, e à ideologia de paz civil, substituíram-se uma psicologia e uma ideologia de guerra civil, e no domínio puramente ideológico, o «Marxismo» da II.ª Internacional cedeu seu lugar ao verdadeiro Marxismo, isto é, ao comunismo cientifico.

   Assim, esta revolução nas ideias é constituída, pelo crack da antiga psicologia e da antiga ideologia, rompidas pela irrupção de fatos próprios da vida social, e pela instauração duma ideologia e duma psicologia novas e verdadeiramente revolucionárias.

   A canalha social democrata não o compreenderá jamais. Pelo contrário, ela quer apresentar a coisa da seguinte forma: no terreno da miséria e da fome, não pode haver revolução proletária, por conseguinte toda revolução que se produza nesse terreno não é uma "verdadeira" revolução. É interessante opor a isto a forma pela qual Marx encara as coisas; num artigo por ele assinado no "New York Tribune" de 2 de fevereiro de 1854, lemos:

"não podemos esquecer que existe na Europa uma sexta potência que, a um momento dado, afirmará seu poder sobre as outras cinco chamadas "grandes potencias" todas juntas, fazendo-as tremer diante de si. Esta potência, é a revolução. Depois de longo silêncio e retiro, ela é novamente chamada para a frente de batalha pela crise e pela fome... não é preciso senão um sinal para que a sexta mais poderosa das potencias entre em cena com todo o esplendor da sua armadura, a espada na mão... este sinal será dado pela guerra europeia ameaçadora".

   Assim, Marx não adiantava estes raciocínios imbecis sobre a impossibilidade duma revolução proletária, depois de uma guerra, sobre a impossibilidade de edificar a revolução sobre a fome, etc. Marx se enganava sobre o ritmo da evolução, mas ele geralmente apanhou o esquema essencial dos acontecimentos: crise, fome, guerra.

   A segunda fase da revolução é a revolução política, isto é, a tomada do poder por uma nova classe. Aqui a psicologia revolucionária da nova classe entra em ação. A classe oprimida se choca diretamente com a força concentrada da classe reinante, o seu aparelho de Estado. Para quebrar essa oposição, a classe nova, no processo da luta, desorganiza, destrói numa medida maior ou menor a organização do Estado adversário, e em parte com antigos elementos, em parte com novos, instaura sua organização de Estado. É aqui indispensável notar e frisar que a «tomada do poder» por uma nova classe não pode consistir numa simples passagem da mesma organização de Estado de uns para outros. Uma ideia assim ingênua das coisas foi extremamente difundida até em meios socialistas. Portanto, em Marx e Engels, consta expressamente a destruição do poder antigo e a organização de um novo. É muito compreensível. Com efeito, a organização de Estado é a expressão suprema do poder da classe reinante, é a sua fortaleza, sua força concentrada, seu principal aparelho de luta, sua principal arma defensiva contra a classe oprimida. Como então poderá a classe oprimida quebrar a oposição da classe opressora, deixando intacto seu principal instrumento de opressão? Como vencer um inimigo sem desorganizar as forças deste inimigo? Evidentemente, de duas uma: ou as forças da classe reinante conservam-se tais quais, e então a revolução está por definição vencida; ou então a revolução é vencedora e isto subentende a desorganização, a destruição das forças (isto é, em primeiro lugar, a organização do Estado) da classe dirigente. E como a força material do poder do Estado encontra sua principal expressão na força armada, está claro que este trabalho preliminar de destruição deve-se dirigir principalmente contra o antigo exército. Mostrou-nos isto, entre outros exemplos, a revolução inglesa do século XVII, que destruiu o aparelho de Estado do poder dos reis e proprietários fundiários, seu exército, etc. e instituiu o exército revolucionário dos puritanos e a ditadura de Cromwell. Isto nos é ainda demonstrado pela revolução francesa, que desfocou o exército real e instituiu o exército revolucionário, edificado sobre novos princípios. Isto é finalmente demonstrado e provado pela revolução russa de 1917 e dos anos seguintes, que destruiu o aparelho de Estado dos proprietários fundiários e da burguesia, que dissolveu o exército imperialista e edificou um novo Estado, dum tipo absolutamente sem precedentes, e um exército revolucionário novo. Assim, a fase política da revolução não consiste em tomar a nova classe a antiga máquina deixada intacta, mas demoli-la, mais ou menos (conforme a classe que procede à transformação social), e edificar uma organização nova, isto é, combinar de uma nova forma homens e coisas, e sistematizar duma nova forma as ideias correspondentes.

   A terceira fase da revolução é a revolução econômica. Consiste em utilizar-se a classe vencedora do poder que adquiriu como de uma alavanca para a transformação econômica, acabando de destruir as relações de produção do antigo tipo e ajudando a se desenvolver e consolidar as novas relações que já amadureciam na antiga ordem, mas em contradição com ela. Eis como Marx definiu este período da revolução, examinando a revolução do proletariado:

«O proletariado aproveitará da sua dominação política para arrancar inteiramente à burguesia todo o capital, para centralizar nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado como classe dominante, todos os meios de produção, e para aumentar, na medida do possível, a massa das forças produtivas (este último ponto, como vemos, não vem senão mais tarde, e se relaciona propriamente com o período seguinte, N. B.). Isto não pode evidentemente se dar sem irrupções despóticas no direito de propriedade e nas relações burguesas de produção, e, por conseguinte, por meio de medidas que aparecem economicamente insuficientes e insustentáveis, mas que, na marcha da evolução, saem do seu próprio quadro e são inevitáveis como meios de transformação radical de todo modo de produção» (Manifesto Comunista).

Noutra passagem do Manifesto, Marx fala do proletariado que,

«Como classe no poder, transformará pela violência as antigas relações de produção».

   Aqui se apresenta uma nova questão muito importante e fundamental: como, num caso típico, se produz, e deve inelutavelmente se produzir, esta reorganização das relações de produção?

   A maneira pela qual, antigamente, a social-democracia representava as coisas era a mais simples: uma nova classe, no caso o proletariado, «afasta» os que estão à frente do processo econômico, dizendo «Vão-se embora, imbecis! »; os «imbecis» retiram-se, mais ou menos empurrados pelo proletariado, que recebe completo e intacto o aparelho social de produção, todo pronto, amadurecido no seio de Abraão capitalista. O proletariado se instala à frente do processo econômico, e está tudo acabado: a produção segue sem embaraços, a continuidade do processo de produção não se rompe e a sociedade toda escorrega, sem choques, pelo caminho da ordem, socialista desabrochada. Examinemos, contudo, com maior atenção a revolução nas suas relações com a produção. O que indicam antes de tudo estas relações de produção do ponto de vista do processo do trabalho? Não são outra coisa senão um aparelho humano complexo de trabalho, um sistema de pessoas mutuamente ligadas umas às outras, já o sabemos, segundo um tipo determinado. Mas além disto — e isto é especialmente importante — as funções de trabalho dos diversos grupos de pessoas numa sociedade de classes são ligadas ao seu papel de classe, por assim dizer, germinadas com ele. Por conseguinte, a transposição das classes é, numa certa medida, a destruição do antigo aparelho de trabalho, e a construção de um novo, exatamente como na fase política da revolução. É lógico que resultará, inevitavelmente, por um certo período, um declínio das forças produtivas: toda reconstrução exige despesas. Da mesma forma, compreende-se que o grau de destruição do antigo aparelho, a importância das demolições depende em primeiro lugar da importância do deslocamento que se observa nas classes. Nas revoluções burguesas, por exemplo, o poder de comando na produção passa de um grupo de proprietários a outro; mas o princípio da propriedade fica em vigor, o proletariado conserva-se no lugar onde estava. Por conseguinte, a demolição, a destruição da antiga ordem é aqui muito menos importante que no caso em que a camada inferior da pirâmide, o proletariado, procura chegar ao cume. Neste caso, é necessário um abalo profundo. A antiga cadeia: burguesia, alta classe intelectual, média classe intelectual, proletariado, estala. O proletariado conserva-se mais ou menos só. Contra ele estão todos os outros. Daí uma inevitável desorganização temporária da produção, desorganização que se prolonga enquanto o proletariado não dispôs os homens segundo uma outra ordem, e não os uniu por um laço doutro tipo, isto é, enquanto não estabeleceu um novo equilíbrio de estrutura da sociedade.

   Estas ideias foram expostas pelo autor da presente obra no seu livro A Economia do período de transição (veja-se especialmente o capítulo III), ao qual remetemos os camaradas que queiram conhecer mais em detalhe as considerações desenvolvidas a este respeito. Não faremos aqui senão uma série de reparos complementares. Antes do mais, até que ponto pode esta opinião ser considerada como ortodoxa? Pensamos que é precisamente este o ponto de vista de Marx sobre a questão. Um fato característico: Marx empregava aqui exatamente a mesma expressão que a propósito da destruição do Estado. Escrevia que o invólucro das relações de produção capitalista "saltava" (Capital, tomo I); em outras passagens fala da "decomposição" e da "refundição". Compreende-se bem que quando as relações de produção "saltam", isto não pode deixar de agitar a "continuidade do processo de produção", o que seria, é natural, muito mais agradável. É provavelmente também esta ideia que transparece em Marx quando diz que "a irrupção despótica" do proletariado é economicamente "insustentável", mas em seguida ela se justifica e, por assim dizer, encontra sua compensação.

   Outra observação: Fazem-nos uma porção de objeções a propósito da Nova Economia Política (N.E.P.) na Rússia. Indica-se que na nossa "Economia do período de transição" ocupamo-nos em fazer com parcialidade a defesa do partido comunista russo, que agira como macaco em loja de louça. E agora, dizem, a vida provou que não era preciso destruir o antigo aparelho e que estamos tão calmos como o bando de Scheidman. Noutros termos: a destruição do aparelho capitalista de produção foi um fato da realidade russa e absolutamente não uma lei geral da passagem de uma forma de sociedade (capitalista) para uma outra (socialista). Esta "objeção" se apoia visivelmente numa "serena" incompreensão das coisas. Os operários russos não podiam "soltar" os capitalistas, etc., senão depois de abalar suas bases e se terem consolidado no poder, isto é, depois de terem estabelecido nas suas linhas gerais o novo equilíbrio social. Mas nossos críticos querem começar pelo fim. Com efeito, até no aparelho de Estado (por exemplo, o exército) deixamos entrar numerosos quadros de oficiais do antigo regime e os colocamos em funções de comando. Poderíamos fazer a mesma coisa no começo da revolução? Poderíamos então ter deixado de destruir o antigo exército czarista? Não seriam então os operários que lhes imporiam sua própria direção, mas eles quem imporiam a deles aos operários. É isto coisa suficientemente provada pela política dos ministros Scheidman—Noske na Alemanha, Otto Bauer. Renner na Áustria, Vandervelde na Bélgica, etc.

   Terceiro reparo: a nova política econômica na Rússia decorre, numa proporção de 9 para 10, do caráter camponês do país, isto é, de condições especificamente russas.

   Quarto reparo: É evidente que o que temos em vista é um tipo de marcha dos acontecimentos. Mas em condições particulares, pode-se dar um estado de coisas tal que não haja destruição: por exemplo, se o proletariado vencer nos países de primeira importância, então é possível que a burguesia com todo o seu aparelho capitule de uma só vez.

   O ponto de vista que acabamos de expor não afirma em absoluto que se trata unicamente de homens isolados. Ele afirma que as diversas camadas hierárquicas dos homens se separam umas das outras; o proletário rompe com as demais camadas (técnicos, burguesia, etc.), ele mesmo, como conjunto de homens, mais se agrega em um conjunto homogêneo, pelo menos numa parte considerável. Está mesmo aí a base das novas relações de produção (já vimos mais acima que "o trabalho socializado", representado principalmente pelo proletariado, é justamente o que amadureceu nos quadros do antigo regime econômico).

   Enfim, a quarta e última fase da revolução é a revolução técnica. Depois que se atingiu um novo equilíbrio social, isto é, depois da constituição de um novo invólucro estável para as relações de produção, que possa servir de forma à evolução das forças produtivas, a partir de um ponto determinado começa a sua evolução acelerada: desaparecidos os obstáculos, a sociedade começa uma ascensão até então desconhecida. Introduzem-se novos instrumentos, forma-se uma nova base técnica, produz-se a revolução técnica. E desde então começa o período «normal», «orgânico» de desenvolvimento da nova forma social, que se constitui uma psicologia e uma ideologia correspondentes.

   Recapitulemos. O ponto de partida do desenvolvimento da revolução foi, como vimos, a ruptura do equilíbrio entre as forças produtivas e as relações de produção. Isto se dá na ruptura do equilíbrio entre as diversas categorias das relações de produção. Por seu turno, esta última ruptura de equilíbrio conduz à ruptura de equilíbrio entre as classes, que se manifesta antes de tudo na destruição da ideologia de paz social. Produz-se em seguida uma brusca ruptura de equilíbrio político e sua restauração numa base nova, em seguida uma brusca ruptura do equilíbrio da estrutura econômica e sua restauração também numa nova base, enfim o aparecimento dum novo fundamento técnico. Assim a sociedade começa a se desenvolver sobre uma nova base de vida, e todas as funções vitais fundamentais tomam outro aspecto histórico.

*A Teoria do Materialismo Histórico
   Manual Popular de Sociologia Marxista

**Nascimento: 9 de outubro de 1888, Moscou.
      Falecimento: 15 de março de 1938, por fuzilamento, Moscou.
   



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