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quinta-feira, 9 de março de 2023

O grito de Lula

Nildo Ouriques*

23/02/2023


BC nas mãos dos banqueiros e de costas para o povo.

A renuncia do presidencialismo é a nota dominante na atuação de Lula no terceiro mandato. Nos dois anteriores (2003-2010) o atual presidente sabotou diariamente as prerrogativas do regime presidencial brasileiro e, em consequência, cavou o abismo sob seus pés. A continuidade da podridão do sistema político produzido por FHC com a farsa do “presidencialismo de coalisão” seguiu seu curso normal azeitado pelo “financiamento não declarado” das campanhas eleitorais do longo período petista. O postulado vulgar segundo a qual “ninguém governa esse país sem o PMDB” ou “sem maioria no congresso” aprofundou a miséria ético-moral do PT, revelou-se uma falácia completa diante da desmoralizante destituição de Dilma em 2016 e contribuiu notavelmente com a podridão do sistema político acusado pelo protofascista Bolsonaro em 2018.

 A impotência de Lula e dos lulistas diante da grave situação nacional é expressa na enorme quantidade de ministérios criados com a pretensão de ganhar apoio no parlamento, sabidamente um covil de ladrões insaciável e sempre disposto a novos assaltos; ao contrário do engodo petista, o toma lá da cá se realiza sem qualquer garantia de fidelidade. A conduta de Lula alimenta a crise e objetivamente bloqueia a necessária passagem da consciência ingênua para a consciência crítica indispensável para enfrentar a direita. Ao contrário do que pensam os eternos defensores da prudência, a atuação de Lula alimenta tão somente a redução da política à moral (a via filantrópica das chamadas políticas sociais) e move águas para o moinho da ofensiva da direita ainda em curso.


Arthur Lira e Lula: governança burguesa.


 O recente grito de Lula contra as elevadas taxas de juros é exemplar a respeito da conduta vacilante do presidente petista diante de questões cruciais. A despeito da hiper valorização ideológica do papel do Banco Central, a verdade é que o comando da política econômica esta nas mãos do Ministério da Fazenda e, portanto, nas mãos de Lula. Essa é a verdade oculta no “combate” contra a suposta sabotagem do BC ao bem estar do povo sob comando de um eleitor de Bolsonaro.

 Portanto, o grito de Lula – antes de iniciativa contra os banqueiros e as escorchantes taxas de juros! – exibe a impotência completa e a vacilação que é a antiga conselheira do presidente e marca registrada de seu governo. A reclamação de Lula contra a taxa de juros é impotente e não cria um fato político como defende com inocência os “radicais” da esquerda liberal lulista (dentro e fora do PT). Há poucos dias ouvi mais um novo esforço para santificar a impotência presidencial e justificar a imobilidade de seu governo nas questões estruturais, as únicas que podem, finalmente, assegurar uma molécula de estabilidade no interior da atual crise ainda sem solução visível. A nova tirada da sociologia de boteco ensina que “Lula é o personagem mais a esquerda de seu governo” (!!) Ora, qual a racionalidade da boa nova? É simples: os ideólogos lulistas na mais completa solidão esquecem que é o próprio Lula quem nomeia “a direita” de seu governo. Afinal, quem nomeou, por exemplo, Camilo Santana, responsável pela completa direitização do MEC na política educacional? Acaso foi o espirito santo ou a caneta do presidente? É realmente impressionante ouvir asneiras desse quilate nas atuais circunstâncias!

 A defesa do crescimento econômico – com emprego e distribuição de renda – é o argumento central de Lula diante das elevadas taxas de juros. É também dos desenvolvimentistas. Nenhum deles, no entanto, pode explicar porquê a concentração da renda e da propriedade cresceu nos dois primeiros mandatos do atual presidente. Ora, políticas sociais não necessariamente tocam na riqueza acumulada e podem inclusive caminhar par e passo com nível superior de concentração e centralização do capital. De fato, foi o que ocorreu entre 2003-2010 quanto a taxa de juros caiu de pouco mais de 26% em janeiro de 2003 para apenas um dígito (9,25%) em meados de 2009. Ainda assim, não somente a riqueza ficou mais concentrada como a coesão burguesa sob comando da fração financeira ficou muito mais forte! Durante o período de bonança de Lula, todas as contradições e antagonismos próprios do desenvolvimento capitalista dependente rentístico estavam se desenvolvendo para, mais tarde, explodir nas mãos de Dilma Rousseff.

 Até agora, Lula não disse como produzir crescimento e distribuição de renda. Nem Haddad. Ao contrário, a chamada “agenda econômica” segue a partitura dos “neoliberais” e nem mesmo em sonhos dourados os keynesianos amigos do Príncipe estão dispostos a romper com as amarras da economia política rentista armada em 1994 e desenvolvida a pleno vapor durante os sucessivos governos petistas. A ladainha segue intacta: reforma tributária, sustentabilidade ou ancora fiscal, a importância do investimento externo com preocupações ambientais, etc… Não há – nem poderá existir – uma estratégia de industrialização sem a completa ruptura com a economia política do rentismo, pois Lula opera sempre na fronteira do permitido pela coesão burguesa sem jamais romper seus limites. Enquanto isso, o tempo passa…

 O “debate” atual sobre a política monetária dirigida pelo BC ilustra como nenhum outro tema a renuncia dos poderes presidenciais praticado sistematicamente por Lula. A terceirização da responsabilidade é vicio suicida adquirido por Lula há tempos: “o congresso precisa autorizar!”. “Ah, a imprensa precisa mudar!!” “O fascismo precisa ser enfrentado”… Ah, Bolsonaro!!! Todos bordões que antes de mobilizar são confissões de impotência!

 A situação atual permite – eu diria que exige – uma simples convocatória do presidente: antes de gritar contra os juros deveria pedir a troca do presidente do Banco Central. Ousadia: Nada! Ação bem elementar. Elementar eu disse, não parlamentar!

 Quais as razões para pedir a cabeça de mister Campos Neto?

 A primeira razão para a substituição do atual presidente do BC é a absoluta falta de condições éticas e morais do Mister Campos Neto. Em outubro de 2019 o Pandora Papers revelou que mister Guedes e seu discípulo Campos Neto mantinham contas bancárias no exterior. No dia 4 de outubro de 2019 mister Campos Neto se “defendeu” da gravíssima revelação afirmando que tudo estava declarado no Imposto de Renda ocultando a questão efetivamente central: um presidente do BC mantém informação privilegiada incompatível com suas operações de “mercado”. Nos Estados Unidos – o país que oferece a régua ético-moral dos rentistas – Richard Clarida (um dos vice-presidentes do FED) teve que anunciar sua precoce renuncia em janeiro de 2022 após suspeitas gravíssimas de movimentação financeira baseadas em informação privilegiada.

 Há algo mais valioso que emergiu na primeira semana de fevereiro de 2023. O ministro Gilmar Mendes do STF colocou sobre a mesa de mister Campos Neto outro tema tão antigo quanto espinhoso: a compra e venda de ouro realizada pelo Banco Central. As denuncias na imprensa burguesa sobre a extração ilegal de ouro são antigas e há muito mereciam uma explicação oficial. No entanto, a cobertura jornalística sobre o tema enfocou apenas a perspectiva da ilegalidade da extração do mineral e a íntima relação com a invasão das terras indígenas liberadas na pratica pelo governo do protofascista Bolsonaro. O enfoque, digamos assim, era “ambiental” ou “ecológico”. Na verdade, ninguém se atreveu em indicar a íntima relação entre a crise humanitária dos Yanomamis com o Banco Central, exceto de maneira super cautelosa. A CNN, por exemplo, noticiou há mais de um ano (14/08/21) a inusitada elevação das reservas em ouro como assunto estritamente econômico, sem qualquer outra conexão, uma espécie de operação destinada a aumentar as reservas de valor necessárias para tempos de crise.

 Entretanto. a enorme oferta de ouro deve ser explicada e, de fato, é impossível faze-lo sem a liberalização promovida pelo governo de Dilma Rousseff na Lei 12.844 de 19 de julho de 2013. No artigo 39, parágrafo 4, a liberalização petista abre as portas para a legalização do ilegal pois estabelece a “boa-fé” da pessoa jurídica responsável pelas informações sobre a origem do ouro. A lei representa, na prática, a validação de um atestado de boa conduta emitido pelo escritório dos próprios criminosos!

 Após o grito de Lula contras as taxas de juros, a imprensa petista – orwellianamente chamada de “independente” – foi autorizada a atacar mister Campos Neto e relacionar os dois temas. Desde então, a nova abordagem jornalística vincula o aumento das reservas em ouro do BC com a invasão das terras indígenas e a mineração ilegal praticada em larga escala desde muitos anos. Na tradição petista, Lula manteve silencio completo sobre o tema e, para manter a harmonia entre os poderes, delegou a tarefa ao Partido Verde. Assim entendemos a razão pela qual o STF anunciou no dia 31 de janeiro desse ano em seu portal a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) solicitada pelo PV. Em consequência, o ministro Gilmar Mendes não vacilou em solicitar a mister Campos Neto no prazo de três dias, esclarecimentos sobre as operações. Até agora, a imprensa burguesa nada disse sobre o caso e nem um ministro de Lula disse algo a respeito. Silêncio total! Ora, a terceirização do poder presidencial é mais do que óbvio também nesse caso pois Lula renuncia a possibilidade de cobrar diretamente ao presidente do BC explicações que há muito exigem esclarecimentos! A renuncia do presidencialismo custará caro…

 O lulista cativo da consciência ingênua logo dirá que a jogada do presidente foi de mestre: não se compromete com nada e deixa os poderes da república atuar contra seus inimigos. Alega, inocente, que Lula sabe se preservar e esquece que seu agir sabota a autoridade presidencial, além de fortalecer instituições que ao longo da história deram sucessivas demonstrações que não merecem respeito algum…

 A segunda razão para encaminhar a substituição de mister Campos Neto é igualmente importante. A entrevista concedida na TV Cultura dia 13 de fevereiro desautoriza intelectual e profissionalmente o rapaz. O desastre só não foi maior – e sobretudo mais visível – em função da sabedoria econômica dos jornalistas. Ainda assim – com a notável contribuição dos jornalistas – suas respostas estavam peleadas com a realidade e até mesmo com os manuais de macroeconomia sofríveis que dominam o ensino de economia nas nossas universidades. Após aquele espetáculo, não pode existir dúvidas que o “conhecimento econômico” de Campos Neto é pra lá de superficial. Ora, limitado ao “mundo” das teleconferências privadas, de convescotes com operadores dos banqueiros, acostumado as pequenas reuniões com banqueiros e rentistas de toda espécie, dedicado ao modo fácil de enriquecimento das finanças via assalto a dívida pública, a esperteza do aprendiz de feiticeiro foi impotente diante de público um pouquinho mais exigente e aberto a opinião pública. De resto, a conhecida discrição dos banqueiros praticada desde o século XII orienta também a conduta dos diretores dos bancos centrais em todos os países, especialmente na periferia latino-americana; entretanto, após os gritos de Lula, não restou ao neófito senão uma entrevista com a óbvia intenção de buscar um mais que evidente salvo conduto.

 Portanto, não devemos condenar apenas a linguagem tecnocrática do economista responsável pela irritação de muita gente boa nas mídias digitais. É mais grave o caso em análise: os “argumentos” balbuciados por Campos Neto não batem com as condições existentes no Brasil! Ele praticou apenas a visão dos rentistas em estado puro, de maneira tosca e sem habilidade alguma. Repito: o conhecimento em economia e a disciplina servil dos jornalistas o salvaram de um exposição pública realmente triste para qualquer profissional razoavelmente preocupado com a própria reputação e certo desapego com as cifras da conta bancária.

 Portanto, a absoluta falta de ética (revelada no caso das contas no exterior) de Campos Neto e seu despreparo profissional – além de ausência de habilidade política que o cargo requer – são absolutamente suficientes para algo mais eficaz que os gritos de Lula: o presidente deveria determinar a seu ministro e funcionário que  detém maioria no Conselho Monetário Nacional (CNM) a solicitação ao bem afamado senado da republica burguesa, sua imediata substituição. Mas Lula prefere a condição de comentarista de TV antes de honrar seus eleitores e acumular forças para seu bando e, em oposição, prefere agir nos marcos de aliança de classe que mantém a política econômica responsável pela miséria do povo… No Conselho Lula possui maioria e poderia exigir uma justificativa do órgão para substituir mister Campos Neto, indicando claramente que sua gestão não cumpriu as metas estabelecidas, acusando as graves debilidades éticas do presidente do BC e, em consequência, solicitar a manifestação do senado.

 Uma iniciativa presidencial semelhante representaria uma ação a altura do cargo e a manifestação de que o presidente recém eleito atua objetivamente em defesa dos trabalhadores. Ademais, esse ato político permitiria ao povo observar o movimento concreto da coesão burguesa e os interesses reais de cada uma de suas frações. O senado teria que decidir em favor do povo ou dos banqueiros. Até mesmo as pesquisas que embalam a alienação eleitoral da esquerda liberal indicam que 76% consideram correta a posição do presidente sobre os juros mas nem mesmo tal aprovação permitiu um passo adiante… A fidelidade de Lula a coesão burguesa e sua ilusória aliança de classe não permite o passo e, tudo indica, ele morrerá abraçado com ela.

 O atual governo é desenvolvimentista? Bueno, nesse caso, as esperanças de todos os keynesianos tupiniquins deveriam saltar para a primeira fila clamando por um novo ciclo de acumulação em favor… do emprego! A maioria dos críticos heterodoxos do aprendiz Campos Neto ainda segue prisioneira dos formuladores do Plano Real e, em consequência, ainda mantém fidelidade religiosa àqueles postulados. A despeito da realidade, ainda não são conversos! Nesse contexto, a tarefa não consiste na afirmação de um novo “regime fiscal compatível com a política social”, mas, ao contrário, de alinhar a política econômica com o pleno emprego!!


A submissão ao imperialismo prossegue.


 Há poucos dias, na entrevista concedida a jornalista Christiane Amanpour da CNN, Lula afirmou que o informe à nação apresentado por mister Biden no congresso estadunidense poderia ter sido feito no Brasil. O presidente do Brasil escancarou seu entusiasmo com a perspectiva do Partido Democrata nos Estados Unidos no embalo do agringalhamento político e cultural de nosso país. Ora, Biden dourou a pílula diante da crise mundial e utiliza todos os meios existente no Império para disputar a hegemonia com a China no terreno produtivo. No entanto, é visível que seu plano não poderá repetir o “exito” rooseveltiano pretendido quando apenas iniciava seu mandato. A crise é muito grave mas ainda assim ele pode indicar que a taxa de desemprego baixou mesmo que tenha calado sobre os salários miseráveis e o aperto na classe média impossível de remediar nas circunstâncias atuais. Lula não entende o Brasil e nossa condição de país subdesenvolvido e dependente. Ignora algo elementar e seus ministros sequer sonham com nossa “especificidade”, carente de medidas aparentemente muito mais radicais.

 A última reunião do CNM (16/02) entre Simone Tebet, Fernando Haddad e Campos Neto indicou um abismo entre o grito de Lula e as ações de seu governo. Aos poucos, as pequenas vantagens adquiridas com a vitória eleitoral, estão ficando para trás. Ademais, a defesa da democracia não enche a barriga do povo; tampouco gera a coesão social necessária para enfrentar e derrotar politicamente a ofensiva da direita ainda em curso. O “rentismo” não é um adversário fácil de bater, menos ainda com bravatas. É preciso ação sistemática e enérgica, além de mobilização social intensa contra as classes dominantes. Mas esses são artigos em falta no governo.

Nildo Domingos Ouriques (1959) é um economista e acadêmico brasileiro, militante da tendência Revolução Brasileira do PSOL. Foi presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) da Universidade Federal de Santa Catarina e professor de economia na mesma universidade. Ao longo de sua carreira acadêmica, lecionou em instituições de todo o mundo, incluindo a Universidade Nacional de Tucumán na Argentina, a Universidade de Pádua na Itália, a Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), a Universidade Bolivariana da Venezuela e a Universidade Simón Bolívar em Quito, Equador.

Edição: Página 1917

Fonte: https://revolucaobrasileira.org/


 



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