Jacob Gorender
19 de Setembro de 2002
"O Brasil foi o país de mais prolongada escravidão nos tempos modernos. Tivemos 350 anos de escravidão aproximadamente e também fomos os maiores absorvedores de escravos da África."
Família brasileira servida por escravos, Jean-Baptiste Debret, 1830. |
ESTUDOS
AVANÇADOS - Por que a política econômica que regeu o Brasil a
partir da abertura dos portos (1808) pode ser considerada estruturalmente
liberal? O que levou D. João e seu conselheiro José da Silva Lisboa a abrir a
economia ao mercado internacional?
Jacob
Gorender - Quero de início precisar que a economia anterior e
posterior à abertura dos portos, até o fim do século XIX, é definida por mim
como economia escravista colonial. Ou seja, por seu caráter objetivo, deve ser
definida como modo de produção escravista colonial.
Naquele momento, porém, já
havia chegado ao Brasil a influência da teoria econômica liberal que dominou a
Inglaterra no século XVIII e que teve seu expoente em Adam Smith. Essa
influência também vinha da Revolução Francesa, a qual deu fundamento ao lema
Laissez faire, laissez passer, à liberdade de transação, de produção e
circulação. A teoria liberal surgiu e se fortaleceu na Europa em contraposição
aos cânones feudais da monarquia absolutista e isso se fez sentir também no
Brasil.
Os plantadores brasileiros e
os comerciantes radicados no Brasil se mostraram receptivos a essa pregação de
política econômica liberal. E, no caso, José da Silva Lisboa foi coerente com
essas idéias, conhecedor que era de Adam Smith. Quando esteve com o príncipe
regente João de Bragança, no momento em que este aportou em Salvador,
recomendou a abertura dos portos brasileiros.
Devo observar que a abertura
dos portos já vinha sendo uma reivindicação bem anterior. Havia uma pressão dos
plantadores e comerciantes residentes no Brasil pelo rompimento com o monopólio
português.
Portugal cumpria um papel
meramente de intermediário, era um consumidor de importância secundária dos
produtos brasileiros. O que os comerciantes portugueses e a Coroa faziam
consistia em intermediar, receber os produtos brasileiros e depois
redistribuí-los no mercado europeu. Portugal, nessa altura, era uma metrópole
ineficiente, fraca, cujo monopólio deixara de convir aos interesses dos
plantadores e comerciantes. Já havia antes da abertura dos portos um grande
contrabando de mercadorias inglesas, que entravam no Brasil, à margem do
monopólio lusitano. Navios ingleses não tinham dificuldade de chegar ao Brasil
e vender suas manufaturas, que encontravam compradores aqui. A reivindicação era
que cessassem as limitações legais e o comércio se fizesse livremente, o que
interessava à Inglaterra, que fazia pressão para a abertura dos portos. Quando
veio o ato do príncipe regente, correspondeu a uma pressão que ocorria
anteriormente e se concretizou a partir daí.
A influência das ideias
liberais europeias chegou ao Brasil e se adequou a interesses aqui radicados,
expressos naquela circunstância pelo futuro visconde de Cayru.
ESTUDOS
AVANÇADOS - Por que o liberalismo político formal (constitucional)
foi parte integrante do sistema político brasileiro a partir da Independência?
Pode-se sustentar a tese de que as ideias liberais esposadas pelos donos do
poder estariam "fora do lugar" no Brasil do século XIX?
Jacob
Gorender - A partir desse ato, tenho também que acrescentar o
seguinte: a própria Independência do Brasil foi alcançada levantando a bandeira
dos princípios liberais, ou seja, da liberdade política. O que os plantadores e
os comerciantes reivindicavam era o direito de serem representados no Estado,
quer dizer, de terem o seu próprio Estado, que eles próprios controlassem, e
não mais fosse uma peça da política colonial, como vinha sendo.
Essa reivindicação,
fundamental no caso da Independência, foi obtida em 1822, de maneira
incompleta, porque na cabeça do Estado, que então se organizou, estava Pedro I
que, além de português, era voltado aos interesses dinásticos em Lisboa. Como
se sabe, depois que saiu do Brasil em 1831, veio a ser Pedro IV em Portugal. O
Brasil era apenas um trampolim, um degrau para que ele chegasse ao trono de
Lisboa. Já a classe dominante escravista no Brasil queria um Estado todo dela,
no qual fosse perfeitamente representada. Por isso, políticos brasileiros como
José Bonifácio, José Clemente Pereira, Gonçalves Ledo eram constitucionalistas.
A Constituição era a bandeira desses políticos, porque representava a sua
defesa contra um príncipe que não era brasileiro, e que também não estava
inteiramente interessado nas pretensões da classe dominante do Brasil. A
Independência se completa e o Estado se nacionaliza realmente em 1831, quando
Pedro I abdica e vai embora. Aí temos o Estado brasileiro completamente
nacionalizado e compatível com os interesses da classe dominante brasileira.
Não posso considerar que as ideias liberais estivessem fora do lugar. Parece-me
que elas estavam no lugar certo. É evidente que o liberalismo no Brasil não
podia ter a mesma feição que tinha na Inglaterra. E não se podia esperar que
essas ideias nascessem de autores brasileiros, evidentemente estes apreenderam
tais ideias formatadas fora do Brasil. Mas eles as escolheram, elas não vieram
aleatoriamente ao Brasil e não tiveram efeitos inexplicáveis, arbitrários e
deslocados. Estavam no lugar apropriado, reproduziram o que seus defensores
pretendiam. Particularmente, o visconde de Cayru e também outros políticos
brasileiros que já citei. Assim, o sistema político brasileiro a partir da
Independência passa a incorporar as ideias liberais de liberdade de comércio e
de representação política para a classe dominante brasileira. Quero acrescentar
que, no momento em que o futuro visconde de Cayru recomenda a abertura dos
portos, Portugal estava ocupado com o Exército de Napoleão. A abertura dos
portos era algo que tinha de acontecer. Concordasse o príncipe ou não. Ele não
tinha como recuar disso, porque Portugal naquele momento estava impotente e
inerme, dominado pelo Exército napoleônico.
ESTUDOS
AVANÇADOS - Como o liberalismo se ajustou estruturalmente ao
escravismo?
Jacob
Gorender - Em tese, o liberalismo europeu defendeu o trabalho
livre, o mercado de trabalho de assalariados juridicamente livres. Defendeu a
eliminação das injunções feudais, do pagamento da corvéia; enfim, de todos os
tributos característicos do sistema feudal. Mas é preciso lembrar que o próprio
Adam Smith não era contra a escravidão nas colônias. Ou seja, o próprio
liberalismo europeu já nasceu sob esta contradição; mesmo a Revolução Francesa
decretou a libertação dos escravos nas colônias francesas em 1794, mas Napoleão
restabeleceu a escravidão oito anos depois. Ou seja, o próprio liberalismo, inglês ou francês, padeceu dessa contradição,
que talvez não seja uma contradição entre o liberalismo e o escravismo, mas
somente uma incorporação do escravismo como integrante de um sistema colonial. Trabalho
livre na Europa, escravidão nas colônias americanas - tal a ordenação
segmentada, estabelecida pela teoria liberal. Note-se que Thomas Jefferson, um dos principais líderes da emancipação
dos Estados Unidos, foi o redator da declaração da Independência, segundo a
qual todos os homens são iguais. No entanto, Jefferson era grande proprietário
de escravos e não via nisso incoerência, pois julgava os negros pertencentes a
uma raça de inteligência inferior.
Por
fim, mais antigo que o liberalismo europeu é o cristianismo, que também
conviveu com a escravidão. Ela está não só no Velho Testamento (os judeus
tinham escravos, inclusive outros judeus) como está no Novo Testamento: Paulo,
o apóstolo, considerava a escravidão justa quando de acordo com certas regras.
E aqui, no Brasil, a verdade é que o cristianismo se coadunou com a escravidão,
distinguindo-se ao pregar a moderação no trato dos escravos. O
que os jesuítas, em particular, e outras ordens fizeram aqui no Brasil foi
pregar a moderação: não se exceder na extração do trabalho escravo e
particularmente nos castigos. O que tinha o significado de legitimação da
instituição escravista.
A
questão da família escrava
ESTUDOS
AVANÇADOS - Que viabilidade o regime escravista concedeu à família
dos cativos e à reprodução da população escrava?
Jacob
Gorender - Queria partir de uma tese que, tendo uma difusão na
historiografia sobre a escravidão a partir de Gilberto Freyre, sobretudo em
Casa Grande e Senzala, procurou nobilitar a origem racial brasileira,
esforçando-se para demonstrar que a componente africana não deveria ser
considerada depreciativamente. É um mérito dele. Mas, ao mesmo tempo, como
sabemos, Freyre defendeu uma série de teses em sua obra que deram margem, logo
em seguida, à ideia da existência de uma democracia racial brasileira já na
época da escravidão. Além disso, conquanto procurasse dignificar a componente
africana, empenhou-se em demonstrar que a vida cotidiana dos escravos era
dominada pela promiscuidade. Não há vestígios de família escrava em sua obra. O
que há é a família patriarcal dos senhores. Esta, sim, é colocada no pedestal,
inclusive como matriz da formação social brasileira.
Tal visão sobre a vida
promíscua dos escravos africanos, com ausência da instituição da família, foi
encampada por críticos de Freyre, em sua maioria historiadores e sociólogos
paulistas. A verdade é que Florestan Fernandes, Roger Bastide e Emília Viotti
da Costa também defenderam essa visão. A historiadora baiana Kátia Mattoso a
expôs de maneira extrema, levando-a ao absoluto. Florestan, por sua vez,
ressaltou o que chamou de estado de anomia no meio escravo.
O que se dá, então, é que,
posteriormente, os estudos sobre a família de certo modo floresceram na
historiografia. Historiadores como Iraci del Nero da Costa, da Faculdade de
Economia da USP e Robert Slenes, da Unicamp, obtiveram dados documentais sobre
famílias estáveis no meio escravo, as quais formavam redes de parentesco e que
se prolongavam no tempo, passando de uma geração a outra. Assim, quando
encontravam condições favoráveis, evidenciou-se que os escravos optavam pela
constituição de famílias estruturadas e repeliam a promiscuidade sexual.
Contudo, os dados
documentais coligidos a respeito limitam-se até agora à cafeicultura paulista
no Vale do Paraíba e a uma fase de prosperidade e de expansionismo da plantagem
escravista, durante o século XIX. Era, então, do interesse dos senhores
escravistas não só manter, como aumentar os plantéis de escravos. Não seria
contrário aos interesses deles que os escravos formassem famílias dotadas de estabilidade.
Por parte da Igreja, sempre houve o interesse de sacramentar a instituição do
casamento entre escravos do ponto de vista religioso, desde o tempo colonial.
Tanto quanto possível, isso devia operar para a estabilidade matrimonial entre
os escravos ou, pelo menos, não operava em sentido contrário.
De todo modo, faltam dados
sobre a família em outras situações, isto é, fora da área cafeicultora e numa
fase de prosperidade. A meu ver, do ponto de vista geral, a escravidão operou
funcionalmente contra a existência da família, e em sentido contrário a uma
reprodução vegetativa positiva.
Esse fato não é incriminado
pela descoberta de famílias estáveis numa certa, determinada e específica
situação. Trata-se de questão historiográfica controversa.
ESTUDOS
AVANÇADOS - Quais são os historiadores que julgam que não havia a
instituição familiar? O senhor concorda com essa tese? Porque entendo que o
senhor acha que não havia instituição familiar a não ser em raros momentos de
prosperidade.
Jacob
Gorender - Uma família estável e com a incidência relevante
apontada nesses estudos foi algo peculiar. Antes da cessação do tráfico
africano, em 1850, a ocorrência de famílias escravas era ocasional; porém, se
verificava. A negação total da existência da família escrava, como faz Kátia
Mattoso, não corresponde à realidade factual. Esta negação total não é a minha
posição.
ESTUDOS
AVANÇADOS - E há historiadores que fizeram pesquisas nessa linha
de encontrar núcleos familiares?
Jacob
Gorender - Devo mencionar Iraci del Nero da Costa, Robert Slenes,
José Flávio Motta, Manolo Florentino e José Roberto Goés. São autores que
pesquisaram a existência de famílias com redes de parentesco e conseguiram
documentá-lo. Sempre no período de expansão do café. Não temos estudos sobre o
tema com igual fundamento documental nas áreas do açúcar, algodão, tabaco e
pecuária, a não ser informações incidentais.
ESTUDOS
AVANÇADOS - Mas, segundo Gilberto Freyre, que conhecia a situação
de Pernambuco na época do açúcar, não havia a instituição familiar? Ele nega a
estabilidade familiar do escravo?
Jacob
Gorender - Ele não faz referência a famílias escravas. Freyre não
se contrapunha explicitamente à tese da existência da família escrava. O que
sobreleva no caso de Casa Grande e Senzala é a família patriarcal, a família
dos senhores, que, segundo Freyre, teria sido a matriz da unidade nacional.
Entretanto, se não há
referência às famílias escravas, há uma referência destacada à promiscuidade
sexual. Os negros e as negras aparecem em atos sexuais promíscuos entre si e
com os homens livres.
Em sua obra, isto é colocado
como uma grande virtude brasileira, porque teria dado lugar à miscigenação
racial. Freyre fez uma apologia das supostas propensões genésicas dos
portugueses e da sua capacidade de se misturar com os povos de cor, o que já
viria de antes até da descoberta do Brasil.
Essa questão da
promiscuidade entre os escravos se transfere a outros autores historiadores e
sociólogos, cuja posição se opôs à de Gilberto Freyre. São justamente historiadores
e sociólogos paulistas, os quais expõem uma escravidão vil, dura e nada
benéfica para os escravos. Posição contrária à do autor pernambucano, que
sempre tendeu a fazer a apologia de uma escravidão dulcificada, que não teria
sido tão má assim para os escravos.
Mas esses mesmos
pesquisadores, contrários a Gilberto Freyre, se situam a seu lado, quando a
questão se refere à promiscuidade sexual. Menciono-o porque os autores de
estudos sobre a família escrava no meio cafeeiro também citam aqueles nomes.
Tais autores apresentam-se como contestadores da tese da promiscuidade sexual.
Seus estudos são meritórios, mas o que acontece é que ficaram restritos à área
do café na primeira metade do século XIX.
ESTUDOS
AVANÇADOS - Então é uma contestação verdadeira mas, por enquanto,
parcial.
Jacob
Gorender - E, sendo assim, ela não é convincente como tese geral!
ESTUDOS
AVANÇADOS - São necessários novos estudos para completar nas
outras áreas e lá saber qual era a situação da família escrava?
Jacob
Gorender - Na área do açúcar, do algodão, da mineração, e outras
tantas, o que acontecia a respeito.
A contestação da
promiscuidade baseada na existência da família escrava, assim como pretendem os
autores citados, é insuficiente. Essa é a posição que defendo.
Para encerrar esta parte da
nossa entrevista, queria me referir aos fatores contrários à existência de
famílias e que não deixavam de empurrar para uma certa promiscuidade. O
primeiro fator demográfico, característico do escravismo no Brasil, e em outras
partes da América, foi o grande desequilíbrio sexual da população escrava,
derivado do tráfico africano. Isto é incontestável: entravam muito mais
escravos (masculinos) do que escravas.
A razão de masculinidade era
muito alta. Temos usualmente perto de 200 ou 250 escravos para 100 escravas,
nas grandes plantagens. Isto vinha predeterminado pelo tráfico transatlântico.
O que se pode dizer, baseado em muitos testemunhos, é que os compradores e os
plantadores que viriam a ser os exploradores do trabalho escravo, preferiam os
homens, consideravam que estes eram mais eficientes. As mulheres eram
preferidas no trabalho doméstico e em algumas tarefas produtivas da plantagem.
Embora os homens escravos fossem mais caros, eles eram trazidos em maior
quantidade para o Brasil.
O desequilíbrio sexual não
podia deixar de influir na questão das famílias escravas. O que se observa,
mesmo na área do café, é que, com os dados desses mesmos autores que falam da
família escrava, no momento em que eles fazem a pesquisa, verificam que 70 e
poucos por cento das mulheres estavam casadas ou viúvas (consorciadas), mas
somente 30 e poucos por cento dos homens se achavam nessa condição. Está claro
por que dois terços dos homens não encontrariam parceiras para o casamento. Tal
fator era inibidor da existência de uma família escrava estável.
Há outros dois fatores que
influíram negativamente. Um foi o sistema brasileiro de habitação dos escravos
nas senzalas. Homens e mulheres habitavam senzalas separadas, ao contrário do
que acontecia nos Estados Unidos, onde cada família escrava tinha sua cabana
própria. A habitação, separando os homens das mulheres, não poderia favorecer a
estabilidade das famílias escravas. Obviamente, os encontros entre os casais se
davam de maneira furtiva e aleatória.
Outro fator, não o último, é
que a família escrava não tinha proteção legal. A lei permitia que a qualquer
momento os casais e seus filhos pudessem ser separados pela venda. Foi só em
1871, com a chamada Lei do Ventre Livre (portanto, já no final do escravismo),
que a legislação estabeleceu a inseparabilidade dos casais e dos filhos menores
de 12 anos - os maiores podiam ser vendidos.
Creio ser evidente que o
escravismo colonial, em toda a América, com exceção do Sul dos Estados Unidos,
superou, de acordo com uma dinâmica desfavorável, a reprodução vegetativa da
população escrava. Houve exceções faseológicas, mas a tendência geral foi a da
dinâmica desfavorável. Daí que o Brasil (colonial e independente) foi,
portanto, o maior absorvedor de africanos escravizados.
Escravidão
e modernidade no Oeste Paulista
Escravos na colheita do café |
ESTUDOS
AVANÇADOS - Seria correta a tese da "modernidade do Oeste
Paulista" como promotora do fim do trabalho escravo?
Jacob
Gorender - A questão do Oeste Paulista surge como uma explicação
muito significativa a respeito da superioridade de São Paulo (o grande Estado
na economia brasileira, a locomotiva que puxa 20 vagões etc). Como explicar
essa superioridade? A questão desafiou as modernas ciências sociais no meio
acadêmico paulista.
Uma explicação veio do
caráter excepcional, peculiar do Oeste Paulista, ou seja, da cafeicultura neste
Oeste. Aí existiria a propensão dos plantadores pelo trabalho livre. Teriam
sido pioneiros do emprego do trabalho livre, numa economia tipicamente de
plantação. Quem primeiro apresentou essa tese foi Sérgio Buarque de Holanda, em
prefácio da obra do imigrante suíço Thomas Davatz, que trabalhou numa fazenda
em Ibicaba e depois, voltando à Suíça, escreveu um relato sobre a experiência
dele. Em Ibicaba houve um levante de colonos livres. No seu prefácio, Sérgio
Buarque se referiu a uma nova raça de senhores, que teria propensão ao emprego
do trabalho livre. Isso derivaria das peculiaridades da economia cafeeira, da
nova situação que o Brasil atravessava, e assim por diante.
Essa tese foi desenvolvida
por Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Boris Fausto, Paula Beiguelman e
Warren Dean. Este último, historiador americano que deu uma contribuição muito
importante à historiografia brasileira e que viria a morrer tragicamente no
Chile, envenenado por escapamento de gás.
Paula Beiguelman fez uma
distinção entre o Oeste Antigo (Campinas e arredores, Capivari, Atibaia etc.) e
o Oeste Novo (municípios adjacentes à estrada de ferro Mojiana e da Paulista).
A tese sobre as peculiaridades inovadoras dos plantadores refere-se mais
fortemente ao Oeste Novo, cuja modernidade teria se antecipado à Abolição.
Contestei a tese da
modernidade do Oeste Paulista no meu livro O Escravismo Colonial. A consulta
aos dados de produção e quantidade de escravos no suceder dos anos e aos dados
da imigração me levou à conclusão de que, ao
contrário do que esses autores supunham, os fazendeiros do Oeste Paulista (seja
do Antigo, seja do Novo) eram também propensos, não ao trabalho livre, mas ao
trabalho escravo. Isso, até a década de 80 do século XIX. Antes disso,
procuraram, o mais possível, se basear na exploração do trabalho escravo,
comprando escravos africanos; e, depois da cessação do tráfico africano,
tornaram-se os maiores importadores de escravos procedentes do Nordeste.
Estes vieram para o Vale do Paraíba, mas também, em grande proporção, para o
Oeste Paulista, onde o crescimento quantitativo dos escravos acabou superando o
do Vale do Paraíba.
Os cafeicultores do Oeste
Paulista eram modernos na implantação de equipamentos; utilizavam, por exemplo,
ferrovias (inclusive particulares, intra e entre fazendas), empregavam o
terreiro ladrilhado para a secagem do café, secadores acionavam-se
mecanicamente etc. Mas, no que se refere ao trabalho, preferiam o escravo.
Simplesmente porque a compra de um escravo era rotineira e garantida, ao passo
que os trabalhadores livres ainda eram escassos e esquivos.
O
que vemos é que, enquanto Pernambuco se esvazia de escravos, o Oeste Paulista
se enche deles. Foi o que aconteceu no século XIX. É na
década de 1880 que os cafeicultores tornam-se propensos à imigração. A fuga de escravos estava aumentando sob a
influência do abolicionismo, inclusive aqui em São Paulo, com Antônio Bento. Os
escravos passaram a ser uma propriedade insegura, pois fugiam, encontravam
apoio da população livre e se alojavam em Santos, onde não podiam ser
alcançados.
Nesse ínterim, a posição do
governo mudou. O governo paulista passou a subvencionar as despesas de passagem
dos imigrantes europeus, livrando-os de dívidas extorsivas. A medida deu
impulso à vinda em massa de imigrantes italianos e outros.
ESTUDOS
AVANÇADOS - Alguns estudiosos weberianos acreditavam que havia uma
certa propensão para a modernidade nesses "novos senhores", como os
chama Sérgio Buarque de Holanda. Necessariamente, eles deveriam considerar o
trabalho escravo como menos rentável. Aí está o equívoco? Não era porque fossem
mais "modernizadores" que eles iriam propugnar por uma forma de
trabalho que, naquela altura, ainda não fora testada, ao passo que o trabalho
escravo já era institucionalizado.
Jacob
Gorender - E havia ainda uma fonte abundante de escravos no
Nordeste. Tratava-se de uma transação perfeitamente viável, objetiva e
racional. Não é verdade que a escravidão
não fosse racional, ou que derivasse de uma propensão subjetiva. Ela deu
grandes lucros, propiciou a prosperidade dos plantadores e comerciantes e, sem
dúvida, o Brasil se fez com a escravidão.
O
Brasil foi o país de mais prolongada escravidão nos tempos modernos. Tivemos
350 anos de escravidão aproximadamente e também fomos os maiores absorvedores
de escravos da África. Avalia-se que chegaram ao continente americano 10 milhões
de africanos escravizados. Quatro milhões vieram para o Brasil, ou seja, 40% do
total de todo continente americano. Deve-se concluir que o Brasil foi o maior
país escravista dos tempos modernos.
O fato da escravidão no
Brasil me chamou muita a atenção e por isso me interessei em estudar esse
assunto. Eu não podia aceitar a tese do Partidão, do qual eu era militante, de
que o Brasil tinha sido feudal. Eu não encontrava elementos para confirmá-la.
Impressionou-me a força que
a instituição escravista teve no Brasil. Daí a pesquisa que empreendi e que não
deixou de despertar curiosidade e surpresa: como é que alguém, fora do meio
acadêmico, se atrevia a abordar tema tão complicado?
ESTUDOS
AVANÇADOS - A Abolição acompanhada do subsídio estatal dado à vinda
dos imigrantes não teria sido uma espécie de indenização que o governo
imperial, e depois o republicano, concedeu aos cafeicultores paulistas?
Jacob
Gorender - Pode-se dizer que a subvenção estatal dada à vinda dos
imigrantes foi uma espécie de indenização do governo imperial para os
cafeicultores. Foi uma espécie, não propriamente uma indenização, já que o
dinheiro não foi parar no bolso dos cafeicultores. Deve-se observar que, pelo
sistema vigente até o início da década de 1880, os imigrantes vinham com uma
carga de dívidas intolerável, o que não os atraia. A imigração patinava e a
subvenção governamental a alavancou.
Quando ficou claro que a escravidão
tinha os dias contados, os imigrantes configuraram-se como a saída. A solução
foi o Estado pagar as despesas, tornando mais atrativa a imigração. As
estatísticas provam que a imigração deu, então, um salto. A partir de 1885, ela
triplica e vai em progressão ascendente.
*Trecho da entrevista
concedida para a Revista Estudos Avançados
Edição: Página1917
Fonte: Revista Estudos
Avançados, vol.16 nº. 46, SP, 2002.
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