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sexta-feira, 10 de novembro de 2023

As Crianças de Gaza

Patrick Howlett-Martin

10.11.23

"Por que é que as crianças também devem sofrer? Dir-se-á que elas carregam na carne os pecados dos seus pais e, portanto, são cúmplices? Alguns podem  gracejar dizendo que a criança vai crescer e pecar por sua vez, quando chegar a hora. Mas este menino de 8 anos não teve a possibilidade de crescer;  foi dilacerado por cães. Nenhuma quantidade de harmonia futura redimirá uma única lágrima derramada por esta criança mártir. Se as lágrimas das crianças são necessárias para aperfeiçoar a quantidade de sofrimento que serve de resgate para a verdade, afirmo categoricamente que não merece ser pago tal preço."

– Dostoievski, Os Irmãos Karamazov

A Faixa de Gaza foi alvo de quatro ataques israelitas desde 2009: em 2009, 2012, 2014 e 2021. Desde 2000, as forças armadas israelitas mataram 7 759 palestinos em Gaza, incluindo 1 741 crianças e 572 mulheres, de acordo com a organização humanitária israelita B'Tselem. Nesta quinta ofensiva militar israelita desde 09 de outubro de 2023, em retaliação pela morte de 1 400 israelitas, a grande maioria civis, e pelo rapto de 200 reféns, dos quais 30 crianças, por elementos armados do Hamas a partir de Gaza, morreram mais de 7 028 pessoas, incluindo 2 913 crianças e 1 709 mulheres, sob 7 000 bombas de Israel (até 26 de outubro) [Edição Página 1917: dados atualizados em 10/11 registram um total de 11 mil palestinos mortos pelos ataques israelenses.]


Em apenas 18 dias, os bombardeamentos israelitas mataram mais crianças palestinas em Gaza do que nos últimos 23 anos. Os hospitais de Gaza relataram 18 484 feridos. Quando irá acabar essa contabilidade macabra? As crianças israelitas e palestinas são responsáveis pela atual situação na Palestina? Como é que as crianças palestinianas podem ser responsáveis pela intervenção militar levada a cabo pelo braço armado do Hamas, que é brandido pelas autoridades israelitas para justificar a destruição de Gaza? Com que finalidade estas crianças estão a ser mortas? A morte de crianças palestinas em anteriores bombardeamentos e ataques israelitas em Gaza, contribuiu, de alguma forma, para preservar a segurança do Estado israelita?

Otto Ohlendorf, um dos líderes dos Einsatzgruppen [esquadrões da morte nazis], admitiu durante os Julgamentos de Nuremberga ter executado 90 000 pessoas na Ucrânia, incluindo judeus e comunistas, sem qualquer necessidade militar, não poupando crianças por medo de que elas se vingassem quando crescessem. Justificando a execução das crianças, Ohlendorf afirmou:

"Acredito que é muito fácil explicar se partirmos do fato de que essa ordem não estava apenas a tentar garantir segurança temporária, mas segurança permanente. Por essa razão, essas crianças cresceriam e, com os seus pais mortos, certamente representariam um perigo tão significativo como os seus pais" ("Die jüdischen Kinder von heute unsere Gegner von morgen seien")

Em fevereiro de 2008, Matan Vilnai, o vice-ministro da Defesa de Israel, fez uma declaração, dizendo: "Quanto mais os disparos de foguetes Qassam se intensificarem e os foguetes atingirem maior alcance, maior será a 'Shoa' [calamidade] que trarão consigo, porque usaremos todas as nossas forças para nos defender." [1]

Em julho de 2014, Ayelet Shaked, membro do parlamento israelita e ministro da Justiça, pediu o genocídio das mães das "cobras", durante o conflito de Gaza, uma semana depois de o adolescente palestino Muhammad Abu Khadeir ter sido capturado e queimado vivo por seis jovens judeus israelitas: "Por trás de cada terrorista estão dezenas de homens e mulheres, que apoiam e permitem as suas ações. São todos combatentes inimigos, e o seu sangue estará em todas as suas cabeças. Agora isto também inclui as mães dos mártires, que os enviam para o inferno com flores e beijos. Deveriam ir com os seus filhos, nada seria mais justo. Eles devem ir, assim como as casas físicas em que criaram as cobras. Caso contrário, mais cobras pequenas serão lá criadas"[2].

Em agosto de 2014, Moshe Feiglin, membro do partido Likud de Benjamin Netanyahu, pediu a destruição de Gaza e propôs um plano detalhado para realocar os palestinos em campos na área fronteiriça do deserto do Sinai. Afirmou ele: "As IDF [Israel Defense Forces] assumirão o controle de toda a faixa de Gaza, usando todos os meios necessários para minimizar os danos dos nossos soldados, sem quaisquer outras considerações."[3]

Em 10 de outubro, o ministro da Defesa, Yoav Gallant, declarou: "Estamos a lidar com animais e responderemos em conformidade (...) Estamos a isolar Gaza. Sem eletricidade, sem comida, sem água, sem combustível."

No mesmo conflito, o ministro do Interior israelita, Eli Yishai, expressou o desejo de "fazer Gaza voltar à Idade Média".

Benny Gantz, que comandou as forças israelitas durante a ofensiva de 2014 e depois se tornou ministro da Defesa, declarou: "Gaza vai arder. Não há outra possibilidade."

Benjamin Netanyahu, referindo-se a Gaza como a "Cidade do Mal", afirmou num discurso televisionado: "Vamos transformar em ruínas todos os lugares onde o Hamas se esconde".[4]

Estas declarações têm uma semelhança com as feitas pelo SS-Brigadeführer Jürgen Stroop frente ao Gueto de Varsóvia. Existem diferenças significativas entre o Gueto de Varsóvia e a Faixa de Gaza?

"Os habitantes do gueto não tinham apenas construído abrigos antibombas, mas verdadeiros bunkers que comunicavam entre todo o gueto através de corredores subterrâneos... Os edifícios foram incendiados, mas antes foi constantemente pedido que as  pessoas os deixassem" ... "As crianças foram mortas porque correram com os pais para o fogo" ou porque "saltaram dos edifícios em chamas por vontade própria."[5]

Numa população de 2,3 milhões de pessoas, a superlotação da Faixa de Gaza compreende mais de um milhão de crianças e adolescentes. Quantos órfãos, quantas viúvas, quantos enlutados serão necessários para reconhecer a atual intervenção militar israelita em Gaza como um genocídio?

A infraestrutura de Gaza – escolas, hospitais, centros de saúde, empresas, rede de abastecimento de água e moradias urbanas – é alvo de bombardeios. O diretor do Programa de Assistência da ONU aos Territórios Palestinos, Roberto Valent, estimou em entrevista ao correspondente da Associated Press que levaria pelo menos 30 anos para reconstruir os edifícios destruídos pelo exército israelita desde a ofensiva anterior, em 2014. Poucos edifícios foram reconstruídos desde então, dado o bloqueio de Israel às importações de cimento e desde a tomada do poder pelo marechal Abdel Fattah Al-Sissi, no Egito.


"Gaza é uma enorme prisão. Praticamente toda a atividade industrial cessou", segundo Paz Fernández, responsável pelas relações externas da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA). Os Estados Unidos reduziram significativamente o seu financiamento para a UNRWA durante o governo Trump. O Produto Interno Bruto (PIB) per capita anual em Gaza é inferior a US$ 2 000, em comparação com quase US$ 40 000 em Israel. O bloqueio israelita a Gaza desde 2007 e os bombardeios israelitas levaram ao virtual desaparecimento da base industrial e manufatureira. Em julho de 2015, a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento estimou que a Faixa de Gaza já não seria economicamente viável  em 2030. Qual será a sua situação após a atual ofensiva israelita?

Qual foi o objetivo da conferência realizada no Cairo em outubro de 2014, durante a qual foi decidida a ajuda internacional para reconstruir as instalações destruídas de Gaza, se essas instalações, supondo que tenham sido reconstruídas, são novamente destruídas por Israel impunemente? Pode-se lembrar o Aeroporto Internacional de Gaza, cuja construção custou US$ 90 milhões de doadores internacionais, inaugurado por Yasser Arafat e pelo presidente Bill Clinton em novembro de 1998, e destruído em 2001 e 2002 por bombardeiros e escavadoras israelitas. Isto sem falar nos cerca de 200 centros humanitários construídos com financiamento da União Europeia e destruídos pelo exército israelita em 2013 e 2014, segundo revelações da Agência das Nações Unidas para a Palestina, sem que nenhuma compensação tenha sido exigida a Tel Aviv.

Todos os visitantes – limitados a jornalistas e membros de organizações não-governamentais e sujeitos à aprovação das autoridades israelitas – que permanecem na Faixa de Gaza regressam chocados e consternados. O contraste entre a rica sociedade israelita e a sociedade palestina, privada até das infraestruturas mais básicas, é gritante e injusto. A liberdade de circulação palestina dentro do seu próprio território está sujeita aos procedimentos humilhantes dos omnipresentes postos de controle israelitas. Em 2002, o chefe das Forças de Defesa de Israel, Moshe Yaalon, declarou publicamente que os palestinos precisavam "se convencer, no fundo dos seus corações, de que são um povo derrotado".

Gaza tem mais de 2 000 órfãos, segundo a Unicef, e cerca de 5 000 palestinos estão detidos em Israel. Desde o início da ocupação, em 1967, o número de palestinos detidos em prisões israelitas foi estimado em 750 mil pelo ex-relator especial da ONU para os territórios palestinos, Richard Falk, o que representa quase 40% da população palestina masculina em Gaza e na Cisjordânia. O relator da ONU foi expulso de Israel em dezembro de 2008 e proibido de entrar em Gaza[6].

A detenção administrativa em Israel permite o encarceramento por 6 meses, renovável sem acusação. De acordo com a organização humanitária israelita B'Tselem, 8 000 menores palestinos foram condenados por tribunais israelitas entre 2000 e 2015, principalmente por atirar pedras. No seu sítio, a organização lista os nomes de menores palestinos mortos por atiradores do exército israelita por lhes atirarem pedras. No entanto, a justiça israelita proibiu-os de mencionar na rádio os nomes e sobrenomes dessas jovens vítimas palestinas. 


Em julho de 2014, a organização publicou um vídeo em que uma criança de cinco anos foi presa e detida pelos militares israelitas por atirar uma pedra. A Unicef divulgou um duro relatório em fevereiro de 2013 sobre os maus-tratos a esses menores palestinos, descritos como "sistemáticos, generalizados e institucionalizados"

Em abril de 2012, Israel impediu 1200 ativistas pacifistas de viajar para a Cisjordânia como parte de uma iniciativa de solidariedade para financiar uma escola internacional na cidade de Belém, e dezenas deles, incluindo pacifistas israelitas, foram detidos. Essa situação evidencia, após a dramática interceptação do pacífico navio turco Mavi Marmara pela marinha israelita em águas internacionais em maio de 2010, que se dirigia simbolicamente para Gaza, a determinação de Israel em manter uma população isolada, humilhada e perpetuamente em quarentena. Celso Amorim, que foi ministro das Relações Exteriores do governo Lula, admitiu em entrevista à imprensa egípcia em maio de 2012 que o Brasil nunca conseguiu, apesar de um encontro pessoal com Benjamin Netanyahu, obter autorização para financiar e construir um hospital na Faixa de Gaza. 

A população de Gaza sofreu particularmente com o golpe contra o presidente egípcio, Mohamed Morsi, em 3 de julho de 2013. Antes desta data, estimava-se que cerca de 1 200 pessoas viajavam diariamente entre o Egito e Gaza através da passagem fronteiriça de Rafa. No entanto, esse número foi reduzido em quatro quintos após o golpe. Mais de 15 mil palestinos estão numa lista de espera para entrar no Egito, incluindo médicos e estudantes que têm bolsas de estudo em universidades estrangeiras, de acordo com o Observatório EuroMid de Direitos Humanos. É difícil acreditar que a diplomacia francesa esteja agora a convocar o marechal Abdel Fattah Al-Sissi para mediar o conflito entre Israel e Gaza, na esperança de garantir a libertação dos reféns franceses detidos pelo Hamas. 

Em fevereiro de 2010, Michèle Aliot-Marie, então ministra da Justiça da França, emitiu uma diretiva sobre política criminal, com o objetivo de processar qualquer ativista que incentivasse os consumidores a boicotar bens e produtos fabricados nos territórios ocupados por Israel. Esta diretiva foi renovada pelo novo ministro da Justiça, Dupont-Moretti, em outubro de 2020, apesar de o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos ter condenado a França em junho de 2020. O tribunal considerou esta iniciativa uma violação da liberdade de expressão, protegida pelo artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.  Na sua decisão, os juízes também citaram um relatório especial sobre liberdade de religião ou crença apresentado à Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de setembro de 2019, que afirmou que "no direito internacional, o boicote é considerado uma forma legítima de expressão política, e as manifestações não violentas de apoio a boicotes são geralmente consideradas liberdade de expressão legítima que deve ser protegida".

Este texto destaca o contraste entre o tratamento dado aos indivíduos que defendem o boicote aos produtos israelitas na França e a autorização dada, ou tomada por eles, à Embaixada de Israel, para organizar eventos de recrutamento na Grande Sinagoga de La Victoire, em Paris, com oficiais das Forças de Defesa de Israel (IDF). Estes procedimentos visam recrutar jovens franceses, judeus e não judeus, para participar do programa Mahal, servindo nas IDF nos territórios ocupados. O sites oficial deste recrutamento, "Lone Soldiers", registou 236 jovens franceses participantes em 2013, e 40% deles participaram na ofensiva de Gaza em 2014. Um deles perdeu a vida (Jordan Bensenhoum). Em 14 de janeiro de 2014, o Jerusalem Post noticiou os "parabéns" do embaixador francês em Tel Aviv, Patrick Maisonnave, a "esses corajosos jovens franceses engajados no exército israelita"

A questão que aqui se coloca é saber qual é  o compromisso mais legítimo: o de um jovem francês, muçulmano ou não, ao lado dos palestinos contra a expansão ilegal dos colonatos israelitas nos territórios palestinos, condenados pelas Nações Unidas, ou o de um jovem francês, independentemente da sua origem religiosa, que se junta às forças armadas de uma potência ocupante, que foi considerada ilegal pelas Nações Unidas? 

O general De Gaulle observou certa vez com lucidez: "Israel agora organiza uma ocupação nos territórios que capturou que só pode ser acompanhada de opressão, repressão e expulsão; e, por sua vez, qualificará a resistência contra ela como terrorismo. […] Assistimos à emergência de um Estado israelita beligerante, resoluto no seu desejo de expansão. E então as medidas que toma para duplicar a sua população através da imigração  leva-nos a pensar que o território adquirido não seria suficiente durante muito tempo e que iria  aproveitar todas as oportunidades disponíveis para crescer"[7]. Expansão dos assentamentos israelitas: 5 000 colonos israelitas em 1981; 350 000 hoje nos territórios ocupados e 250 000 em Jerusalém Oriental. 

Quanto à União Europeia, perdeu toda a influência ao recusar-se a reconhecer a vitória eleitoral do Hamas em Janeiro de 2006 – uma vitória perfeitamente legal – e ao rejeitar qualquer diálogo com os seus líderes, mesmo quando estes pareciam mais abertos (o Acordo de Meca, a Cimeira de Riad, um Estado palestino dentro das fronteiras de 1967). A União Europeia, que deveria ter tentado reconciliar os palestinos, aproximar Gaza e a Cisjordânia e envolver-se mais com as realidades locais (incluindo o reconhecimento de que o Hamas, apesar das represálias israelitas, continua a ser particularmente popular na Faixa de Gaza), opera agora apenas à sombra dos Estados Unidos, servindo de subcontratante para a ajuda humanitária.

As novas medidas adotadas em 28 de junho de 2013, destinadas a impedir qualquer financiamento do orçamento da União Europeia para cooperação ou intercâmbio com instituições israelitas localizadas nos territórios ocupados desde 1967, são marginais em comparação com o comércio com Israel, que chega a 40 bilhões de dólares, facilitado por um acordo de associação assinado em 1995. Isto levanta questões, especialmente considerando que a União Europeia assinou um generoso acordo de investigação e inovação  com Israel em junho de 2014 (programa Horizonte 2020) com um orçamento de cerca de 70-80 bilhões de dólares, beneficiando as indústrias de defesa e segurança que fabricam os seus componentes nos territórios ocupados (Motorola, Aeronautic Defense Systems, Israel Aerospace Industries). 

A chegada inesperada e as declarações de Ursula Von der Leyen a Telavive, sem mandato dos vinte e sete países europeus, e a decisão unilateral, depois contrariada, do comissário europeu Olivér Várhely de suspender a ajuda à Palestina na sequência dos ataques do Hamas refletem a ausência de uma política europeia coerente. Foram necessárias cinco horas de discussão em Bruxelas para que os líderes da União Europeia expressassem a sua "profunda preocupação" em 26 de outubro de 2023 com a situação humanitária em Gaza e encontrassem um compromisso semântico entre "pausa", "acesso" e "corredor humanitário", com vários países da UE rejeitando o "cessar-fogo" solicitado pelas Nações Unidas.

O presidente do Conselho Europeu teve a audácia de pôr no tuiter: "A união é a nossa força. Acordo com as  conclusões do Conselho Europeu sobre a situação no Médio Oriente". E enquanto a Unicef contabilizou três mil crianças mortas em bombardeamentos israelitas na noite de 26 de outubro, o comunicado repetiu o refrão já conhecido das autoridades americanas: "Israel tem o direito de se defender de acordo com o Direito Internacional Humanitário". O ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, descreveu o bombardeamento israelita de civis em Gaza como ações que foram "além do objetivo da autodefesa" e chamou à retaliação de Israel  "punição coletiva" a civis palestinos.

O Hamas tem uma rede eficiente de associações de caridade dentro de uma população humilhada e desesperada. A sua vitória nas eleições de 2006 é inseparável da radicalização da sociedade palestina diante da ocupação e do bloqueio israelitas. O Hamas foi criado em dezembro de 1987 durante a primeira Intifada.  Ahmed Yassin, cofundador do Hamas, foi o seu líder espiritual – paraplégico desde a infância e quase cego – até ao seu assassinato por Israel em 22 de março de 2004. O seu assassinato foi condenado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas os Estados Unidos vetaram a resolução. O seu sucessor, Abdel Aziz al-Rantissi, também foi assassinado. 

O atual líder, Khaled Meschal, foi vítima de envenenamento por agentes israelitas na Jordânia em 1997 e só foi salvo devido à reação vigorosa do rei Hussein e do presidente Clinton, que exigiram o antídoto a Tel Aviv. Salah Shahade, um dos líderes do braço armado do Hamas (Brigadas Izz ad-Din al-Qassam), sucumbiu a um assassinato israelita em 22 de julho de 2002, quando a sua casa em Gaza foi atacada, resultando na morte de 15 familiares, incluindo 7 crianças, e 150 feridos nas proximidades.

O número dois do Hamas, Adnan Al Ghoul, foi assassinado por um drone israelita em Gaza em outubro de 2004, após a morte dos seus dois filhos. Mahmoud al-Mabhouh, um proeminente líder do movimento, foi assassinado em 14 de junho de 2010, num hotel de Dubai, por agentes do Mossad que possuíam passaportes europeus falsificados pertencentes a cidadãos israelitas com dupla nacionalidade. Ahmed al-Jabari, um alto funcionário do Hamas, que estava detido em prisões israelitas há 13 anos e estava envolvido em negociações com o governo israelita com a ajuda do pacifista israelita Gershon Baskin, foi assassinado em novembro de 2012. Mohammed Deif, líder da ala militar do Hamas, foi vítima de um assassinato seletivo em agosto de 2014, juntamente com a sua esposa, um filho de 8 meses e outras três crianças com a mãe. O seu sucessor, Bassem Issa, foi morto em 11 de maio do ano passado, juntamente com outros líderes do Hamas, durante ataques aéreos direcionados. O ex-comandante da Força Aérea israelita (2000-2004), Dan Halutz, gabou-se à imprensa de ter supervisionado entre 80 e 100 assassinatos extrajudiciais com uma "taxa de sucesso de 90%"

As vendas maciças de armas na região, a ajuda militar americana a Israel (o maior beneficiário do mundo, com US$ 38 bilhões para a década de 2019-2028) e as execuções sumárias de líderes do Hamas claramente não são favoráveis à paz. Só o congelamento dos contratos de armamento e o envolvimento do Hamas em conversações exploratórias criariam as condições necessárias para a negociação. Afinal, organizações sionistas como Irgun Zvaï, liderado por Menahem Begin e Eitan Livni, e Lehi, liderado por Avraham Stern e Yitzhak Shamir, o Congresso Nacional Africano de Nelson Mandela, o Exército Republicano Irlandês Provisório de Martin Mc Guiness e Gerry Adams, a Organização para a Libertação da Palestina de Yasser Arafat, e grupos como os Tupamaros,  designadamente José Mujica, que passou quatorze anos em prisões militares uruguaias e depois se tornou o presidente eleito do Uruguai de 2010 a 2014, foram todas inicialmente rotuladas como organizações terroristas antes de serem reconhecidas como parceiros de negociação indispensáveis. Enquanto alguns países e entidades, incluindo Israel e Estados Unidos, designaram o Hamas como uma organização terrorista, outros, incluindo algumas nações árabes, China, Irã e a maioria dos países sul-americanos não. O estatuto do Hamas é uma questão complexa e politicamente pesada, e não existe uma só classificação universalmente aceite.

Israel há muito tenta fugir da questão palestina, como ilustra o slogan falacioso "uma terra sem povo, para um povo sem terra" (em 1948, 750 mil palestinos foram expulsos e 500 aldeias foram destruídas). Israel há muito tenta negar a existência de um movimento nacional palestino, rotulando-o como uma organização terrorista. A melhor garantia para a segurança de Israel é a restauração da dignidade da população palestina.

Em 25 de outubro de 2023, o secretário-geral das Nações Unidas expressou o que a maioria das chancelarias europeias não ousa dizer publicamente: "É importante também reconhecer que os ataques do Hamas não aconteceram no vácuo. O povo palestino foi submetido a 56 anos de ocupação sufocante. Eles viram suas terras constantemente devoradas por assentamentos e atormentadas pela violência; a sua economia sufocada; o seu povo deslocado e as suas casas demolidas"

A resolução da questão palestina ultrapassa em muito o âmbito do conflito israel-árabe: o terrorismo islâmico deriva em grande parte e alimenta-se da questão palestina. Diz respeito a todas as nações. É "a mãe de todos os males", como expressa o professor franco-americano Scott Atran. Seria aconselhável que as autoridades francesas estivessem cientes disso num país onde 10 a 15% da população é de fé muçulmana e onde a percentagem de muçulmanos no sistema prisional é alegadamente quatro vezes superior. 

A proibição de manifestações de solidariedade em Paris e nas principais cidades provinciais de apoio aos palestinos durante a recente ofensiva militar israelita em Gaza, decretada pelo ministro do Interior francês, Gérald Darmanin, citando a "natureza antissemita" desses protestos, demonstra como a questão palestina ainda está a ser  menosprezada, embora esteja presente em cada um de nós e, sem dúvida, nas nossas mesquitas e periferias urbanas. Há 15% de muçulmanos em Londres e Paris, 25% em Bruxelas, 30% em Birmingham. Em alguns subúrbios franceses, essa proporção pode chegar a 50%. Uma proporção que deveria encorajar os governos a adotar uma abordagem mais objetiva da questão palestina. 

A procissão de líderes ocidentais visitando indecentemente Tel Aviv durante uma ofensiva israelita total em Gaza é notável. Podemos entender e apoiar calorosamente a Torre Eiffel  iluminada com as cores de Israel como um sinal de solidariedade após os assassinatos pelos militantes do Hamas em 7 de outubro. É menos compreensível, tendo em conta a morte de três mil crianças palestinianas em bombardeamentos israelitas, que a Torre Eiffel não seja também iluminada com as cores da Palestina. Quanto à proibição de quaisquer manifestações pró-palestinas pelo ministro do Interior, Gérald Darmanin, é aí que os limites da democracia francesa se tornam visíveis como a islamofobia entre as elites francesas.

Não podemos confundir causa e efeito. O antissemitismo nas suas expressões mais violentas teve origem principalmente na Europa dentro da Igreja e de movimentos de extrema direita, incluindo a Inquisição, expulsões, pogroms e a enorme tragédia do Holocausto, que é o exemplo mais marcante desse mal abjeto. Agora é principalmente o resultado de jovens imigrantes ou filhos de imigrantes que agora são cidadãos franceses, tipicamente do norte da África e terras islâmicas, como evidenciado por tragédias e ataques recentes em França desde 2006. Pode separar-se isto da repressão sofrida pelas populações palestinas há mais de meio século, da humilhação, do desprezo e da dor diária que essas populações sofrem na sua terra natal, da qual são excluídas por militares ou marginalizadas? 

Será que os habitantes de Gaza, perante estes massacres de que são vítimas, vão resignar-se? Ou um novo monstro nascerá das cinzas e ruínas de Gaza? O monstro mencionado por Nietzsche[8]. 


Notas:

[1] "Ministro israelita alerta sobre 'holocausto' palestino", The Guardian, 29 de fevereiro de 2008.

[2] Mira Bar Hillel, "Why I'm on the brink of burn my Israeli passport", Independent, 11 de julho de 2014

[3] Moshe Feiglin, "Meu esboço para uma solução em Gaza", Arutz Sheve, 15 de agosto de 2014.

[4] Netanyahu: "Atacaremos o Hamas em todos os lugares em que ele opera; Os habitantes de Gaza devem 'sair agora'", The Times of Israel, 9 de outubro de 2023

[5] Trechos da transcrição do julgamento, Le Monde Juif, 1978 n°90 p 59-87 (cairn.info)

[6] Minha expulsão de Israel, Richard Falk, The Guardian, 19 de dezembro de 2008

[7] Charles de Gaulle, Discours et Messages, volume 5, janeiro de 1966-abril de 1969, Plon, Paris, 1970.

[8] "Quem luta com monstros deve tomar cuidado para não se tornar um monstro. E se você olhar para um abismo por um longo tempo, o abismo também olha para você (Wer mit Ungeheuern kämpft, mag zusehn, dass er nicht dabei zum Ungeheuer wird. Und wenn du lange in einen Abgrund blickst, blickt der Abgrund auch in dich hinein)Friedrich Nietzsche, «"Jenseits von Gut und Böse"(Além do bem e do mal)

Fonte: https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/as-criancas-de-gaza-276196 

Edição: Página 1917


 


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