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quarta-feira, 18 de maio de 2022

Triste Sina de uma Sociedade Traumatizada

André Lavinas. 

A pior maneira de superar um trauma é tentar escondê-lo, deixando de falar sobre ele e proibindo a simples menção de fatos que nos relembrem dos difíceis momentos que nos feriram a alma.




Isso é verdade tanto para os traumas pessoais e familiares como para os traumas sociais brutais que afligem a humanidade e permanecem como feridas abertas que preferimos, como sociedade, não tocá-las. 

Os traumas não devidamente "tratados" voltam, com força, a cada momento de crise para nos atormentar. Mas há uma razão para que os traumas não sejam conversados e possam ser totalmente revelados e superados, eles incomodam. 

As pessoas não conversam sobre as suas questões traumáticas em família para evitar as brigas nas reuniões familiares. 

Pais não conversam com filhos e vice-versa, sobre os temas traumáticos, para manterem um clima menos tenso na sua convivência. Enfim, os traumas são tratados como tabus. 

Mas para quem tem o privilégio de ter um acompanhamento psicológico há sempre uma chance de resolver os traumas ou, pelo menos, evitar que eles retornem com força suficiente para destruir lhe a vida. 

Com os traumas da nossa sociedade, não há outra forma de tratamento senão o esclarecimento constante acerca de todos os fatos que envolvem as origens, o desenvolvimento o desfecho do evento traumático, bem como as suas consequências. 

Hoje, o nazismo, um dos maiores traumas da nossa História, está retomando força, e já é reúne milhões de seguidores mundo afora. Segundo este incontroverso diagnóstico, está claro que não "tratamos" adequadamente deste traumatizante evento. 

Por que, após quase um século do surgimento do nazismo ele continua um tabu? 

Por que, mesmo dentro de partidos de esquerda e universidades, onde se espera que haja um debate mais aprofundado sobre o nazismo e suas raízes, esta discussão é negligenciada? 

A resposta não é óbvia, mas não é difícil.

A questão é que se analisarmos o nazismo veremos que as suas raízes, a sua justificação e os seus objetivos estão no pensamento liberal e na história das grandes potências imperialistas, as chamadas "Democracias" liberais ocidentais, centros do capitalismo mundial, que construíram a sua riqueza sobre o massacre e a escravização de milhões de pessoas na África, Ásia, Américas e Oceania. 

Os nativos da América do Norte sofreram um holocausto, perpetrado pelos EUA, que com o seu capitalismo emergente carecia do seu "Lebensraum", espaço vital, para novas terras cultivàveis, matérias primas, minério etc. 

O próprio Hitler, no seu "Minha luta”, justifica o seu "Lebensraum" , política nada diferente do "destino manifesto" dos EUA, com os mesmos argumentos utilizados pelos estadunidenses para o seu expansionismo, o que denota que o "Furher" absolveu os estadunidenses de qualquer crime e queria para si a mesma liberdade para massacrar, espoliar e escravizar os povos eslavos que foi dada aos EUA para massacrar os nativos americanos e lhes roubar as terras impunemente. Não é segredo a admiração de Hitler pela conquista do Oeste estadunidense (1). 

Afinal de contas, se ninguém acusa a "Democracia Liberal Estadunidense" de ter cometido crimes contra a humanidade pelo extermínio dos seus povos originários, por que Hitler deveria ser condenado por querer fazer o mesmo com os povos eslavos?

Por isso, não foi surpresa nenhuma o jornal The New York Times, em 1933, receber "Mein Kampf" com uma crítica muito favorável, chegando a chamar Hitler de "homem extraordinário" (2).

É inegável que se as demais potências capitalistas criticavam o expansionismo declarado de Hitler, não poderiam deixar de rever a sua própria história de pilhagem, massacre e invasão, sob pena de incorrerem na mais escancarada hipocrisia, não é mesmo? 

A Inglaterra, durante a segunda guerra, saqueou milhões de toneladas de grãos da Índia causando a morte de cerca de três milhões de seres humanos por inanição. 

O grande ícone liberal, Winston Churchil, era reconhecidamente um supremacista branco. Até a insuspeita BBC o reconhece (3).

Sem falar na tragédia humana que foi a invasão e a espoliação de imensas partes da África pelos britânicos. 

O massacre de mais de 10 milhões de pessoas, no Congo, pelo império Belga(4),  também uma "Democracia Liberal parlamentar" ao estilo do império britânico à época, não teve um julgamento severo da história. 

Quanto à ideologia que defende a ascendência de uma raça superior sobre as demais, está presente em inúmeros trabalhos "científicos", dos séculos XVIII até o século XX. 

Vale a pena lembrar que esta tese surgiu muito antes do nazismo e um dos seus principais expoentes é o estadunidense Charles Davenport(5), que  em 1910 já realizava experiências para "melhorar" a espécie humana, com esterilização de pessoas cujos genes eram considerados ruins como  criminosos, prostitutas, pessoas que nasceram com limitações físicas e psicomotoras etc. Não é difícil imaginar que depois de séculos de escravidão, segregação e sufocamento cultural e econômico, a maioria das pessoas consideradas geneticamente inferiores para Davenport eram os não brancos. 

Logicamente, para o pesquisador estadunidense, os melhores genes seriam os dos brancos e a posição social que ocupavam na sociedade estadunidense e no mundo se devia à sua superioridade intelectual herdada geneticamente. 

Até mesmo o filósofo Nietzsche, aclamado pelos liberais como grande arauto da liberdade, atualmente incensado até mesmo por certa esquerda, era um defensor apaixonado da supremacia dos povos nórdicos e da sua cultura sobre os demais povos, considerados fracos e incultos. 

Ele defendia, inclusive, o direito dos mais fortes oprimirem os fracos. Segundo ele o sistema político e cultural mais avançado seria o de castas adotado na Índia, pois seria o mais adequado ao governo dos fortes e livres sobre os mais fracos que, para Nietzsche, deveriam ser subjugados. Está tudo isto bem explícito no seu "O Anticristo" (5). 

Não resta dúvida de que o nazismo é filho da ideologia liberal, que lhe legou toda a ideologia racista, eugenista e intolerante com as diferenças, e do capitalismo que lhe nutriu por muitos anos, desde a adesão maciça da burguesia alemã ao seu projeto de conquista e subjugação dos povos, por eles, considerados inferiores, até o capitalismo estadunidense que proveu combustível, através da Standart Oil, para os tanques alemães até o fim da guerra, da Coca Cola, que fabricou seus refrigerantes na Alemanha até o fim da guerra, e da Ford, que fabricou motores para tanques, aviões e navios alemães durante todo o conflito, e cujo fundador, Henri Ford, chegou a ser condecorado por Hitler sendo um de seus grandes entusiastas, passando pelos bancos suíços que lavaram o dinheiro do Reich. 

Os exemplos de colaboração explícita da burguesia, inclusive a dos países que combatiam a Alemanha, com o nazismo são inúmeros.

Por isso, hoje, falar sobre o nazismo da forma correta, buscando suas origens e fundamentações incomoda muito aos liberais, tanto os de "esquerda" como os de direita, pois no exame do DNA do bárbaro regime hitlerista está lá toda a contribuição da ideologia do capital, na sua vertente liberal, que cometeu sucessivos crimes contra a humanidade, muito antes dos nazistas, até hoje impunes. 

E incomoda também a certa esquerda que crê poder domar o capitalismo e colocá-lo ao serviço de uma sociedade que promova algum tipo de justiça social. 

Acho que é por ignorar estes estreitos laços entre o capitalismo e o nazismo que certa esquerda teima em se aliar à burguesia e em defender as suas instituições incondicionalmente, sob pretexto de isolar o fascismo. Justamente o mesmo erro que a esquerda derrotada por Hitler cometeu. 

E neste ciclo de ignorância histórica e proposital deturpação das origens capitalistas do nazismo, vamos assistindo, atônitos, ao desfile daqueles horrendos símbolos de outrora nas telinhas e telonas, enquanto certa esquerda ainda busca apoio entre a burguesia que, cedo ou tarde, irá se aliar ao que de mais bárbaro existir, seja com qual nome passe a ser conhecido, contra as vanguardas de revolucionários que surgirão na luta contra a barbárie capitalista. 

E assim, de engano em engano, a história vai se repetindo em tragédia e farsa como Marx tão bem apontou. 

Notas: 

(1) https://www.newyorker.com/magazine/2018/04/30/how-american-racism-influenced-hitler 

(2)https://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/09/cultura/1449658524_828052.html 

(3) https://www.bbc.com/portuguese/internacional-47293747

https://www.theguardian.com/world/2019/mar/29/winston-churchill-policies-contributed-to-1943-bengal-famine-study 

(4)https://www.brasildefato.com.br/2018/07/03/rei-belga-matou-dez-milhoes-no-congo-hoje-um-filho-de-congoleses-e-idolo-da-selecao 

(5) "Nisso tudo, repito, nada é arbitrário, nada é “artificial”; apenas o contrário é artificial – ele destrói a natureza... A ordem das castas, a hierarquia simplesmente formula a lei suprema da própria vida; a separação dos três tipos é necessária para conservar a sociedade, para possibilitar o surgimento dos tipos mais elevados, mais sublimes – a desigualdade de direitos é condição primordial para a existência de quaisquer direitos. – Um direito é um privilégio. Cada qual tem seus privilégios de acordo com seu modo de ser."

Nietzsche, Friedrich - O Anticristo, pg 54,http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2790

Edição: Página 1917 

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