Sobre a carta de Mariguella à direção do PCB, de 1966, podemos dizer que ela guarda muitas atualidades, face a adaptação à democracia burguesa por parte dos partidos, que se dizendo "comunistas", seguem praticando o mesmo reboquismo político ideológico típico de organizações pequeno-burguesas. (nota do editor)
Carlos Marighella
1 de Dezembro de 1966
Prezados Camaradas
Os contrastes de nossas
posições políticas e ideológicas é demasiado grande e existe entre nós uma
situação insustentável.
Na vida de um combatente, é preferível renunciar a um convívio formal a ter de ficar em choque com a própria consciência.
Nada tenho a opor aos
camaradas pessoalmente.
No trabalho sob o título
"Luta interna e dialética", publicado na Tribuna de Debate e em um
folheto, procurei tornar clara a ideia que tenho sobre a necessidade do tom
pessoal na luta interna.
Na verdade, nenhuma pessoa
por si só está em condições de determinar a marcha da história, coisa que
compete, sem nenhuma dúvida e antes de mais nada às massas trabalhadoras.
O que torna ineficaz a
executiva é a sua falta de mobilidade, é não exercer o comando efetivo e direto
do Partido nas empresas fundamentais do país, é não ter atuação direta entre os
camponeses.
O centro de gravidade do
trabalho executivo repousa em fazer reuniões, redigir notas políticas e
elaborar informes. Não há assim ação planejada, a atividade não gira em torno
da luta. Nos momentos excepcionais, o Partido inevitavelmente estará sem
condutos para mover-se, não ouvirá a voz do comando, como já aconteceu em face
da renúncia de Jânio e da deposição de Goulart.
Solicitando demissão da
atual Executiva — como o faço aqui —, desejo tornar público que minha
disposição é lutar revolucionariamente junto com as massas e jamais ficar à
espera das regras do jogo político burocrático e convencional que impera na
liderança.
1. A Circulação da Ideias
Uma das questões em que a
Executiva se mostra temerosa e conservadora é quanto ao aparecimento de livros
e à circulação de ideias.
Acerca de um ano e meio
publiquei o livro Por que resisti à prisão.
A experiência das lideranças
passadas em matéria de lançamento de livros não é boa. As direções executivas
dificultavam ou impediam tal coisa por meio de subterfúgios, retendo originais
ou exercendo a censura prévia.
Os camaradas da Executiva
atual reclamam, entretanto, que só a posteriori tomaram conhecimento do livro
mencionado.
Mesmo assim não o
discutiram; sobre ele não emitiram nenhuma opinião, apesar de interpelados por
militantes e outros dirigentes.
Agora, passado mais de um
ano, os companheiros fazem autocrítica pela omissão e opinam sobre o livro,
considerando boa a primeira parte (que faz o relato da prisão). Não concordam,
porém, com a segunda parte (que expõe os assuntos ideológicos e políticos),
porque esta — segundo pensam — é contra a atual linha do Partido.
Parece estranho condenar uma
parte do livro e não condenar igualmente a outra.
As duas partes são
indivisíveis. Uma é decorrência da outra. Há uma interação entre elas, uma
relação de causa e efeito. A resistência à prisão não teria havido se os
motivos políticos expostos no livro não a justificassem.
Os companheiros, porém, não
atentam para essa evidência. Entram pelo terreno da abstração e do agnosticismo
kantista e separam coisas inseparáveis.
E vão mais além, sustentando
a tese de que um membro da liderança não pode escrever, publicamente,
discordando.
A tese é stalinista, mas aí
a temos de volta.
Ora, a discordância nunca é
um fato repentino, mas o amadurecimento de um processo contraditório,
facilitado sempre que se abre o debate, sobretudo quando o último foi travado
seis anos atrás.
E é exatamente neste momento
— com os debates abertos — que os companheiros afirmam a impossibilidade da
discordância pública.
Recai-se, assim, na
"teoria da unanimidade", que tanto prejuízo trouxe no passado.
Volta-se a concepção antimarxista e anti-dialética do "núcleo dirigente"
monolítico superposto ao coletivo. Em suma, trata-se de uma tentativa de
intimidação ideológica, o recurso a uma forma de coação para evitar a
circulação de ideias que são temidas.
Entretanto, revelar as
contradições é uma forma e até mesmo um método para superá-las, desde quando as
ideias entram em confronto uma com as outras e a prática é tomada como critério
para testar a verdade.
2. De Onde Vem a
Discordância
Nossas discordâncias não são
de agora. Vêm de muito antes. Cresceram a partir dos acontecimentos subsequentes
à renúncia de Jânio, quando o nosso despreparo político e ideológico ficou
demonstrado.
Em 1962, perante o coletivo
do Partido, critiquei os métodos não marxistas, os remanescentes do
individualismo na direção e a falta de tomada de posição ideológica em face do
nosso despreparo.
O golpe de abril — vitorioso
sem nenhuma resistência — mostrou mais uma vez que política e sobretudo
ideologicamente estávamos mesmo despreparados.
A resistência à prisão e o
livro que tratou do assunto significavam aquela tomada de posição ideológica em
face do despreparo e da perplexidade geral.
O despreparo ideológico e
político da Executiva — segundo penso — revela-se em suas concepções, já agora
postas em dúvida por muitos militantes.
São concepções imbuídas de
fatalismo histórico de que a burguesia é a força dirigente da revolução
brasileira. A Executiva subordina a tática do proletariado à burguesia,
abandona as posições de classe do proletariado. Com isso perde a iniciativa,
fica à espera dos acontecimentos.
O livro que publiquei sob o
título A crise brasileira (ensaios políticos) é exatamente uma contribuição ao
debate aberto em torno das posições da liderança, posições que venho combatendo
publicamente, amparado no princípio da livre discussão.
Não vejo mal em combater
tais posições, pois o que todos desejamos é uma Executiva em condições de ir
para a ação e manejar o método dialético-materialista.
3. As Ilusões de Classe
As ilusões da Executiva —
perdoem-me os companheiros — permanecem intactas. Daí porque a vimos refletidas
nas ilusões de uma boa parte dos dirigentes e militantes que acreditavam em
líderes burgueses, como Juscelino, Jânio, Adhemar, Amauri Kruel, Justino Alves
e outros, e tinha esperança na resistência que prometiam fazer contra a
ditadura. O episódio da cassação de Adhemar não foi, porém, a última decepção.
Temos agora o caso da
"frente ampla". A Executiva manifestou-se com inequívocas simpatias
pela "frente ampla", renunciando a criticá-la e a esclarecer às
massas sobre o seu significado.
Lacerda — líder fascista —
quer fazer seu próprio partido, exibindo-se como popular e reformista.
A Executiva acha tudo isto
um "fato político positivo" ("A Voz Operária", n.22, nov. 1966),
admitindo que a "frente ampla" venha a ter a capacidade de lutar
contra a ditadura, pelas liberdades e os interesses reais do povo brasileiro.
A jogada de Lacerda é abrir
novos caminhos para servir ao imperialismo norte-americano e evitar a liberação
nacional de nosso povo. Lacerda é incapaz — por sua situação de classe — de
lutar realmente pelo povo, contra o latifúndio e o monopólio da propriedade
privada da terra, em favor dos camponeses e em favor da classe operária. O que
Lacerda pretende — segundo se deduz dos fatos — é a colaboração de classes, é a
conciliação que leva ao apoio a Costa e Silva.
A Executiva silencia sobre
isto, ajuda a semear ilusões.
As ilusões são justificadas
em nome da propalada política ampla, em nome do combate ao sectarismo e ao
esquerdismo, enquanto se despreza a luta em favor da ideologia do proletariado.
Esquece-se o papel do partido marxista, da sua independência de classe e cai-se
no reboquismo ante a burguesia.
Em vez de combater as
ilusões, apressou-se a Executiva a combater o revanchismo, adotando uma posição
burguesa como se não devêssemos ajustar contas com a ditadura à maneira
proletária, ou seus crimes e chamar seus autores à responsabilidade. Como se
não devêssemos apostar ao proletariado os criminosos golpistas, denunciar
"à maneira plebéia", segundo diria Marx em seu tempo.
4. Caminho Eleitoral ou
Caminho Armado
A Executiva ainda pensa em
infligir à ditadura derrotas eleitorais capazes de debilitá-la. E dá grande
importância ao MDB, apontado como capaz de permitir aglutinação de amplas
forças contra a ditadura. Ou então apoia a "frente ampla" do Lacerda.
Não é isto querer
desfazer-se da ditadura suavemente, sem ofender os golpistas, unindo gregos e
troianos?
Em vez de uma tática e
estratégia revolucionárias, tudo é reduzido aberta ou veladamente — a uma
impossível e inaceitável saída pacífica, a uma ilusória redemocratização
(imprópria até no termo).
Parece não se ter compreendido Lenin, quando em "Duas táticas" afirma que:
"os grandes problemas da vida dos povos se resolvem somente pela força".
Em outra parte, falando
sobre a vitória, acrescenta Lenin que esta:
"deverá apoiar-se inevitavelmente na força armada das massas, na insurreição", e não em tais ou quais instituições criadas "por via legal" e "pacífica".
Depois de tanto se ter
falado que a violência das classes dominantes se responderia com a violência
das massas, nada foi feito para que as palavras coincidissem com os atos.
Esquece-se o prometido e continua-se a pregar o pacifismo.
Falta o impulso
revolucionário, a consciência revolucionária, que é gerada pela luta.
A saída do Brasil — a
experiência atual está mostrando — só pode ser a luta armada, o caminho
revolucionário, a preparação da insurreição armada do povo, com todas as consequências
e implicações que daí resultarem.
É verdade que nossa
influência, a dos socialdemocratas (quer dizer, a dos comunistas), sobre a
massa do proletariado ainda é muito insuficiente; a dispersão, a falta de
desenvolvimento, a ignorância do proletariado e sobretudo dos camponeses, ainda
são [texto truncado no livro] velocidade. Cada passo dado no seu desenvolvimento
desperta terrivelmente enorme.
A revolução, porém, aglutina
as forças com rapidez e as instrui com a mesma massa e as atrai com uma força
irresistível para o programa revolucionário, o único que exprime de modo
conseguinte e concreto os seus verdadeiros interesses, e seus interesses
vitais.
Há no Brasil forças
revolucionárias internas capazes de resistir à ditadura e ir à luta. E é
verdade que o pensamento leninista brota por toda a parte onde o proletariado
faz sentir sua influência.
5. Razões Irreversíveis
A questão mais importante, a
fundamental, é a questão do poder. Os revolucionários no Brasil não podem
propor a uma outra coisa senão a tomada do poder, juntamente com as massas. Não
há porque lutar para entregar o poder à burguesia, para que seja construído um
governo sob a hegemonia da burguesia. Foi o que se pretendeu com o governo
nacionalista e democrático. E o que se pretende agora, propondo-se a conquista
de um "governo mais ou menos avançado", eufemismo que traduz a
esperança num governo sob hegemonia burguesa, fadado a não resolver os
problemas do povo.
Isto não significa a
renúncia à luta pelo poder através da ação revolucionária, a confiança no
caminho pacífico e eleitoral, a capitulação ante a burguesia?
A Constituição fascista,
autoritária, que elimina o monopólio estatal, que sustenta a atual estrutura
agrária retrógrada, que assegura a total entrega do país aos Estados Unidos,
que reduz o Parlamento e a justiça a instrumentos dóceis do Poder Executivo,
tal Constituição não permitirá nenhum governo democrático por via eleitoral.
É preciso pôr abaixo tal
Constituição, derrubar a ditadura, estabelecer um governo apoiado em outra base
econômica, em outra estrutura. Fora disso, é permanecer mais dez, vinte anos
fazendo acordos eleitorais e ajudando as classes dominantes e o imperialismo
norte-americano a manter o Brasil como uma ditadura institucionalizada, a
serviço da repressão ao movimento de libertação dos povos latino-americanos.
A conclusão não pode ser
diferente, sobretudo em face de vinte anos de acordos eleitorais feitos no
passado, acordos eleitorais sem princípios, que nos desacreditaram e
desgastaram ante as massas.
São tentativas inviáveis,
prática e teoricamente, pois a época das revoluções democráticas e liberais já
está ultrapassada.
Temeroso da Revolução
Cubana, o imperialismo norte-americano, agora, apoiado nas forças armadas
convencionais latino-americanas, não vacila em desencadear os golpes militares,
ao menor sinal de um avanço no caminho da libertação dos povos de nosso continente.
E nem mesmo desiste ou recua do emprego da guerra de agressão mais brutal, como
no Vietnã.
A luta pelas reformas de
base não é possível pacificamente, a não ser através da tomada do poder por via
revolucionária e com a consequente modificação da estrutura militar que serve
às classes dominantes.
O abandono do caminho
revolucionário leva à perda de confiança no proletariado, transformado, daí
então, em auxiliar da burguesia, enquanto o partido marxista passa a ser
apêndice de outros partidos burgueses.
A subordinação e a
perplexidade ante a burguesia e sua liderança impelem ao menosprezo do
campesinato na revolução brasileira.
Daí a causa porque o
trabalho no campo jamais constitui atividade prioritária, chocando-se os
esforços nesse sentido com a indiferença e a má vontade da Executiva.
Entretanto, o camponês é o
fiel da balança da revolução brasileira, e sem ele o proletariado terá que
gravitar na órbita da burguesia, como acontece entre nós, na mais flagrante
negação do marxismo.
Sem o camponês, o Partido
não fará outra coisa senão acordos políticos e acordos eleitorais de cúpulas,
para não falar em barganhas.
São razões que não podem
deixar de contribuir para o meu pedido de demissão, tornando-se impossível
aceitar qualquer conciliação ideológica.
6. O Problema de São Paulo
A Executiva — segundo me
parece — subestima o Partido nas empresas, não ajuda a construí-lo aí, com uma
firmeza inabalável.
Quem pensa em fazer a
revolução tem que se apoiar nas empresas e na classe operária. No Brasil, tem
que se apoiar em São Paulo, a concentração operária fundamental e decisiva no
país.
Entretanto, a situação do
Partido em São Paulo é desastrosa, afastado como está das empresas e atingido
pelas influências ideológicas da burguesia.
A Executiva assistiu
indiferente ao declive do Partido em São Paulo. Não obstante, inquietou-se e
deu sinal de contrariedade quando — sem ser levada em conta sua opinião — os
militantes de São Paulo elegeram para a direção estadual um dos membros da
Executiva e outro dirigente nacional.
Tentando rechaçar a
iniciativa dos militantes, a Executiva invocou uma resolução inexistente,
proibindo qualquer de seus membros de pertencer a uma direção estadual; o que
seria transformar a Executiva numa espécie de torre de marfim sem atuação
direta junto às bases da empresa ou do campo. Inconformados, os militantes de
São Paulo já haviam afastado da direção estadual todos os quadros para ela designados
pela Executiva, e que não haviam correspondido. Tanto mais quanto o Partido
enveredara pelo reboquismo à burguesia, tendo sido permitido em suas fileiras
forte penetração e influência da ideologia burguesa, particularmente do janismo
e do adhemarismo.
Campeavam, então, em São
Paulo, as teses da burguesia, sintetizadas sobretudo na chamada "conquista
do poder local" e na existência de um partido cujo nome era evitado e
substituído pela denominação de "movimento comunista", onde, aliás,
não devia haver lugar "para os homens cuja revolta os leva ao desajuste e
ao afastamento da convivência social".
Em vez de um Partido
revolucionário de massas, as teses preconizavam um Partido pacífico, bom para
entendimentos e acordos eleitorais.
Um dos objetivos programáticos
dessas teses, em circulação em São Paulo, era "uma reestruturação
democrática da máquina administrativa dos órgãos judiciais e do aparelho
policial".
As teses mencionadas
contribuíam para desacreditar e deformar o Partido e eram ao mesmo tempo uma consequência
disto.
A conferência estadual
realizada em São Paulo reagiu contra as deformações e a influência ideológica
da burguesia e rejeitou in totum aquelas teses oportunistas.
Ao invés de saldar a
conferência e os seus resultados, a rejeição de semelhantes teses e a posição
dos militantes elegendo quadros de sua confiança para a direção, ainda que —
sem consultar a Executiva e sem levar em conta os seus veredictos — a Executiva
descontenta-se e trata de agir em São Paulo, passando por cima da direção
estadual.
Somente agora a Executiva
chegou à conclusão de que precisa discutir o problema de São Paulo, depois que
o Partido ali foi quase destruído e as teses da burguesia penetraram fundo.
Se é assim, que se apurem as
responsabilidades, que se assinalem as causas que levam o Partido a perder suas
bases nas empresas, porque não se realizava trabalho entre os camponeses e não
se apoiava o esforço revolucionário dos estudantes, porque os intelectuais se
distanciavam do Partido e porque eram preferidos os acordos e entendimentos
eleitorais.
A causa principal dessas
deformações está — segundo creio — na fraqueza teórica e ideológica da
Executiva.
Foi isto que a levou a não
ter vigilância de classe, a permitir que caíssem documentos na mão da polícia.
A gravidade da questão não está apenas em nomes revelados, mas também em
permitir — por inadvertência — a revelação à polícia de assuntos internos do
Partido.
A verdade é que a Executiva
está ausente no trato com o marxismo-leninismo, não escreve trabalhos teóricos,
não generaliza a experiência da revolução, teme a publicação de livros e as ideias
neles expostas, omite-se diante das questões fundamentais, preferindo a
conciliação e o exercício do paternalismo.
É, para mim, doloroso
escrever-lhes como o faço neste momento. Mas não seria de meu feitio deixar de
dizer a vocês, perante o coletivo partidário e à opinião pública o que sinto
realmente.
Não acredito que o
individualismo ou a ação pessoal possa resolver todos esses problemas. As ideias
é que desempenharam o papel decisivo. E somente elas encontraram eco.
A causa revolucionária
brasileira, a libertação de nosso povo do julgo dos Estados Unidos, o empenho
pela unidade do Partido em torno das ideias marxistas estão acima de qualquer
acomodação, sobretudo quando o que mais se exige de nós, comunistas
revolucionários marxista-leninistas, é justamente a coragem de dizer e agir.
Sem mais, com saudações
proletárias.
Edição: Página 1917.
0 PCB continua mergulhado no pântano conceitual burguês/pequeno burguês em que sempre esteve: democracia, povo, popular, democracia popular. Enquanto não abandonar a Linguagem da burguesia o PCB permanecerá um partido reformista.
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