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quinta-feira, 16 de maio de 2024

Os Herdeiros do Austro-Marxismo na Batalha Ideológica

Miguel Urbano Rodrigues*
junho/2002

Trotski é quase cruel ao tentar defini-los: "Estes austro-marxistas não passavam em geral de uns bons senhores burgueses que se dedicavam a estudar esta ou aquela parcela da teoria marxista como podiam estudar a carreira do Direito, vivendo agradavelmente dos juros de ‘O Capital’". Diferentes, coincidiam num sentimento: todos temiam a revolução cuja apologia faziam nos seus brilhantes trabalhos.

 


Miguel Urbano Rodrigues
Miguel Urbano Rodrigues


Está na moda, em determinados meios intelectuais, a campanha para renovação do marxismo. Sendo o marxismo, na fidelidade ao pensamento de Marx, um sistema que exige permanente renovação para manter as suas potencialidades criadoras, esse debate deveria ser saudado como positivo.

Muitos dos que participam nessa campanha perseguem, entretanto, um objetivo oposto ao enunciado. Na prática, assume um ostensivo caráter anticomunista, sobretudo em países onde existem partidos comunistas com forte implantação entre as massas.

A leitura de textos dessa vaga de "renovadores" europeus e latino-americanos, supostamente empenhados em dar um novo impulso ao marxismo e reformar partidos em que alguns ainda militam, fez-me voltar à leitura de textos que lera na juventude.

As analogias históricas na análise política, erigidas em método, sempre se me afiguraram perigosas. Mas o conhecimento dos clássicos do marxismo e das grandes lutas revolucionárias do início do século XX, no quadro em que elas se desenvolveram, bem como as ideias e a personalidade dos protagonistas é indispensável à compreensão do presente.

Vem isto a propósito da releitura que fiz há dias de um livro em que Trotski se pronuncia sobre a fina flor dos intelectuais marxistas que conheceu em Viena pouco antes da Primeira Guerra Mundial.

Pertenço a uma geração de velhos comunistas muito distanciados das teses de Trotski sobre a Revolução Permanente. Admirando o escritor e respeitando o revolucionário, identifico na sua visão voluntarista e prospectiva da história e na sua concepção administrativista do partido uma atitude incompatível com o marxismo tal como o assimilei. O meu distanciamento de Trotski e uma opinião desfavorável sobre o trotskismo nunca me impediram de considerar uma estupidez e uma iniquidade ética e política o apagamento na URSS do nome e da obra do ex-presidente do Soviete de Petrogrado e ex-Comissário da Guerra.

Para mim, nunca foi crime citar Trotski ao encontrar nos seus escritos lições úteis. É o caso do capítulo do seu ensaio autobiográfico – "Mi Vida"- em que relata o efeito de choque produzido pelo descobrimento dos principais dirigentes da social democracia austríaca , que na época se assumia como marxista.

Em meia dúzia de páginas, retrata Otto Bauer, Carlos Renner, Max Adler e Victor Adler. "Eram - escreve- pessoas extraordinariamente cultas, que sabiam bastante mais do que eu de muitas coisas".

Na primeira reunião em que participou com eles no Café Central de Viena, a sua sensação foi de deslumbramento. Acompanhou a conversa quase com "devoção". Mas depois o interesse foi superado pelo assombro. Percebeu que aqueles talentosos intelectuais não eram revolucionários: "encaravam o tipo de homem que é precisamente o oposto ao revolucionário".

Os austro-marxistas eram narcisos que se contemplavam com orgulho; vibravam com o esforço teórico produzido. Conhecedores profundos das obras de Marx e Engels, exegetas de "O Capital", os marxistas vienenses eram "completamente incapazes de aplicar o método de Marx aos grandes problemas políticos e sobretudo ao seu aspecto revolucionário". Escreviam magníficos artigos, reveladores da sua erudição, mas não iam além da assimilação passiva do sistema.

Os Herdeiros do Austro-Marxismo na Batalha Ideológica
Leon Trotsky, o fundador do Exército Vermelho.


Trotski é quase cruel ao tentar defini-los: "Estes austro-marxistas não passavam em geral de uns bons senhores burgueses que se dedicavam a estudar esta ou aquela parcela da teoria marxista como podiam estudar a carreira do Direito, vivendo agradavelmente dos juros de ‘O Capital’". Diferentes, coincidiam num sentimento: todos temiam a revolução cuja apologia faziam nos seus brilhantes trabalhos.

Nos anos que precederam a guerra começaram a sentir-se mal quando a possibilidade de ruptura da velha ordem que combatiam com palavras deixou de ser encarada como utopia. A guerra secou-lhes as gargantas e desviou-lhes o rumo e o significado dos escritos. Depois, a Revolução Russa assustou-os. Tomaram dela prudente distância.

Que diferença, comenta Trotski, entre aqueles senhores, aristocratas do pensamento que gostavam de ser tratados pelos operários por "camarada herr doktor" e a simplicidade revolucionária de Marx e Engels, que "sentiam um sereno desprezo por tudo o que fosse brilho aparente, pelos títulos, pelas hierarquias". Nada do que era humano os deixava indiferentes, mas pairavam acima das ambições temporais, do circunstancial da política, das contingências da história.

Em Berlim, Trotski registou que a social democracia alemã diferia da austríaca. Fazia-se sentir o peso de personalidades como Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht e mesmo o velho Bebel. Mas Kautsky ,o "papa da II Internacional" ,como lhe chamavam, envelhecera, acomodara-se. Tratava de vulgarizar o marxismo como um mestre–escola, impondo-se já como única missão conciliar o reformismo com a revolução. Não escondia "a sua aversão orgânica a tudo o que significasse transplantar métodos revolucionários para solo alemão".

O processo de revisão manipulatória do marxismo, iniciado por Edward Bernstein (Cavaco Silva confessou ser seu grande admirador), assente na premissa de que o movimento é tudo pelo que a revolução seria desnecessária e aberrante, contaminava muitos dos dirigentes, contendo o ímpeto do partido, tornando-o quase inofensivo .

Trotski recorda que enquanto Rosa e ele participaram como militantes numa grande manifestação de massas em Berlim, Kautsky optou por assistir como mero espectador. Entre ele e o sentir do proletariado revolucionário surgira um abismo.

Durante a ditadura dos generais, trabalhei no Brasil com duas ou três gerações de intelectuais de esquerda que então se diziam marxistas. A maioria galopou para a direita. Atualmente, muitos defendem a globalização capitalista,como o presidente Fernando Henrique Cardoso, o ex-príncipe da Sociologia Marxista, pai da teoria da dependência, hoje por ele renegada.

Na Europa, pululam entre os críticos do neoliberalismo sacralizado e do hegemonismo imperial dos EUA reformadores da sociedade capitalista cujo único denominador comum é uma aversão insuperável ao comunismo como projeto, mesmo remoto, de um mundo futuro, longínquo .Uns dizem ser marxistas, outros não.

Faz oito anos, fui em Pontevedra com Boaventura Sousa Santos, um dos participantes num Seminário promovido pela Aula Castelão de Filosofia. O tema era a Democracia no mundo que emergia da Guerra Fria, da Descolonização, do desaparecimento da União Soviética.

Recordo que Boaventura, numa mesa redonda final, depois de expressar a sua inaceitação do leninismo, sublinhou que a postura crítica que assumia perante a obra teórica de Lenine e a intervenção na história do grande revolucionário russo não implicava uma rejeição global do marxismo. Para ser mais explícito, informou que admirava os austro-marxistas.

Foi breve a minha réplica. Lembrei-me dos Adler, de Otto Bauer e também do alemão Bernstein. Achei oportuno o esclarecimento; demonstrava, afinal, o óbvio. "Você, Boaventura – comentei - deixou tudo muito claro. Em Lenine não aprecia o revolucionário. Aqui, poucos dos presentes, admito, leram os austro-marxistas. Mas por que os admira você? Porque não foram revolucionários, porque nunca constituíram ameaça para o sistema. Eram inofensivos".

Incontáveis vezes ao longo da vida, sobretudo durante os anos do exílio brasileiro, nas décadas em que a América Latina foi um efervescente laboratório ideológico, intervim no debate travado em torno do binômio antinômico reforma ou revolução.

O tema voltou a ser atual, embora o interesse da discussão seja inseparável da recusa de paralelos descabidos e da consciência de que o contexto histórico é profundamente diferente do anterior. Não será com citações de Rosa Luxemburgo e Bernstein, fundamentando o discurso em situações históricas e sociais da época, que o debate poderá adquirir hoje significado e utilidade.

O mundo contemporâneo, hegemonizado pelas globalização neoliberal é uma herança do capitalismo reformado. Mas neste início do século XXI, a idéia de revolução, a fronteira entre o reformismo revolucionário e as reformas de defesa do capitalismo são outros, inimagináveis na época da Revolução de Outubro.

A correlação de forças existente na Terra, submetida a um sistema de poder que desenvolve uma estratégia fascistizante, agressiva e irracional, de dominação planetária não permite sequer prever como e quando surgirão condições para rupturas revolucionárias que ponham fim ao flagelo do capitalismo desumanizante. Mas a nossa incapacidade para definir sequer os contornos que assumirá o socialismo futuro, não impede, antes exige, a condenação firme das campanhas desenvolvidas por aqueles que, invocando farisaicamente a necessidade de renovar o marxismo, se empenham, através de um discurso confusionista, -imitando o que aconteceu na Itália e está a ocorrer em França – em dividir partidos que não renunciaram ao marxismo-leninismo, criando condições para o lançamento de pontes que levem à sua descaracterização e posterior assimilação pelo sistema dominante.

Portugal é, no momento, exemplo desse fenômeno político como palco de um espectáculo no qual não faltam cenas de estridências shakespeareanas, que os revolucionários de outros países, por desinformação, acompanham mal.

Modernas caricaturas dos austro-marxistas do começo do século, os encenadores portugueses da peça em exibição têm de comum com os Adler, os Bauer e os Renner –sem o seu talento, cultura, desambição pessoal e sentido da ética política- a aceitação inconfessada da ordem capitalista, a recusa de identificar no povo o sujeito da história e o temor mal consciencializado da intervenção das massas rumo a rupturas (embora distantes) que abalem os alicerces da engrenagem capitalista . Não são marxistas esses dirigentes com rótulo de "renovadores". Nunca foram comunistas. Não é o cartão de um partido que faz o revolucionário, sequer a passagem pela Comissão Política do seu Comitê Central.

É minha convicção que aquilo que está em discussão nestas semanas no Partido Comunista Português merece ser acompanhado com atenção pelos partidos, organizações e movimentos de esquerda de todo o mundo.

* Nascido em Moura, 2 de agosto de 1925, Miguel Urbano Tavares Rodrigues, foi um jornalista e escritor português, e redator do Diário de Notícias entre 1949 e 1956, chefe de redação do Diário Ilustrado (1956 e 1957), antes de se exilar no Brasil, onde foi editorialista principal de O Estado de S. Paulo (1957 a 1974) e editor internacional da revista brasileira Visão (1970 a 1974).
Regressado a Portugal após a Revolução dos Cravos, foi chefe de redação do Avante! em 1974 e 1975 e diretor de O Diário entre 1976 e 1985. Foi ainda assistente de História Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1974-75), presidente da Assembleia Municipal de Moura em 1977 e 1978, deputado à Assembleia da República pelo PCP entre 1990 e 1995 e deputado às Assembleias Parlamentares do Conselho da Europa e da União da Europa Ocidental, tendo sido membro da comissão política desta última. Tem colaborações publicadas em jornais e revistas de duas dezenas de países da América Latina e da Europa e é autor de mais de uma dezena de livros publicados em Portugal e no Brasil.

Edição: Página 1917


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