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segunda-feira, 8 de julho de 2024

Frente Popular — Os Comunistas a serviço da Democracia Burguesa

As recentes eleições na França despertaram atenção e geraram muitas expectativas entre aqueles que empunham ou, pelo menos, dizem empunhar a bandeira da revolução socialista. Face ao crescimento eleitoral dos partidos neofacistas, o resultado obtido pela denominada Nova Frente Popular (NFP) tem sido objeto de comemorações apressadas e injustificadas. Esse bloco eleitoral da NFP reúne desde apoiadores da OTAN até defensores das reformas que atacam direitos duramente conquistados pelos trabalhadores franceses. Portanto, a ascensão dessa frente nas ultimas eleições não significa um enfraquecimento da extrema direita, que por sinal aumentou bastante sua representação no parlamento francês e europeu e muito menos enfraquece a hegemonia burguesa no interior do Estado imperialista francês.

Tentando contribuir para o esclarecimento sobre o significado dessa tática política das "Frentes Populares" e dos resultados advindos da sua aplicação, publicamos abaixo um pequeno enxerto do livro "O Anti-Dimitrov" de Francisco Martins Rodrigues.


 

 Francisco Martins Rodrigues*

A política de frente popular foi a grande criação histórica do 7.º congresso da III Internacional Comunista (IC). Surpreendentemente, apenas três páginas do relatório de Dimitrov lhe são dedicadas. Mais estranho ainda, nelas não se encontra qualquer justificação de princípio para a virada que levou os partidos comunistas a alterar tão radicalmente a sua atitude face ao reformismo e ao democratismo burguês.

Isto não significa contudo que Dimitrov não tenha justificado à sua maneira a nova política. Ao longo do relatório foi introduzindo, como se se tratasse de evidências indiscutíveis, uma série de pontos de vista novos acerca das relações entre as classes na época do fascismo, as quais conduziam indiretamente à conclusão de que já não tinha validade o conceito leninista de hegemonia do proletariado.

A nossa tarefa consiste portanto, antes de mais, em pôr a descoberto os pressupostos de classe em que assenta a política dimitrovista de frente popular, para lhes medir a solidez, à luz do leninismo. Pressupostos de classe que só se encontram se passarmos para além da aparência exterior da argumentação, recheada de expressões marxistas-leninistas e de testemunhos de fidelidade aos interesses da classe operária e da revolução, para a lógica interna do raciocínio. Só então estaremos em condições de descobrir porque é que as profissões de fé “bolcheviques”, “leninistas-stalinistas” de Dimitrov redundaram em soluções políticas tão abertamente oportunistas como os pactos com os partidos burgueses, os governos de coligação, a dissolução da corrente sindical revolucionária, a fusão do partido comunista com a social-democracia, o aprisionamento da luta de classe do proletariado nos limites da democracia burguesa.

Povo e fascismo

A Europa e o mundo inteiro, inquietos perante o horror da ditadura fascista que tinha mostrado o seu verdadeiro carácter na Alemanha, Itália, Bulgária e Polónia, apercebiam-se dos primeiros passos de uma funesta agressão. Uma grande inquietação apoderou-se das mentes e dos corações dos povos: ‘Para onde caminhamos? Que devemos fazer?’ A resposta a estas perguntas de excepcional importância deu-as o histórico 7.º Congresso da IC.”

É assim que um redator revisionista de serviço introduz, em estilo já tornado clássico, um resumo popular do relatório de Dimitrov. E não há dúvida de que retrata fielmente a nova perspectiva que inspirou esse relatório, o salto de classe que ele contém: o povo como uma entidade face ao fascismo, os comunistas como os servidores do povo na luta comum contra o fascismo, a luta povo-fascismo a tomar o lugar da luta proletariado-burguesia. É este o miolo da política dimitroviana de frente popular, que permite classificá-la como antileninista.

Desfaçamos antes de mais um equívoco que o oportunismo cuida em alimentar, porque é essencial à sua sobrevivência. Aquilo que se põe em causa em Dimitrov não é ter chamado os comunistas a encabeçar a luta antifascista. Nenhum marxista põe em dúvida que o surgimento dessa forma nova e virulenta de reação burguesa que é o fascismo impunha uma mudança radical na tática dos partidos comunistas. Não se podia pôr no mesmo plano democracia burguesa e fascismo. O proletariado era forçado a passar à defensiva e a aceitar compromissos temporários para fazer frente ao inimigo temível que se levantara no campo da burguesia. Tinham que se explorar minuciosamente as contradições que opunham as camadas democrático-burguesas ao Estado terrorista do capital financeiro. Uma política nova, que ampliasse o leque de alianças do proletariado e fizesse convergir o maior número de forças naquilo que tinham de comum contra o fascismo, era uma exigência real da época, que o 7.º congresso era chamado a resolver.

As declamações abstratas contra o “frentismo antifascista” não passam de inépcias anarquistas, úteis à reação. A luta contra o fascismo tornara-se a direção determinante da luta revolucionária do proletariado.

Mas essa nova orientação tática não podia passar por cima da linha estratégica de diferenciação e antagonismo do proletariado face à sociedade burguesa no seu conjunto. A política de aliança antifascista só serviria os interesses revolucionários do proletariado, e portanto os de todo o povo trabalhador, na medida em que se inserisse como um instrumento tático auxiliar na sua luta geral e invariável pela independência e hegemonia face a todas as correntes burguesas. Tudo continuava a depender da afirmação do proletariado como classe “para si própria”. E isto porque o fascismo, com todo o seu cortejo de tenebrosas inovações, não era mais do que uma forma nova assumida pela mesma ditadura de classe da burguesia. A luta de classes sob o capitalismo sofrera uma agudização e uma polarização brutal — o seu quadro geral continuava o mesmo.

Ora, Dimitrov, não podendo contestar frontalmente esta posição de princípio que a IC estabelecera desde o seu 5.º congresso e referindo-se a ela em diversas passagens do relatório, combinou-a com uma perspectiva que lhe era contrária — a luta contra o fascismo como a fusão das posições de classe contraditórias numa corrente democrática comum.

Esta perspectiva, não assumida de forma expressa em ponto nenhum do relatório, está no entanto perfeitamente delineada nas cinco teses novas, que formam a sua estrutura política.

Primeira, a unidade de ação com a social-democracia, a pretexto de que esta estaria a deslocar-se num sentido revolucionário.

Segunda, o apoio político do proletariado à pequena burguesia, a fim de “elevar a sua consciência revolucionária”.

Terceira, a identidade de interesses da nação perante o fascismo.

Quarta, os governos de coligação com a burguesia democrática como alternativa ao fascismo.

Quinta, e como remate, a criação do “partido operário único” pela fusão entre comunistas e sociais-democratas.

Este conjunto de posições, que adiante analisamos, definiu um novo quadro geral, não-confessado, da luta de classes na época do fascismo. Quadro geral que Dimitrov introduziu a coberto da crítica... aos “esquemas gerais”.

Com efeito, as cinco novas teses de Dimitrov pressupunham uma mudança de fundo nas relações entre as classes. Era como se o conflito proletariado-burguesia que define o regime capitalista tivesse diminuído de intensidade perante o fenômeno novo do fascismo. Certamente, as contradições de classe não tinham desaparecido, subsistiam as vacilações da pequena burguesia, as diferenças entre partidos, etc. Era impossível negá-lo sem renegar abertamente o marxismo. Mas todo esse universo passara a mover-se dentro de um universo novo, mais vasto — o grande combate histórico dos povos contra o fascismo. Daí, a necessidade de impor uma pausa à luta revolucionária do proletariado, para eliminar o obstáculo que se interpusera na luta “normal” das classes. E esta a lógica interna da nova política, que Dimitrov procurou transmitir mais do que formular.

Mas esta lógica “intuitiva” que presidiu ao nascimento da frente popular não era mais, afinal, do que um condensado das teses direitistas, bukarinistas, social-democratas, cuja penetração nas fileiras comunistas a IC viera combatendo no período anterior.

A IC não subestimara até aí a ameaça fascista, como geralmente se afirma. Simplesmente, denunciava “a construção liberal de uma contradição entre fascismo e democracia burguesa, bem como entre as formas parlamentares e as abertamente fascistas de ditadura da burguesia”, como “um reflexo da influência social-democrata nos partidos comunistas”. A IC criticava o “contrabando” daqueles que apresentavam o fascismo como “um novo sistema” de relações entre as classes e não simplesmente como uma nova forma de domínio da burguesia.

*Francisco Martins Rodrigues (1927-2008) foi membro do CC do Partido Comunista Português e viria a romper com o seu reformismo por altura da polêmica sino-soviética, fundando a FAP e o CMLP, a primeira organização marxista-leninista portuguesa. Foi o primeiro a introduzir em Portugal de uma forma organizada as lições da revolução chinesa e o exemplo de Mao Tsétung. Preso várias vezes e barbaramente torturado pela PIDE, manteve-se ao longo de toda a sua vida do lado da Revolução e empenhado na organização de uma corrente comunista revolucionária. O 25 de Abril de 1974 apanhou o camarada "Chico" na prisão e os militares "democratas" do MFA tentaram mantê-lo preso. Só a forte vontade popular e grandes manifestações à porta da prisão o conseguiram libertar. A partir de 1985 e até morrer em 2008 foi diretor da revista "Política Operária"

Fonte: Anti-Dimitrov: 1935-1985 Meio Século de Derrotas da Revolução, Editora Ulmeiro, Portugal, 1985.

Edição: Página 1917


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