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quinta-feira, 31 de março de 2022

Cartas de um Torturado*

 

Marco Antônio Tavares Coelho foi preso em 18 de Janeiro de 1975, através das cartas dirigidas a sua esposa, escritas alguns meses após a sua prisão e enviadas às escondidas para fora do presídio, o ex-deputado cassado e dirigente do PCB revela as barbaridades cometidas pelos psicopatas a serviço da burguesia brasileira e do imperialismo norteamericano após o golpe de 1964.

Decorridos 58 anos do golpe que resultou na ditadura empresarial-militar, não devemos esquecer de que ao menor sinal de ameaça aos seus privilégios de classe, a burguesia e o imperialismo não hesitarão em mais uma vez apelar para as suas bestas feras mantidas no aparelho policial-militar.

 

Marco Antônio Tavares Coelho**

 

Marco Antônio Tavares Coelho

     [...] Fui preso às 11 horas da manhã, no dia 18, na esquina da Adolfo Bergamini com Dias da Cruz, no Engenho de Dentro. Ia tranquilo para mais um “encontro”, como fiz centenas de outros, em 11 anos, de 1964 para cá. A pessoa com quem iria estar, havia sido detida dias antes. Mas, levaram-na ao local para que minha prisão se desse de qualquer jeito. Possivelmente tiveram receio de não me identificar.

[...] Voltando aos fatos, depois de alguns minutos jogaram-me num fusca, algemaram-me e colocaram-me um capuz. Um dos captores foi me dando bons socos. Estava com raiva pelo pequeno escândalo que eu havia armado. No Volks fui meditando. A prisão não me surpreendeu. Durante onze anos sempre previ essa possibilidade. Fui me educando também para tal eventualidade. Logo antevi as torturas que me aguardavam. Além disso, meditava que aquele fato (a prisão) iria mudar total e radicalmente a minha vida. Aliás, logo passei a considerar como um dado líquido e certo que eu seria morto. Pois não haviam assassinado outros dirigentes comunistas?

[...]Esse foi o sinal verde para o início da pancadaria. Três ou quatro deles, não sei bem, começaram a pancadaria. Por todos lados eu recebia socos, chutes e cacetadas. Meia hora depois caí no chão, cobrindo a cabeça com os braços. Foi inútil. Então ligaram fios que transmitiam choques elétricos nos meus pés. Acionavam a “máquina de choque”, exigindo que me levantasse. Não tinha outro recurso senão erguer-me. Aí recomeçavam a espancar. Tornava a cair. Mas os fios estavam ligados e recebia mais choques. Duas horas depois (esse cálculo de tempo é, evidentemente, apenas uma suposição) caí desacordado. Vim a retomar os sentidos numa cela, deitado no cimento.

 [...]Voltemos à descrição das torturas no Rio. Perdoe-me falar de coisas que sei irão feri-la. Mas sou forçado a tanto, para deixar documentado o que houve. A cela em que me colocaram deve ser subterrânea, ou num porão. Sua dimensão é, mais ou menos, de dois metros por dois. Sem a menor janela ou qualquer abertura para fora, além da porta. Essa é de aço, com um visor que permite o controle do preso pelo lado de fora.

      O chão é de cimento áspero. Nela não havia colchão, travesseiro ou uma folha de jornal. Total e absolutamente nua. E eu nu dentro dela. O ar deve entrar por algum conduto apropriado. Suas paredes e o teto são pintados de preto. Possui um sistema de iluminação forte, acionado no corredor externo de acesso. A porta de aço assemelha-se a uma porta de geladeira, a fim de não permitir a passagem de som, pois a cela é o local da tortura. A escuridão é total, quando apagam as luzes. Verdadeiramente, é uma cova ou uma masmorra medieval, mas dotada de requintes ultra-modernos, como o sistema de entrada de ar, a porta e a iluminação.

[...] A rotina – dia e noite – não existe quando nela se é jogado. A coisa se divide em escuridão total, para o preso se refazer um pouco, a fim de depois apanhar mais; e a iluminação forte na hora da tortura. Horas, minutos, segundos, ali não têm existência. Espaço, horizonte, tudo isso é besteira. Vegeta-se como uma cobra presa em caixote hermeticamente fechado, destinada ao Butantã, para dela se extrair veneno.

Nem água, nem pão. Nem urinol. É uma câmara de execução em que só se pensa na morte. Dentro dela o preso só lastima uma coisa: o “diabo” do corpo continua aguentando.

[...]As torturas na cela foram várias. Cinco vezes colocaram-me no “pau-de-arara”, horas longas de “choques”; cauterizadores queimando partes mais sensíveis do corpo. Mas antes, exigiram que eu colocasse o capuz e uma espécie de quimono de judô, de brim forte. Razão dessa “roupa”: por ela me seguravam para jogar-me com mais força nas paredes de cimento; nu era mais difícil, pois o corpo escorregava das mãos deles, porque vivia molhado de suor. De todos os lados recebia murros e pontapés.

[...]Como não havia nem um urinol na cela, urinei e defequei ali mesmo. Mas como rolava pelo chão e a escuridão era absoluta, fiquei lambuzado, da cabeça aos pés, em minha própria merda.

[...]Chegando ao quartel da rua Tutóia, levaram-me para o que vim a saber ser uma cela especial, das três que lá existem. São de tamanho normal (2x3m), sem instalações sanitárias. Tem uma janela gradeada e uma porta de aço. Nela existia um colchão imundo, sem nenhum travesseiro ou coberta. Não consegui dormir, as dores não permitiam. (Numa dessas celas é que foi colocado o corpo de Vladimir Herzog, morto na Oban, para simular suicídio.)

     Bem cedo, encapuzaram-me e fui conduzido para a sala de torturas, no prédio principal do DOI, onde “morei” por vinte dias.

     [...]Retiraram o capuz e vi-me colocado diante da figura mais sádica dos sádicos do DOI – o “doutor Homero de Sousa”. Esse nome é evidentemente falso. O “doutor” corre também por conta do disfarce. Na verdade, é oficial do Exército. Fisicamente forte, só fala com ódio e de seus olhos injetados expele raiva.

    [...]Logo de saída, no dia 21, penduraram-me no “pau-de-arara” por um tempo incalculável. Urrava pela dor na espinha. Colocaram-me, então, um pano na boca, para abafarem meus gritos. Lá pelas 11 horas, calculo, o “doutor Homero” desceu-me do “pau-de-arara” pelo método do “carrossel”. Ou seja, ele mandava que uma das pontas do ferro (que me mantinha suspenso) fosse posta no chão. Davam-me um empurrão e meu corpo girava em torno do ferro, até chegar ao piso. Como resultado, além de ficar momentaneamente tonto, o atrito na barriga da perna (que estava comprimida pelas amarras) provocou feridas dolorosas, cujas cicatrizes são visíveis até hoje, seis meses depois.

     [...]Três dias depois fiquei como um lunático. Só conseguiam me manter desperto com as “máquinas de choques”, com água fria que me jogavam (no décimo dia deixaram que eu tomasse banho, pois fedia e o banho me despertava) e com amônia aplicada nas narinas. De vez em quando alguns torturadores deixavam que eu dormisse uns 10 ou 15 minutos sentado no tamborete duro, ou semideitado no chão, porque as feridas nas nádegas não possibilitavam que ficasse sentado por muito tempo. É incrível, quando sempre fui um chato para dormir, a necessidade obrigo-me a dormir num tamborete duro, 10 a 15 minutos, a dormir sem colchão, no piso duro e frio. Vem a ser uma das formas mais monstruosas de flagelo essa de impedir-se por vários dias alguém de dormir. Só isso deixa a pessoa alucinada.

     [...]Como contei, a tortura da sede foi também monstruosa, dado o fato de fazer muito calor em São Paulo naqueles dias de janeiro e fevereiro. Eu sempre estava sedento. Possivelmente contribuía para isso o fato de perder muita água durante as torturas, pois o suor escorria de meu corpo. Ademais, um auxiliar da carceragem disse-me que, às vezes, recebiam a orientação de salgar um pouco a água. Eu acredito nisso, porque a água (o pouco que me permitiam beber) era salobra. Por tudo isso é que tive de roubar um pouco de água num urinol sujo.

(Não esclareci nesta carta para minha mulher detalhes mais humilhantes desse episódio. Na verdade, eu havia defecado nesse urinol, mas como nele colocavam água, para facilitar a limpeza, afastei com a mão as fezes e fui bebendo a água misturada com a urina)

     [...]Depois de preso à “cadeira do dragão”, inteiramente nu, molhavam meu corpo com uma salmoura. Acendiam dois holofotes fortíssimos e aguardavam que o sal na pele começasse a queimar. Uma hora depois, a dor era já insuportável. Soltava então berros de dor. O interrogador chegava e sadicamente perguntava: “Já virou churrasco? Então, vamos começar o interrogatório.”

*Herança de Um Sonho; Marco Antônio Tavares Coelho; Editora Record; 2000.

** Marco Antônio Tavares Coelho (Belo Horizonte, 31/05/1926 - São Paulo, 22/11/2015)

Na década de 40, participou intensamente da política estudantil como secundarista e, depois, na Faculdade de Direito de Minas Gerais. Foi secretário da União Estadual dos Estudantes (UEE) e, em 1943, ingressou no Partido Comunista Brasileiro — então Partido Comunista do Brasil (PCB). No ano seguinte foi designado dirigente regional do partido, e depois secretário estadual.

Formou-se em 1948, e em 1953 saiu de Minas Gerais, passando a trabalhar clandestinamente pelo PCB. Membro da seção de educação do comitê central do partido, militou como professor em escolas de formação de quadros para o PCB nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco, até 1958.

Em 1959 foi encarregado pelo PCB de organizar e dirigir um escritório de assessoria parlamentar, com o intuito de apoiar os parlamentares com tendências políticas nacionalistas eleitos no ano anterior. Sobre esse período, Marco Antônio declarou ter mantido contatos mais freqüentes com Bocaiúva Cunha, Renato Archer, Almino Afonso, Valdir Pires, Temperani Pereira e San Tiago Dantas. Em janeiro de 1962, acompanhou San Tiago Dantas, então ministro das Relações Exteriores do governo João Goulart, a uma reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA) em Punta del Este, no Uruguai.

Em setembro de 1960 participou, no Rio de Janeiro, do V Congresso Nacional do PCB, ocasião em que foi eleito membro efetivo do comitê central do partido. Nesse mesmo ano viajou a Cuba, para o Congresso da Juventude do Partido Socialista Popular.

Por ocasião da renúncia do presidente da República Jânio Quadros (25/8/1961), apoiou a campanha pela posse de seu substituto legal, o vice-presidente João Goulart, cujo nome fora vetado pelos ministros militares. No pleito de outubro de 1962, elegeu-se deputado federal pelo estado da Guanabara na legenda da Frente Popular, constituída pelo Partido Social Trabalhista (PST) e o Partido Social Democrático (PSD). Na propaganda eleitoral, era apresentado como o nome indicado pelo dirigente comunista Luís Carlos Prestes, aparecendo claramente como candidato do PCB na Guanabara. Empossado em fevereiro de 1963, foi vice-líder do PST durante a legislatura.

Com a instauração do regime militar em março de 1964, que depôs o presidente João Goulart, passou à clandestinidade. Teve o mandato cassado e os direitos políticos suspensos no dia 10 de abril, com base no Ato Institucional nº 1, decretado na véspera pelo autodenominado Comando Supremo da Revolução. Em 1965, durante a conferência estadual do PCB em São Paulo, foi eleito para a direção estadual do partido. No mesmo ano foi indiciado no processo das “cadernetas de Prestes”, resultado da apreensão, pela polícia, de documentos do secretário-geral do PCB nos quais constavam nomes de políticos que teriam feito acordos eleitorais com os comunistas visando ao pleito de 1965.

Em julho de 1966, publicou na Revista Civilização Brasileira o artigo “Causas da derrocada de 1º de abril de 1964”, sob o pseudônimo Assis Tavares. Em dezembro do ano seguinte, foi reeleito membro do comitê central do partido durante o VI Congresso Nacional do PCB, realizado clandestinamente em São Paulo. Ainda em 1967, compareceu à reunião do comitê central que decidiu pela expulsão de Carlos Marighella, Joaquim Câmara Ferreira e Manuel Jover Teles do PCB. Também participou, como delegado, da Conferência Mundial dos Partidos Comunistas, em 1968, e em 1971 foi eleito, em reunião do comitê central no Rio de Janeiro, membro da comissão executiva, no cargo de secretário nacional de Finanças.

Durante os 11 anos em que permaneceu na clandestinidade — de 1964 a 1975 —, utilizou os codinomes “Jacques”, “Jacques Bandeira”, “Carlos Bandeira”, “Alcides Violim” e “Oliveira”. Em 18 de janeiro de 1975 foi preso no Rio de Janeiro, em meio a operações policiais que desbarataram gráficas clandestinas do jornal Voz Operária, órgão oficial do PCB. Foi acusado de tentar reorganizar o partido e apontado como responsável pelos setores de finanças e de agitação e propaganda. Sua prisão ocorreu durante uma grande escalada repressiva desencadeada contra o PCB, que se estendeu até o início de 1976, atingindo centenas de militantes e vários dirigentes. Dez membros do comitê central do partido desapareceram entre 1974 e 1975 e são considerados mortos pelos órgãos de repressão, embora o governo nunca tenha admitido o fato.

Sua mulher, Teresa de Castro Tavares Coelho, denunciou, em carta ao presidente da República Ernesto Geisel (1974-1979), as torturas sofridas pelo ex-deputado nas dependências do Departamento de Operações Internas (DOI) do II Exército, em São Paulo. No dia 27 de fevereiro de 1975 a Rede Globo de Televisão exibiu um filme, tomado à distância, em que Marco Antônio aparecia caminhando no pátio da prisão, numa tentativa de negar as torturas. Três dias depois o ministro da Justiça, Armando Falcão (1974-1979), divulgou nota oficial garantindo que o ex-deputado nada sofrera nas dependências do DOI. A nota tinha por base um laudo pericial assinado pelos médicos legistas Harry Shibata e Paulo Augusto de Queirós Rocha, que “atestaram a plena integridade física do examinando”. No dia 25 de abril a imprensa divulgou depoimento prestado por Marco Antônio ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) paulista, em que revelava o apoio do PCB a 23 candidatos do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) na campanha eleitoral de 1974. Confessava também que o PCB recebia recursos do exterior e desenvolvia intensa atividade partidária em empresas estatais como a Petrobras, a Estrada de Ferro Central do Brasil e a Estrada de Ferro Leopoldina.

Em maio do mesmo ano, ao ser apresentado à Justiça Militar, mostrou aos juízes as marcas e cicatrizes provocadas por torturas. A pedido do seu advogado, Mário Simas, o juiz-auditor determinou a realização de novo exame de corpo de delito. Essa segunda perícia, assinada por dois oficiais-médicos do Exército em 12 de junho de 1975, constatou os traumatismos que o primeiro laudo não apontara: 20 sinais de lesão, que configuravam a prática de tortura. Em dezembro, foi condenado por um tribunal militar de São Paulo a cinco anos de reclusão e perda dos direitos políticos por dez anos. A principal peça de acusação deste processo foi a apreensão de 60 mil dólares que teriam vindo do exterior, através da Argentina, para custear as atividades do PCB.

Em abril de 1976, encaminhou ao Conselho Regional de Medicina (CRM) de São Paulo uma representação contra Harry Shibata, denunciando a falsidade do laudo médico assinado pelo legista. O CRM-SP abriu inquérito sigiloso, que se prolongou por quatro anos. Em setembro de 1978, o ex-deputado foi novamente julgado, desta vez por um tribunal militar do Rio de Janeiro, sob a acusação de ter participado do VI Congresso do PCB. O tribunal absolveu ou declarou prescritas as penas de 66 acusados, entre os quais Luís Carlos Prestes e Marco Antônio, que continuou preso até 18 de dezembro de 1978, quando obteve liberdade condicional. Em abril de 1980, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), foi beneficiado pela Lei de Anistia decretada pelo presidente João Batista Figueiredo em 28 de agosto de 1979. Em outubro do mesmo ano, com base em sua denúncia, o CRM-SP cassou o registro profissional de Harry Shibata, na época diretor do Instituto Médico Legal (IML) de S. Paulo. A punição não foi, contudo, referendada pelo Conselho Federal de Medicina.

Expulso do PCB por decisão da direção do partido, que reprovou seu comportamento na prisão, passou a dedicar-se ao jornalismo, como colaborador dos jornais Folha de S. Paulo e Gazeta Mercantil, e de publicações da Editora Abril.

Em 1981 mudou-se para Goiânia, onde trabalhou por dois anos no jornal Diário da Manhã. Participou ativamente da campanha eleitoral de Iris Resende Machado ao governo do estado de Goiás, em 1982. De volta a São Paulo, em 1984, foi contratado como jornalista da Empresa Municipal de Urbanização, sendo demitido pelo prefeito Jânio Quadros, em janeiro de 1986. No mesmo ano, foi coordenador de comunicação social do Ministério da Agricultura. Em 1988 passou a trabalhar no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), como assessor do presidente da instituição, Crodovaldo Pavan.

Em 1990 ingressou na Universidade do Estado de São Paulo (USP), trabalhando no Instituto de Estudos Avançados e junto ao gabinete do reitor. Tornou-se editor executivo da revista Estudos Avançados.

Já no governo Fernando Collor de Melo, em 1992, foi colocado em disponibilidade no CNPq e, no ano seguinte, aposentado por limite de idade (65 anos). Permaneceu trabalhando na USP, desempenhando, de abril de 1994 a maio de 1996, a função de assistente acadêmico do Instituto de Estudos Avançados.

Em 2002, recebeu do governo federal uma indenização em reparação aos danos sofridos durante o regime militar.

De seu casamento com Teresa de Castro Tavares Coelho, teve dois filhos.

Publicou em 2000 a autobiografia Herança de um sonho — as memórias de um comunista. Publicou ainda Rio das Velhas – memórias e desafios (2002) e Os descaminhos do São Francisco (2005).

Fonte: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/marco-antonio-tavares-coelho

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