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quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Fentanis ideológicos

Fernando Buen Abad Domínguez

04-09-25

"Hoje, sob um capitalismo em deterioração e em crise estrutural de legitimidade, esse ópio assume novas formulações e laboratórios semióticos. Verdadeiros "fentanis ideológicos" são produzidos, circulados e consumidos, destinados a intensificar a letargia social, inibir a indignação organizada e anular a lucidez crítica."

 



Ao longo da história da dominação humana, sempre se buscou um ópio para anestesiar as consciências e desativar o poder transformador dos povos. Hoje, sob um capitalismo em deterioração e em crise estrutural de legitimidade, esse ópio assume novas formulações e laboratórios semióticos. Verdadeiros "fentanis ideológicos" são produzidos, circulados e consumidos, destinados a intensificar a letargia social, inibir a indignação organizada e anular a lucidez crítica. O conceito de "ópio do povo", com o qual Marx descreveu a função manipuladora das igrejas, deve ser ressemantizado. Não se trata mais simplesmente de narcotizar com narrativas homogêneas, mas de administrar microdoses de mentiras, pânico ou falsas esperanças, que moldam o metabolismo cotidiano da consciência sob a ditadura da mercadoria.

O fentanil, como droga química, personifica a metáfora: um opioide extremamente potente, capaz de matar em doses minúsculas, gerando dependência repentina e transformando a vida em um processo governado pela ansiedade da próxima dose. É também assim que os fentanis ideológicos operam: pequenas porções de espetáculo midiático, manchetes calculadas, campanhas virais, escândalos nas redes sociais, notícias fabricadas ou séries de entretenimento que injetam uma compulsão pelo consumo de narrativas tóxicas nas veias simbólicas das sociedades. O resultado é a dependência de informações distorcidas, de uma comunicação que isola as pessoas e de uma cultura de ignorância. Constrói-se um ecossistema no qual a consciência coletiva é subordinada a um regime de dopamina midiática, onde o urgente sempre substitui o importante, onde o ruído devora a crítica e onde o senso comum é sequestrado por algoritmos.

Esse mecanismo não é espontâneo nem acidental; é uma estratégia consciente dos monopólios de mídia e tecnologia. Empresas como Disney, Comcast, Fox, Paramount, Warner Bros. Discovery, Google, Meta, Amazon e Netflix formam uma hidra de múltiplas cabeças que disputa cada segundo de atenção social. Seus modelos de negócios baseiam-se na extração de mais-valia semiótica, transformando o olhar, o clique e a interação em dados e dados em dinheiro. Mas, ao mesmo tempo, transformam a subjetividade, produzem padrões perceptivos, hábitos simbólicos de consumo e predisposições ideológicas que normalizam a desigualdade, celebram as mercadorias e criminalizam qualquer horizonte emancipatório. O trabalho dessas corporações não se limita ao entretenimento; funciona como um laboratório político para a colonização da consciência.

Se Marx falava de fetichismo da mercadoria para descrever a inversão das relações sociais em objetos que parecem ter vida própria, hoje deveríamos falar de fetichismo da informação e fetichismo dos algoritmos. Notícias, trending topics e vídeos virais aparecem como realidades autônomas, neutras e inevitáveis, quando na verdade são artefatos produzidos, hierarquizados e direcionados com objetivos precisos. A semiose capitalista não se contenta com a ocultação; ela também deve fabricar a aparência de transparência, a ilusão da livre escolha, o senso de pluralidade. Assim como o fentanil químico pode ser apresentado adulterado em comprimidos que se assemelham a medicamentos comuns, o fentanil ideológico se disfarça de liberdade de imprensa, diversidade de opinião e neutralidade tecnológica.

O que está em jogo é a hegemonia cultural em sua forma mais refinada. Suas classes dominantes se sustentam não apenas pela coerção, mas também pelo consenso. Hoje, esse consenso é produzido por meio de laboratórios de intoxicação semiótica que atuam como traficantes ideológicos, distribuindo microdoses constantes de discurso conservador, de extrema direita ou comercial; elaboram discursos de ódio, criminalizam o protesto e estetizam a violência; ou, inversamente, projetam placebos de felicidade individualista que substituem a ideia de transformação social por terapias de autoajuda. Em ambos os casos, a operação é a mesma: desativar o potencial da consciência crítica coletiva, reduzir a imaginação política e esterilizar a energia subversiva.

Seu fentanil ideológico se mede pelo enfraquecimento do pensamento crítico. Os monopólios da mídia conseguiram fazer com que milhões de pessoas consumissem sua dose diária de manchetes sem contexto, imagens fragmentadas, opiniões enlatadas e pesquisas manipuladas. E, o mais grave, confundem essa dieta tóxica com "informação" e a reproduzem em suas interações sociais, em suas conversas familiares, em seus debates diários. Assim, a ideologia dominante não precisa se impor à força; ela se infiltra em cada celular, em cada tela, em cada feed personalizado. A repressão brutal dá lugar à sedação em massa. Não há necessidade de silenciar todas as vozes; basta saturar o espaço com milhões de vozes artificiais repetindo a mesma melodia.

Nesse contexto, a Filosofia da Semiose tem a tarefa de desvendar os mecanismos desse envenenamento simbólico. Não se trata apenas de denunciar as mentiras da mídia ou a manipulação das redes, mas de compreender como as cadeias de produção, circulação e consumo de signos operam na sociedade capitalista. A semiose não é neutra; é um campo de luta em que significados, valores e sensibilidades são contestados. Cada manchete, cada algoritmo, cada campanha publicitária faz parte de uma batalha por significado. E os fentanis ideológicos constituem o arsenal mais sofisticado das classes dominantes nessa guerra cultural.

Essa metáfora também nos obriga a repensar a política revolucionária. Se as pessoas recebem doses diárias de intoxicação ideológica, as forças emancipatórias precisam criar antídotos semióticos e contraofensivas. Não basta denunciar mentiras; precisamos construir narrativas revolucionárias, símbolos mobilizadores e experiências de comunicação que fortaleçam a consciência crítica e gerem prazer na verdade. Porque um dos efeitos mais devastadores do fentanil ideológico é que ele vicia as pessoas em sua própria escravidão simbólica, gerando dependência do espetáculo, da manipulação e da dose diária de superficialidade. Romper com esse vício requer uma pedagogia de desintoxicação que combine ciência, arte, política e organização.

Um exemplo palpável é a cobertura midiática da violência, das guerras e das crises sociais. As grandes redes transformam cada conflito em um espetáculo onde a empatia é dosada de acordo com interesses geopolíticos. Os inimigos de Washington são demonizados, seus aliados são santificados, figuras são manipuladas, contextos são apagados. O público recebe sua dose de indignação seletiva ou compaixão manipulada, que atua como um sedativo contra as contradições estruturais do capitalismo. Assim, fentanis ideológicos justificam invasões, sanções, bloqueios, privatizações e cortes. A dor real do povo se torna combustível para a maquinaria simbólica das elites.


Essa metáfora do fentanil também ilumina a dimensão da letalidade. Assim como as drogas químicas podem causar morte imediata, as drogas ideológicas podem produzir a morte da consciência. Povos inteiros podem ser anestesiados a ponto de perder a capacidade de se organizar, de imaginar revoluções, de resistir. Sociedades zumbificadas são construídas, onde milhões repetem slogans da mídia sem parar para considerar seus próprios interesses. A morte não é apenas física; é também cultural, política e espiritual. A alienação atinge níveis tais que a própria opressão é celebrada como se fosse liberdade, o carrasco é defendido como se fosse protetor e as pessoas votam contra seus próprios interesses como se fosse emancipação.

Mas qualquer droga, mesmo a mais potente, pode perder sua eficácia quando o corpo desenvolve tolerância. Fentanis ideológicos também enfrentam resistência. Cada vez mais setores desconfiam das redes de mídia, questionam algoritmos, criam mídias comunitárias, promovem pedagogias críticas e constroem redes de solidariedade informacional. O capitalismo tenta combater essa resistência com doses cada vez maiores de manipulação, com campanhas de ódio mais intensas, com espetáculos mais bombásticos. Com repressão semiótica sistematizada. Com think tanks. No entanto, a história mostra que nenhum regime de intoxicação ideológica dura para sempre. A consciência crítica encontra brechas, a verdade encontra seu caminho, a indignação se organiza.

Nossa tarefa urgente, portanto, é sistematizar uma estratégia coletiva de desintoxicação. Isso implica criar observatórios semióticos que estudem os mecanismos de manipulação com rigor científico; promover escolas de comunicação popular que ensinem a leitura crítica da mídia; fortalecer a mídia comunitária e pública como espaços de produção de significado alternativo; desenvolver tecnologias livres que desafiem a hegemonia algorítmica; e articular movimentos sociais com intelectuais e artistas para a construção de narrativas emancipatórias. Nossa Filosofia da Semiose, longe de ser um dogma, deve se tornar uma ferramenta prática para a construção de um novo tipo de comunicação, livre da lógica da mercantilização e orientada para o florescimento da consciência.

Seus fentanis ideológicos são a metáfora e a denúncia de um processo histórico de anestesia cultural que ameaça exterminar o potencial crítico da humanidade. Identificá-los é o primeiro passo para neutralizá-los. Este não é um problema anedótico de manipulação midiática, mas um mecanismo central do capitalismo contemporâneo para sustentar sua dominação em meio a crises recorrentes. Cada dose de espetáculo, cada dose de mentira, cada dose de manipulação faz parte de um regime de acumulação simbólica que gera mais-valia semiótica para as corporações e dependência ideológica para o povo. Diante disso, a única saída é a construção consciente de uma semiótica emancipatória que funcione como antídoto, que desperte, que organize, que devolva ao povo a capacidade de produzir seu próprio sentido e direcionar seu próprio destino.

Assim como a sociedade precisa enfrentar a epidemia química do fentanil com revoluções na saúde pública, ela também precisa enfrentar a epidemia ideológica do fentanil com revoluções na saúde cultural e comunicacional. A desintoxicação semiótica é condição para a emancipação política. Crítica, organização, unidade e criatividade não mercantilizada são nossas ferramentas. As pessoas têm direito à comunicação sem drogas ideológicas, a uma cultura sem correntes, a uma semiose sem algozes.

Fonte: https://rebelion.org/fentanilos-ideologicos/

Edição: Página 1917

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