Lenin: Usos e Abusos
Ney Nunes*
26/03/2024
Ainda está para surgir quem faça um estudo aprofundado a respeito dos usos e abusos da obra de Lenin pelos embusteiros de todos os matizes. Será, com certeza, um trabalho hercúleo, uma obra que não poderá ser reunida num único livro, mas necessitará de vários volumes. Depois de um século do seu falecimento, Lenin continua a ser citado por inúmeros oportunistas, na tentativa de camuflar com verniz de esquerda as mais torpes e escabrosas manobras políticas. Manobras estas, em geral, visando sempre colocar o proletariado a reboque dos interesses burgueses.
É justamente o que vem ocorrendo na atual conjuntura. O crescimento de partidos de extrema-direita em vários países e sua ascensão ao governo via eleições, como por exemplo, Jair Bolsonaro no Brasil e Javier Milei na Argentina, suscitam as mais estapafúrdias análises por parte desses ideólogos do oportunismo e do reformismo. Seus artigos, na maioria das vezes, vêm acompanhados de comparações com os antecedentes da Revolução Russa e recheados de citações descontextualizadas do seu principal dirigente. Não satisfeitos em desvirtuar a trajetória política e a obra de Lenin, agregam frequentemente no rol das suas mistificações outros destacados revolucionários, como Trotsky, Gramsci e Mao.
Comparar a atual conjuntura e o fortalecimento de partidos reacionários com a situação internacional no período da Revolução de 1917 beira mesmo ao ridículo. Em 1917 estava em andamento a Primeira Guerra Mundial, um conflito bélico inter-imperialista que desgastou ao extremo as classes dominantes europeias e seus respectivos governos, levando também os grandes partidos operários social-democratas a uma crise sem precedentes, devido a sua traição ao garantirem apoio aos governos burgueses durante a guerra. Essa combinação de eventos gerou situações pré-revolucionárias e mesmo revolucionárias em vários países, especialmente na Alemanha e na Rússia. A classe operária e as massas populares da cidade e do campo entraram efetivamente em cena, revelando um quadro de violento acirramento da luta de classes. Tal situação propiciou um rápido deslocamento à esquerda do movimento de massas, favorecendo a atuação do setor que não se rendeu a política traidora da social-democracia.
De similar à conjuntura de 1917, só temos hoje a escalada dos conflitos inter-imperialistas, mas obviamente ainda não chegamos ao ponto da crise provocada pela guerra de 1914-1918. Não existe um desgaste extremo dos governos burgueses, o movimento de massas não está se deslocando para a esquerda, muito menos estamos vivenciando situações pré-revolucionárias ou revolucionárias em vários países. Pelo contrário, infelizmente estamos diante de uma brutal ofensiva burguesa contra os trabalhadores e as massas populares. A situação de crise capitalista move as burguesias a atacarem todas as conquistas sociais e trabalhistas arrancadas pelas lutas operárias no século passado, enquanto o proletariado ainda não logrou superar as lutas parciais e defensivas frente a esses ataques e passar a uma contra-ofensiva na luta de classes. Portanto, podemos concluir que vigora uma situação não revolucionária, de estabilidade do regime político burguês na esmagadora maioria dos países, incluindo aí as grandes potências em conflito.
Outra constante nessas elucubrações do oportunismo é equiparar os golpes de Estado perpetrados por forças reacionárias ao longo da História, com o fortalecimento atual da extrema-direita no âmbito dos regimes democráticos-burgueses. A primeira comparação absurda é a tentativa golpista de Kornilov contra o governo Kerensky no final de agosto de 1917. Neste episódio, os bolcheviques tomaram a frente da resistência política e militar que paralisou e desmontou a marcha do exército comandado por Kornilov em direção a Petrogrado. O que nem de longe se assemelha com apoiar eleitoralmente coligações sociais-liberais nas disputas com os partidos da extrema direita.
A tática de frente única dos bolcheviques, em agosto de 1917, abriu caminho para a revolução dois meses depois. Já o apoio eleitoral aos candidatos da democracia burguesa, só tem provocado desmoralização e enfraquecimento do movimento proletário. Na sequência do apoio nas eleições, ainda com a desculpa da ameaça fascista, logo evoluem para o respaldo e participação nos governos burgueses. A medida que esses governos seguem na trilha da ofensiva burguesa contra os trabalhadores, privatizando, arrochando, retirando os poucos direitos que restam e reprimindo as greves e mobilizações, o caminho da extrema direita é facilitado.
A política dos revolucionários liderados por Lenin em 1917 não tem como ser confundida com o que defendem hoje esses auxiliares das classes dominantes. A democracia burguesa e o capitalismo em crise são os verdadeiros pais da extrema-direita. As medidas antidemocráticas e antipovo votadas nos parlamentos, sacramentadas pelo judiciário e aplicadas pelos governos de plantão, são o programa de ação concreto das facções burguesas, sejam elas sociais democratas, conservadoras, liberais ou de extrema direita. Essas facções concordam no atacado e divergem apenas no varejo. As táticas de combate do proletariado, devem e precisam ser flexíveis, mas não podem servir para reforçar nossos inimigos e desmoralizar nosso exército. Quando isso acontece, as táticas estão contrariando a estratégia e caminhando na direção contrária da revolução.
Os usos e abusos de Lenin são recorrentes há um século. Mas a luta de classes é implacável e os seus desenvolvimentos nos fornecem maiores possibilidades para desmascarar concretamente essa malta de oportunistas e impostores.
Oportunistas, deixem Lenin em paz!
*Ney Nunes, eletricista, bancário, foi militante sindical, ex-dirigente do PCB e autor do livro "Guerra de Classes": https://clubedeautores.com.br/livro/guerra-de-classes.
Edição: Página 1917
"Lenin continua a ser citado por inúmeros oportunistas, na tentativa de camuflar com verniz de esquerda as mais torpes e escabrosas manobras políticas. Manobras estas, em geral, visando sempre colocar o proletariado a reboque dos interesses burgueses". Parece que estou lendo o próprio Lênin em "Imperialismo" denunciando os inimigos da classe que manobravam para se respaldarem na obra de Marx. Teremos que lidar com isso enquanto houver luta de classes.
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