Esta entrevista foi concedida ao Blog Caminhos da Memória no final de janeiro de 2008, pouco antes de Francisco Martins Rodrigues* falecer, em 22 de abril de 2008, vítima de câncer. Nela o dirigente comunista revolucionário percorre os principais momentos da sua trajetória política até a Revolução dos Cravos.
Nascido em Moura, em 1927, Francisco Martins Rodrigues começou a interessar-se pela política na sequência da prisão do seu irmão José Leonel, vindo posteriormente a ingressar no MUD–Juvenil e no PCP. Fez parte do Comité Central e da Comissão Executiva deste partido a seguir à famosa evasão da cadeia de Peniche a 3 de Janeiro de 1960, da qual tomou parte. Nos anos seguintes entraria em ruptura com o PCP, fundando a FAP e o CMLP. Torna-se então na principal referência teórica do maoísmo desta primeira fase. Em Janeiro de 1966 é preso pela PIDE e condenado a dezanove anos de cadeia. Permanecerá nos calabouços da ditadura até ao dia 27 de Abril de 1974. Posteriormente, fez parte do PCP(R) e da UDP, de onde viria a sair, em meados da década de oitenta, para constituir o coletivo Política Operária.
O excerto que a seguir se apresenta trata dos anos de militância no MUD-J e no PCP. Aproveita-se para informar que um texto autobiográfico sobre o período será em breve lançado pela Dinossauro e a Abrente, com o título Os Anos do Silêncio. Mas avancemos para a conversa.
Nasceu no Alentejo, uma região onde o Partido Comunista sempre teve um peso particular. Foi aí que entrou na política?
Não. Os meus pais vieram para Lisboa, teria eu seis ou sete anos, e desde essa altura que passei a viver aqui.
O que é que os seus pais faziam?
O meu pai era funcionário público e a minha mãe era doméstica. O meu pai tinha sido opositor ao regime e, por isso, tinha muitos problemas. Durante a Guerra de Espanha, era eu criança, ele comprou, de propósito, um rádio e um grande mapa de Espanha. Punha-se a ouvir e dizia-nos para procurar no mapa as terras… Éramos crianças e estas coisas marcam.
Ele chegou a estar preso?
Não.
Nem ligações ao Partido Comunista?
Não, era uma pessoa que tinha seis filhos, preocupadíssimo em sustentar a família. Só que em casa desbobinava as suas opiniões. Ouvia por vezes a Rádio Moscou – era um pesadelo, o barulho que aquilo fazia, cheio de interferências… Não seria nenhum entusiasta da Rússia, mas dizia que aquilo era «um país diferente»…
Depois, o meu irmão mais velho – o único que ainda é vivo, os outros já morreram todos – foi preso, mais ou menos no tempo do Norton de Matos. Comecei a ir vê-lo à prisão, no Aljube e em Caxias, e isso aí marcou-me muito, porque ele lá dentro começou a ficar um bocado perturbado. Apanhou ano e meio por ter sido preso com outros a escrever nas paredes. Foi suficiente para darem cabo dele. Foi aí que comecei o meu tirocínio, a frequentar amigos que ele também tinha, a participar em encontros em cafés, a ter ligação ao MUD-Juvenil.
A entrada para o PCP é posterior?
Muito posterior. Eu estava interessado em entrar, mas não se entrava facilmente. Muito secretamente, um rapaz que era barbeiro nos Anjos e que já tinha estado preso, começou a dar-me uns Avantes¹, mas que dizia que não tinha ligação nenhuma. Todos diziam que não tinham ligação nenhuma… A malta mais nova era canalizada para o MUD-Juvenil para ver o que é que valia. A minha militância aí deve ter rondado os três anos. Fui da Comissão Central do MUD Juvenil e tornei-me funcionário do MUD-J na clandestinidade Ainda sou preso algumas vezes…
É julgado?
Não, pequenas prisões de dois ou três meses cada uma. Apanham-me papéis, nos interrogatórios digo que sou do MUD-Juvenil, que não tenho nada a ver com o Partido Comunista e a coisa passava assim.
E quando é que entra para o PCP?
Em 1951. Mas mantive-me no MUD-Juvenil. Em 1954 entro para profissional do PCP. O partido começara a controlar a minha vida, a dizer que eu devia de casar porque um militante profissional sozinho na clandestinidade não podia ser, tinha de se arranjar uma amiga para ir viver com ele e isso era um problema. Eu já namorava com uma moça [Fernanda Alves] do MUD-Juvenil, que também tinha estado presa e casamos. Entre 1953 e 1954 tive uma recidiva da minha tuberculose (em 1951-52 já tinha estado doente). Ainda estive oito meses no Hospital do Rego. Também foi o partido que arranjou médico e que me meteu lá, para me preparar para ser profissional. Então, em 1954 saio já curado, casado…
E profissionalizado?
Exato! (risos). Fizemos um casamento com a família, onde dissemos que íamos para o Porto, despedimo-nos, e fomos para uma casa que já estava alugada aqui nos arredores de Lisboa. E eles nunca mais nos viram.
Mas eles sabiam que estavam a entrar para a clandestinidade?
Sabiam, claro! Só que era uma coisa que não podia ser dita. Ela já tinha estado presa, eu já tinha estado preso, agora desaparecíamos, aquilo estava na cara.
Passamos então a andar por várias casas clandestinas e eu aí faço a vida do militante clandestino. O que em relação aos três anos do MUD-Juvenil era frustrante, porque era uma vida de isolamento total. Só se contatava com pessoas esporadicamente, as saídas eram de táxi, não se discutia com ninguém… Senti muito. A minha companheira ainda sentiu mais. Deixou de ver pessoas, passava o tempo a tratar da casa e a escrever à máquina.
Além de viverem sob outra identidade, passavam a maior parte do tempo escondidos…
Sim, porque já tínhamos estado presos e podíamos ser reconhecidos. Eu passava a maior parte do tempo em casa, saía à noitinha, podia andar dois dias em encontros aqui e ali, e depois regressava. Na minha ausência, ela ficava sozinha, arranjava uma qualquer desculpa para o merceeiro lhe ir levar comida a casa… também não podia andar na rua.
Depois ela engravidou, fomos presos novamente e ainda foi maior a complicação. Eu estive preso três anos, ela dois. Ela esteve com a criança até aos dois anos em Caxias, de modo que o miúdo ficou conhecido dos guardas, dos Pides, etc. Passou a ser outro problema. De maneira que, quando fomos libertados, tínhamos de ter o miúdo guardado em casa: não podia ir à janela, não podia falar com ninguém…
Depois passámos a viver com outras mulheres, por questões de segurança. A Albina Pato, que depois se suicidou, esteve conosco; a ex-mulher do Armando Norte também, junto com uma criança… Havia assim várias situações, também para deslocar mulheres que andavam «penduradas» devido ao fato do companheiro ser preso. Estivemos também em duas tipografias do partido. A primeira com a Albina Pato, com a Fernanda Tomás, com o Joaquim Carreira, a minha companheira e eu. Estivemos lá por alturas do XX Congresso, talvez em 1957
Em que contexto se dá a sua entrada para o Comitê Central do PCP?
No final de 1960 há uma grande onda de prisões que atinge o Comitê Central. E o Dias Lourenço, que estava no estrangeiro, vem cá dentro para segurar as pontas. É nessa altura que me decidem cooptar para o Comitê Central, primeiro como membro suplente. Pouco tempo depois passo a efetivo e vou para a Comissão Executiva, que era composta por mim, pelo Blanqui Teixeira e pelo Alexandre Castanheira.
Que funções tinha essa Comissão Executiva?
Era o órgão que reunia com os responsáveis pelas troikas – grupos de funcionários – para se inteirar da situação do partido. E transmitia, a cada região do país, as orientações políticas. É aqui que eu começo a manifestar as minhas divergências, que já vinham da cadeia. Escrevo cartas para o Comitê Central e o Cunhal, em 1963, manda-me ir lá fora para discutir as minhas divergências. Havia a necessidade de ir a Moscou dar conta da situação do partido e, apesar do responsável ser o Blanqui Teixeira, sou eu designado para lá ir, pois podia fazer o relatório da atividade e, ao mesmo tempo, discutir as tais divergências.
Mas essas divergências já vinham da cadeia?
Sim. Com todas as limitações, discutíamos lá política, nomeadamente a linha que o partido estava a tomar sob a direção do Fogaça. Foi aí que eu conheci o Cunhal e o Chico Miguel, que teve grande influência em mim.
Como é que era nessa altura o quotidiano em Peniche?
Aquilo tinha seções diferentes e separadas umas das outras, nem nos víamos nem nada. Nós fomos inaugurar uma ala nova, que foi de onde se deu a fuga. Eramos doze ou treze, cada um numa cela, com contatos restritos. Havia apenas um jornal para cada piso, que era lido e entregue ao guarda, que depois o deveria entregar ao preso seguinte. O último já lia o jornal de noite… Tínhamos uma hora de recreio, guardados por dois guardas a quererem ouvir as conversas. A refeição era em silêncio absoluto. Era servir a sopa, comer e andar. Aquilo que havia de mais interessante era descascar batatas para a comida dos presos comuns. Com eles não tínhamos qualquer tipo de contato, era absolutamente proibido. Mas enquanto descascávamos batatas e carregávamos lenha era possível trocarmos umas palavras.
Era o único momento em que falavam uns com os outros?
No recreio era uma coisa insuportável, os guardas sempre atrás de nós, a dizerem para falarmos mais alto, a tentarem ouvir as conversas. Ali sempre trocávamos umas palavras de roda do balde das batatas, enquanto os guardas estavam distraídos. Também tínhamos de varrer o piso. Era dois-a-dois e às vezes fazíamos render o peixe. Enquanto varríamos, íamos conversando.
As visitas também eram muito controladas. Tinham inaugurado um sistema onde se falava por umas frestas e não se ouvia nada, tinha de ser quase aos gritos. Os guardas não só ouviam como às vezes se metiam nas conversas.
Há pouco dizia que o Francisco Miguel lhe impressionou positivamente. Porquê?
Porque era o esquerdista da companhia. O homem até nem tinha uma grande estrutura, mas tinha estado no Tarrafal, era um histórico e eu tinha uma grande admiração por ele. Naquelas hipóteses de conversa, enquanto varríamos e assim, ele punha mesmo muitas dúvidas sobre a linha do partido. Estava-se em plena «linha pacífica» do Fogaça e lá dentro tinha-se notícias disso, nomeadamente através do Jaime Serra e do Joaquim Gomes, que tinham sido presos e que nos informaram das novas orientações. O tipo espumava e dizia que o que era preciso era «encostar esses gajos todos à parede»! Não se conformava com a nova linha que era, em regra, aceite pelos militantes profissionais. Dos antigos, era o único que se manifestava nesse sentido.
O Cunhal não se manifestava lá dentro contra a linha do Fogaça?
Não… dizia que não tinha nada que discutir e que os camaradas lá fora é que sabiam. O Chico Miguel é que se dava à liberdade de mandar umas bojardas. Eu tinha uma simpatia por ele precisamente por me parecer de um gênero diferente.
O golpe de Beja foi importante para perceber que poderia haver uma estratégia de derrubada do regime diferente da que o PCP estava então a propor?
Não direi que foi importante, mas veio juntar-se a uma série de coisas. Eu discuti com camaradas do partido que sabiam que havia gente do partido que ia entrar nisso. Nós tínhamos uma demarcação nítida em relação às «golpadas», como chamávamos. Mas estava tudo a mexer… Aquilo foi um fiasco, mas foi mais uma coisa a mostrar que nem todos estavam de acordo com a linha, e que nem todos os que estavam a favor de uma linha armada eram militares anticomunistas. Agora já havia um outro ambiente. Tinha havido Cuba…
O imaginário da revolução cubana foi importante?
Sim, sentiu-se muito. Mesmo na base do partido. Era uma transformação revolucionária, a favor dos trabalhadores, e que optava pela via armada. Até aí isso não existia. Éramos educados numa grande desconfiança das coisas militares.
Como é que lhe foram chegando as notícias do conflito sino-soviético?
Depois da fuga de Peniche, estava na clandestinidade e já com um segundo filho. Estávamos a morar ao pé de Loures e ouvia na Rádio Pequim aqueles relatórios intermináveis. Eram horas a falar… e depois «continua na outra noite» (risos). Era a crítica ao Togliatti, ao Thorez… Aquilo caiu-me que nem ginjas. Estava entusiasmadíssimo. Isto terá sido em 1963, antes de ir lá fora.
Quando cheguei a Moscou estava lá a haver uma reunião, julgo que a última, entre chineses e russos, sobre as divergências. O Cunhal colocou-se logo do lado dos soviéticos e, quando chegamos lá, deu-nos logo os papéis dos chineses, para mostrar que não se estava a fazer «caixinha». De fato, aquilo ia na linha do que eu tinha ouvido e eu disse ao Cunhal que aquilo estava tudo certo, mas ele continuou de pedra e cal. Ainda antes de eu lá chegar já o Cunhal tinha escrito, em nome do partido, um papel contra aqueles que querem lançar o mundo na guerra atômica, tudo assim em meias-palavras, mas a procurar atingir os chineses.
Fizemos a reunião do Comité Central (CC) numa datcha, cheia de guardas e criados. Nos intervalos o Chico Miguel desafiou-me para passear nos jardins e para mim foi uma decepção: eu ia na ideia que o Chico Miguel não tremia mas ele já dizia que os tempos eram outros e que eu estava enganado no apoio aos chineses.
Na reunião do CC disse aquilo que tinha a dizer, que o Cunhal era um oportunista, mas ficou tudo em águas de bacalhau. Fizeram-me baixar de escalão: retiraram-me da Comissão Executiva e colocaram-me novamente como membro suplente do CC. Ainda chegaram a ponderar a ideia de eu ficar em Moscou. Aí é que me caiu a alma aos pés… A ideia era eu ser assistente do Cunhal, que teria muita coisa que fazer, muito que escrever, era apresentado aqui e ali pelos soviéticos. Felizmente, não aceitou.
Enquanto fazíamos uma volta com um intérprete soviético, deitei o olho à Embaixada chinesa em Moscou, que ainda lá estava na altura. Vi em que saída do metro era e, pelo sim pelo não, fiquei com essa informação. Se aquilo corresse mal…
Acabaram por decidir que eu vinha para Paris e que mandariam para lá a minha mulher e o miúdo mais velho. Ainda me disseram que eu podia ir para Praga e que se eu não quisesse fazer política que me arranjavam para lá um emprego. Chego a Paris e estava lá a Georgete e o «Amílcar». Pouco depois há uma reunião com malta do partido, gente legal, gente que tinha desertado, e começam a haver críticas ao partido. Eu deitei a mão a um, que eu já conhecia de cá, um oficial miliciano [Humberto Belo], pus-me a escrever o papel [Luta Pacífica e Luta Armada no nosso movimento] e aí decidi dar o pinote. Eles tinham-me posto a morar em casa de uns funcionários franceses do PCF e pirei-me lá de casa deles, com a célebre máquina de escrever (risos). Mais grave do que isso é que tinha à minha guarda, numa outra casa de militantes, o arquivo do partido. E então fui lá e trouxe uma série de documentos. Eram muitos, não podia trazer todos, mas ainda trouxe alguns. E fui morar para um quarto. Foi aí que conheci o Manuel Claro, que comunicou com Argel, onde estava o João Pulido Valente e o Rui d’Espiney. É assim que eu faço a ligação com eles.
Nesse momento de dar o salto, sou agarrado pelo «Amílcar» e pela Georgete que têm comigo uma longuíssima discussão numa casa do partido, em Paris, no intuito de eu não romper: que era uma tristeza, uma tragédia, que eu era um profissional e que não podia fazer aquilo… a Georgete chorava, mas já não havia nada a fazer. A Fernanda e meu filho acabaram por não ir para Paris e ela abandonou o partido.
Do conjunto de críticas que fazia ao partido, qual era aquela que lhe parecia ter mais importância, o elemento na política do PCP da época que achava mais insustentável?
Eu acho que era a relação do partido com as forças democráticas. A base sentia muito isso. Em vez de o partido procurar mobilizar os trabalhadores para preparar a insurreição armada, estava a fazer acordos com esses tipos e a negociar com militares.
Quando surge a explicação chinesa e o movimento aparece dividido em dois, isso também deu um impulso bestial. Quando irrompe a guerra colonial, essa questão agudiza-se: o partido não estava a corresponder às suas obrigações no caso de um levantamento dos povos coloniais. Estava num posição mole, expectante, a tentar arranjar aliados nas forças democráticas.
No Revolução Popular, órgão do CMLP, advoga-se um posicionamento mais ativo relativamente à guerra colonial. Ao mesmo tempo, coloca-se à discussão um outro tema, que não era abordado pelo PCP e que também não foi muito explorado pela extrema-esquerda sucessiva. Refiro-me à questão do chauvinismo.
Quer comentar?
Isso era uma ideia que era falada. Quando rebenta a guerra, reparo que tudo aquilo faz ainda mais sentido. Essa foi uma fase de grande entusiasmo e de perceber que o que me andavam a vender era uma coisa desenxabida.
Na questão colonial, o fato de o partido andar de braço dado com os democratas também me causava impressão. O pensamento deles sobre as colônias era uma coisa tenebrosa. Ao fim e ao cabo, o partido estava a ter a posição do Pide bom: não se deve matar os tipos, vamos conversar, etc.
Ainda antes da constituição da FAP e do CMLP foi à China e à Albânia. Encontrou diferenças entre esses dois países?
Sim! Embora isso na altura fosse um bocado desconfortável para mim, porque eu estava na fase de querer ver tudo aquilo enquadrado… A Albânia tinha um discurso bom, anti-soviético, mas era um país atrasado e cheio de dificuldades. Eles fartavam-se de falar da experiência deles, da maneira como fizeram a guerrilha, o que era uma experiência relativamente limitada. Todo o discurso deles girava à volta disso. Quando falávamos da nossa experiência, não tínhamos correspondência.
Os chineses tinham uma experiência política e ideológica incomparavelmente maior. Na China encontrei uma profundidade que me agradava muito mais. O quotidiano dos chineses também me pareceu mais autêntico do que o dos albaneses. Levavam-me ao cinema, aos mercados, falávamos com as pessoas… Na Albânia era tudo controlado ao mais pequeno pormenor. Era sinal de que eles não se sentiriam muito à vontade. Sentia-se que, para além daquilo que nos diziam, havia um dia-a-dia que nos escapava. Na China não me apercebi disso. Na verdade, não conheci muito, estive lá menos de dois meses… E também fiz muitas visitas para encher o olho (visitas a fábricas, grandes banquetes com aparatchiks, etc.)..
Estava-se em vésperas da revolução cultural. Sentiu algum prenúncio disso?
Não. Presumo que eles tivessem cuidado em não transmitir o que discutiam internamente. Às vezes perguntam-me com quem discuti e sinceramente não sei dizer. Alguém do Comité Central, mas que não guardei na memória.
Eu gostava das discussões e dos argumentos utilizados por eles. Tinha um tradutor comigo, que falava espanholês e que tinha uma boa formação cultural, e que me levava a alguns locais. As propostas dele eram do gênero de ir ver o Museu da Revolução mas eu preferia outro tipo de coisas, como ir ao cinema: cheio de gente, uma algazarra, tudo a discutir. Parecia-me que esse tipo de locais permitiam entrar um pouco mais na maneira de ser das pessoas. Era um país pobre, sem dúvida. Mas notava-se que a transformação era um processo que envolvia as pessoas e não apenas os apparatchiks.
Como é que se deu a formação da FAP?
Eu contatei com o Humberto Belo e com o Manuel Claro e, pouco tempo depois, junta-se o Rui e o Pulido. Quando o grupo toma forma seriam à volta de vinte pessoas, dissidentes do partido, mas em fases diferentes: uns ainda ligados, outros já em ruptura.
O CMLP era uma coisa restrita. Fizemos uns números da Revolução Popular e outros do Ação Popular, este mais pobrezinho, só para marcar presença. E começamos, com o Pulido à cabeça, mais desembaraçado e ativo, a tentar agarrar contatos para lançarmos bases em Lisboa.
Ele e o Claro vêm a Portugal e a coisa correu-lhe mal. Foi falar com o Rogério de Carvalho, um tipo que era profissional e que participou do assunto à direção do partido. É nessa altura que eles fazem o «Cuidado com Eles». Contata umas pessoas que nos podiam servir de apoio, mas politicamente limitadas. Ele volta para lá e resolvemos organizar a nossa vinda.
Antes de falarmos da vossa vinda para o «interior», uma questão sobre a FAP e o CMLP. Em termos leninistas, é estranho construir-se primeiro a frente e só depois a organização comunista. Que leitura pode ter isso? Esperam que o Partido Comunista pudesse ainda mudar por pressão das bases?
Não o partido. Que pessoas do partido pudessem mais facilmente se aproximar de nós se aparecêssemos primeiro sob uma forma frentista. O nosso ponto forte era que estava a haver um descontentamento crescente com a maneira como estava a ser conduzida a luta contra o fascismo. Isto era um sentimento muito generalizado. Pensamos – o Pulido era muito entusiasta disso, mas eu também concordei – que se captássemos primeiro as pessoas dessa orla, podíamos dar o outro passo, a constituição do Comitê, já com mais força.
Ainda fizemos umas reuniões do Comitê em Paris, umas discussões ideológicas, com cerca de uma dúzia de pessoas. As reuniões da FAP, com desertores e malta assim, tinham mais gente.
Depois decidem vir para Portugal…
Venho eu, o Pulido e o Rui, separados e já não sei por que ordem. Cá, cada um arranja uma casa, entramos em contato e passamos a fazer reuniões. Isto em 1965. Logo tropeçamos no gajo…
No Mário Mateus.
Pois. O Pulido conhecia-o já anteriormente, tinha ido a casa dele tratar do filho, criou empatia com ele, «que era um gajo porreiro, que também criticava o partido» e tal. Ainda me lembro que o Pulido teve uma reunião com o Mateus, em Alvalade, e eu, como desconfiei, ainda lá fui espreitar. Estive lá debaixo de uma árvore… não sei o que é que pensava fazer se aparecesse a Pide! Os gajos lá foram passear, porreiros, e eu pensei: pronto, não há azar.
Passado uns tempos o Pulido não aparece ao encontro. Tinha sido preso e manda-nos um recado a dizer que o Mateus de certeza que tinha falado na polícia porque lhe tinham feito perguntas que indiciavam conhecimentos. O Pulido tinha ido para a Penitenciária porque tinha um processo antigo por «desonrar uma menina». Como havia esse processo, a Pide largou-o. Isso também indica a pouca importância que nos davam. Isso deu-lhe oportunidade, na cadeia com os presos comuns, de passar cá para fora aquela mensagem.
Eu e o Rui vimos que tínhamos de ir apertar o gasganete ao homem para ver o que é se passou. Pegamos no gajo e levamo-lo para fazer o interrogatório. E o desfecho é conhecido. Eu não conhecia o gajo, conheci-o nessa altura. Nós estávamos cheios de dúvidas mas íamos apertando: «não nos venham com histórias, tu disseste isto e isto à polícia, a polícia atacou o Pulido, o que é que tu sabes» e tal. No fim, estávamos quase a deixar o gajo e ele, talvez de cansaço, confessa.
O tipo tinha aparecido na mesma noite da prisão do Pulido ao Rui, dizendo-lhe que o Pulido deveria ter sido preso, porque ele tinha ido a um encontro com ele e o Pulido não tinha aparecido. E que se estavam a murmurar coisas esquisitas lá nos cafés, entre as quais que a polícia tinha ido lá prender um gajo. Quando ele diz que tinha entregue o Pulido e recebido nessa mesma noite o pagamento da polícia, vimos o que tínhamos a fazer. Não é fácil dar dois tiros num gajo, mas para nós tinha-se tornado numa coisa absolutamente obrigatória.
Eu já tinha sido preso uma vez, denunciado por um tipo. Em Lisboa, então, era uma coisa espantosa.
Havia muita gente a prestar-se a essas tarefas de denúncia?
Muita. Operários pagos pela Pide, que se iam mantendo até chegarem ao contato com os profissionais, que era quem eles queriam. Quando um profissional era destacado para Lisboa dizia-se, meio a brincar, «tu não duras muito». Na província era uma brincadeira. A própria Pide não estava muito desenvolvida em algumas zonas. Era esse bandido do José Gonçalves, que nem era inspetor, era chefe de brigada, e que era o gênio destas coisas. Fazia reuniões nos bairros com os informantes. Isso permitiu à Pide prender muitos funcionários e fez com que o gajo fosse promovido por distinção. Eu fui assim apanhado: ao terceiro encontro com um gajo, catrapuz (a prisão em que sou preso com a Fernanda).
Depois o partido foi obrigado a entrar em ação e ainda matou dois gajos. Mas até àquele tempo havia uma relutância enorme em enfrentar de frente o problema: e se o gajo é Pide, depois o que é que a gente faz? Quando muito, punha-se à margem pessoas sobre as quais havia desconfianças. Só que ele estava uns meses à margem e depois aparecia, «camaradas, quero trabalhar» e lá vinha o gajo.
Significa que, antes de vos aparecer no concreto o caso do Mateus, vocês já tinham pensado o que fazer se vos aparecesse uma situação daquelas…
Sim, exatamente. Mas foi uma asneira, porque nós não tínhamos estrutura para aguentar uma coisa daquelas. Era como se estivéssemos a provocar a Pide. Mas não podíamos voltar atrás: já tínhamos decidido, os cabrões andavam a fazer o que queriam, tínhamos de dar o exemplo.
Quando a polícia sabe que o tipo foi morto não teve dúvida nenhuma sobre quem tinha sido. Prendeu toda a malta da FAP que andava a vigiar. Quando somos presos já havia para aí dez tipos, ligados à FAP, presos.
Depois de termos feito àquela asneira, a única coisa a fazer era rasparmo-nos para a província. Não tínhamos muito dinheiro, também havia esse problema. Mas, enfim, reduzimos a atividade e continuámos em Lisboa. Conforme os dias passavam, eu e o Rui víamos o cerco a apertar. Era preso um, depois outro… Eu sou apanhado num encontro com o engenheiro Acácio Barata Lima, na freguesia de Santa Isabel. Nem nunca ficou muito claro como é que a polícia foi lá ter. Não foi por culpa dele.
Ainda tentou resistir?
Claro, ainda fiz barulho, disse o meu nome e que estava a ser preso, mas era de noite, havia pouca gente, pouca iluminação… Ainda consegui mandar uns papéis fora.
Na prisão foi extremamente maltratado…
Foi o sono…
Nunca tinha feito, antes?
Não. Nas outras prisões o tratamento foi muito diferente. Umas horas de pé, uns insultos. Cheguei a estar uns meses nos curros do Aljube, mas espancamentos e torturas não tive. Eu atribuí isso ao problema de tuberculose que tinha tido.
Logo quando fui preso fui levado para o piquete onde me insultaram e agrediram violentamente: «cabrão, filho da puta», porrada, socos…. Depois saíram e entrou um inspector: «então, o que se passa, o senhor está ferido? Temos tratar de si…»
Mas a aposta deles foi fazer render o sono. Eles sabiam que se chegava a um ponto em que a pessoa já não estava em si. Foram duas doses fortes com uma noite pelo meio para dormir. E com muita porrada. Apareciam de repente, muitos, com cacetetes a dar porrada. No meio daquilo o Inácio Afonso, que era um grande bandido, ameaçou com uma faca que me punha as tripas de fora, «como se fazia em Angola com os pretos», e apontou-me uma pistola à cabeça dizendo que me ia matar. Na época fiz um relatório onde descrevo isso tudo.
Teve visões?
Sim, também relatei isso. Eu li, quando estava ainda cá fora, relatórios de presos sobre as torturas. Li um do Dias Lourenço, que era tão disparatado que se via que ele ainda não discernia a realidade da imaginação. Mas, de fato, aquilo tem um efeito terrível. E destruiu muita gente.
A dada altura pensava que estava numa casa no campo, com um gajo à espera, que era o Pide mas que eu já nem sabia que era Pide… Via muita poeira a sair do chão… Havia uma janela e eu por vezes caía para a frente e feria-me na cara. Quando isso acontecia reparava instantaneamente onde estava. Mas rapidamente caía ou perdia a noção…
Estava em pé?
Sim, sempre.
Mas «estátua»?
A andar. Acho que eles chegaram à conclusão que a pessoa parada durava menos tempo, por isso punham-na a andar. Quando já não se conseguia mesmo, quando já estávamos naquele ponto de cairmos redondos no chão, metiam dois Pides, um de cada lado, a segurar debaixo dos braços, e a arrastar-nos. Depois mandavam água para a cara, davam “caldos”, seja o que for para um gajo não dormir. Às vezes chamavam um médico, quando aquilo já ia muito avançado, para nos fazer um exame. Fazia-nos umas perguntas e depois ia-se embora. No meu caso, o médico só veio uma vez.
Tanto como sacar informações, a Pide queria destruir moralmente as pessoas…
Em absoluto. A certa altura vieram vários inspetores – era de manhã, se calhar foi para se divertirem – «ah, este é que é o gajo». Eu já estava a baralhar o sonho e a realidade, mas tenho quase a certeza que isto que vou contar aconteceu: o Inácio Afonso, que era quem mais ou menos «tratava» de mim, deu-me uma pistola para a mão, «eh pá, tu se calhar queres matar-te, guarda aí isso contigo».
E ficou com ela?
Depois levaram-na. Deve ter sido para ver a reação da pessoa, o estado em que ela está. Acabei por fazer declarações, como é sabido. O gajo mostrou-me um papel que tinham apanhado e de que eu não me tinha conseguido desfazer. Ele perguntou o que era aquilo e eu respondi.
Nomes de pessoas?
Sim. Indiquei três ou quatro pessoas, acho eu. Eles fizeram uma coisa: depois daquilo acabar, o advogado foi-me lá visitar e trouxe uma cópia dos meus autos e estavam lá uma série de folhas que eu nunca tinha visto.
O que é que diziam essas folhas?
Eram uma espécie de relato pormenorizado da atuação da FAP. De pessoas que nunca tinham sido mencionadas, mas que eles foram compondo, com pedaços daqui e dali, tirados dos depoimentos de outros presos. Como eu era o responsável, convinha que lhes desse eu o conjunto.
Mas o essencial é que eles tinham conseguido sacar informações e reduzir um gajo àquilo que eles queriam: «a partir de agora este homem está arrumado».
Isso era uma questão central. O PCP também tinha essa postura…
Tinha. Eu conheci, não sei se centenas, mas muitas dezenas foram, de presos do partido que fizeram declarações, e o sentimento era comum: já não sou nada, já não sou comunista, estraguei a minha vida…. A pessoa ficava destruída. A verdade é que muitos deles foram posteriormente reintegrados no partido, sempre com aquele medo de não saber como se comportariam de novo diante da Pide.
O certo é que uma grande parte dos presos submetidos a tortura faziam declarações. Claro que o partido estava interessado em que os militantes não falassem, o Chico Miguel foi um grande adepto disso, e foi mesmo o recordista, esteve dias infindos no sono. Eu já tinha lido coisas sobre isso, falávamos em reuniões, mas fazer a experiência foi diferente.
Foi transferido de imediato para Caxias?
Não, continuei na Antônio Maria Cardoso. Depois de acabar a tortura trouxeram uma cama e fiquei ainda uns dias por lá, enquanto me metiam uns cremes para disfarçar os maus-tratos. A seguir é que vou para Caxias. Fico lá alguns meses e depois vou para Peniche.
Quando lá chegam dá-se logo a divisão entre presos da extrema-esquerda e presos do PCP?
Nessa altura ainda estamos misturados. Mais tarde é que se dá um incidente, que já não sei dizer qual foi, e que vai levar à separação. No Pavilhão B estava malta da FAP, com quem não tínhamos contato, e eles não estavam separados dos «revisas», como dizíamos. Foi no Pavilhão C, onde estávamos, que se deu uma bronca e que separaram a malta do PC da malta da FAP, coloniais e LUAR.
Na fase final o regime atenuou-se bastante. Lá dentro estava tudo à balda, podíamos andar pelos corredores e entrar nas celas uns dos outros. Não havia comparação nenhuma com o que eu tinha passado antes.
Como é que foi o vosso 25 de Abril?
Estávamos lá dentro e tivemos dificuldade em acreditar. Tinha dezanove anos para cumprir, oito estavam feitos, não estava à espera tão cedo de ir lá para fora. Nessa madrugada ficamos muito desconfiados e entrincheiramo-nos dentro do Pavilhão. Olhávamos lá para fora e víamos a GNR a passear. Um dos guardas, um provocador qualquer, viu a malta lá toda assarapantada e apontou a espingarda para as janelas. Até que um preso se reuniu com um familiar que lhe explicou que aquilo não era um golpe da extrema-direita. Reunimo-nos os presos m-l, da LUAR e os coloniais e tomámos a posição «ou saem todos, ou não sai ninguém».
Como é que foi essa assembleia?
Alguns dos presos que tinham menos pena estavam mais vacilantes, como é natural, com medo de se meterem numa grande alhada. O comandante Serra, enviado pelo MFA para Peniche, disse que quem tinha crimes de sangue iria para a Trafaria até a questão resolver-se, mas que era um assunto de simples resolução. O Pulido, como de costume, destacou-se e fez um discurso a defender a ideia de «ou saímos todos ou não sai ninguém». Tentávamos explorar ao máximo o ambiente de não cedência. E a malta alinhou nessa ideia.
Os presos do PC estiveram nessa assembleia?
Não, já tinham começado a sair. Nós a vê-los, com as trouxas… O primeiro a sair foi o Ângelo Veloso. Aliás, o Viegas Aleixo estava no piso deles e é deixado lá. Não pode sair pelas razões que não nos deixavam sair também a nós (crime de sangue). Deixaram-no lá e ele veio juntar-se a nós.
Parece-me que é possível apontar duas ondas do maoísmo: uma primeira, ligada ao conflito sino-soviético, e uma segunda, mais devedora do imaginário da revolução cultural, nomeadamente da sua recepção em alguns setores do mundo Ocidental. Sendo uma pessoa que se aproximou do maoísmo logo no primeiro momento, como é que viu esta «segunda vaga», associada à revolução cultural, e toda a exaltação do ativismo e da juvenilidade que a envolveram?
As ideias da revolução cultural causaram-me muita perplexidade. Enfim, aquilo que se sabia e que não era muito. Parecia-me pouco consistente ideologicamente. Havia também forças revolucionárias no meio daquilo tudo, mas foram também liquidadas. Aquilo que me sugestionou mais foi, de fato, a fase inicial, a ruptura com a União Soviética. Mesmo aí com muitas limitações, eles nunca se aventuraram muito pela questão do Stalin.
«70% certo, 30% errado»…
Disseram-me lá essa…(risos)
Que balanço é que faz desse período, do período que vai da ruptura com o PC até ao 25 de Abril?
A princípio tive a esperança de que alguns militantes do PC se aproximassem de nós. À medida que fui vendo que isso não acontecia, apercebi-me que estávamos metidos numa luta de longa duração. Da crítica a certos desvios fui passando à noção de que era necessário situar historicamente e de uma outra forma acontecimentos como a revolução soviética ou a revolução chinesa.
Como é que se define politicamente hoje?
Comunista. Não consigo melhor definição do que esta… (risos)
Fonte: https://caminhosdamemoria.wordpress.com/2008/06/22/uma-entrevista-a-francisco-martins-rodrigues-1/
*Francisco Martins Rodrigues(1927-2008), militante comunista, foi membro do CC do Partido Comunista Português, rompeu com o seu reformismo por altura da polêmica sino-soviética, fundando a FAP e o CMLP, a primeira organização marxista-leninista portuguesa. Foi o primeiro a introduzir em Portugal de uma forma organizada as lições da revolução chinesa e o exemplo de Mao Tsétung. Preso várias vezes e barbaramente torturado pela PIDE, manteve-se ao longo de toda a sua vida do lado da Revolução e empenhado na organização de uma corrente comunista revolucionária. O 25 de Abril de 1974 apanhou o camarada "Chico" na prisão e os militares "democratas" do MFA tentaram mantê-lo preso. Só a forte vontade popular e grandes manifestações à porta da prisão o conseguiram libertar. A partir de 1985 e até morrer em 2008 foi diretor da revista "Política Operária", que também fundou. É em nome da prioridade do papel do operariado que, em 1984, abandona o PCP (R) e a UDP, acusando os outros dirigentes de cedências à pequena burguesia. Escreve então o livro "Anti-Dimitrov. 1935-1985 meio-século de derrotas da Revolução" (1985), onde sistematiza a sua crítica ao dimitrovismo, ao estalinismo e ao maoismo. Funda a "Política Operária", a sua última revista, que manteve praticamente até à morte.
Edição: Página 1917
Nota Edição Página 1917:
1 - (jornal do PCP)
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