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quinta-feira, 22 de junho de 2023

Dez Anos Depois, o Heroísmo de Snowden Brilha Ainda Mais

JAMES BOVARD*

8 de junho de 2023

Edward Snowden

Esta semana faz dez anos que Edward Snowden começou a chocar o mundo com suas revelações sobre crimes de vigilância federal. Infelizmente, muitos dos meios de comunicação que usaram suas revelações de informações confidenciais há muito o ignoram ou se juntaram à descarada avalanche que pede sua condenação.

Snowden prestou um serviço heróico ao expor aos norte-americanos a invasão da sua privacidade levada a cabo por Washington. A “recompensa” de Snowden  foi o exílio na Rússia sem chance de um julgamento justo caso ele voltasse para os Estados Unidos. Mas, como ele mesmo afirmou corajosamente: "Prefiro ser apátrida do que sem voz." Ele também explicou por que vazou as informações classificadas: "Eu não poderia, em sã consciência, permitir que o governo dos Estados Unidos destruísse a privacidade, a liberdade na Internet e as liberdades básicas das pessoas em todo o mundo com esta enorme máquina de vigilância que eles estão construindo secretamente." 

Para reconhecer a contribuição de Snowden para a liberdade, convem repassar o panorama político e jurídico anterior as suas revelações. Em 2008, as denúncias do senador Barack Obama sobre os grampos sem mandado judicial do governo Bush garantiram sua imagem como defensor das liberdades civis. Em campanha para presidente, Obama prometeu “acabar com as escutas telefônicas ilegais de cidadãos estadounidenses…. Não mais ignorar a lei quando ela é inconveniente.” Infelizmente, Obama não prometeu não ignorar a lei quando era “muito, muito conveniente”.

Barack Obama: espião-chefe norteamericano

Quando Obama conquistou a indicação presidencial do Partido Democrata, ele voltou atrás e votou pela concessão de imunidade às empresas de telecomunicações que traíram seus clientes para o Tio Sam. Este foi um indicador para as futuras violações constitucionais. Depois que Obama assumiu o cargo, seus nomeados expandiram rapidamente as apreensões de dados pessoais dos norteamericanos pela Agência de Segurança Nacional (NSA, sigla em inglês). O Washington Post caracterizou o primeiro mandato de Obama como “um período de crescimento exponencial do recolhimento de dados pela NSA”.

As revelações sobre vigilância ilícita que começaram após o 11 de setembro continuaram independentemente do mantra de Obama “Esperança e Mudança”. Pouco depois da posse de Obama, o ex-analista da NSA, Russell Tice declarou que a NSA estava monitorando “todas as comunicações dos estaounidenses. Faxes, telefonemas e suas comunicações por internet." Tice também revelou que a NSA tinha como alvo jornalistas e agências de notícias para escutas telefônicas. As revelações de Tice não conseguiram receber atenção da mídia.

Em junho de 2009, a NSA admitiu que havia coletado acidentalmente as informações pessoais de um grande número de cidadãos. O New York Times informou que “o número de comunicações individuais coletadas indevidamente poderia chegar a milhões”. Mas não foi um crime; foi meramente uma “coleta excessiva” inadvertida de dados pessoais dos estadunidenses que a NSA reteve por (pelo menos) cinco anos.

Em 2010, o Washington Post informou que “a cada dia, os sistemas de coleta da [NSA] interceptam e armazenam 1,7 bilhão de e-mails, telefonemas e outros tipos de comunicação”. Em 2011, a NSA expandiu um programa para fornecer informações de localização em tempo real de cada estadunidense com um telefone celular, adquirindo mais de um bilhão de registros de telefones celulares por dia da AT&T. Apesar de tudo isso, a mídia continuou retratando Obama como um salvador das liberdades civis.

Obama perpetuou doutrinas legais perversas da era Bush para proteger totalmente a vigilância federal do escrutínio judicial. Depois que a Suprema Corte aceitou um caso de escutas telefônicas sem mandado em 2012, o governo Obama instou os juízes a arquivar o caso. Um editorial do New York Times classificou a posição do governo como “uma pegadinha particularmente cínica: como os grampos são secretos e ninguém pode dizer com certeza se suas ligações foram ou serão monitoradas, ninguém tem legitimidade para processar a vigilância.”

A Suprema Corte endossou a vigilância

Argumentos cínicos bastaram para cinco juízes. O juiz Samuel Alito, escrevendo pela maioria, declarou que o tribunal era avesso a conceder legitimidade para desafiar o governo com base em “teorias que exigem adivinhação” e “nenhum fato específico” que prove os objetivos federais, com base em temores de “dano futuro hipotético”. A Suprema Corte insistiu que o governo já oferecia muitas salvaguardas – como a Corte da Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira (FISA) – para proteger os direitos dos estadunidenses. O professor de direito Stephen Vladeck comentou sobre a decisão: “O caixão está se fechando sobre a possibilidade de cidadãos privados e grupos de liberdades civis questionarem as políticas antiterroristas do governo”.

Três meses depois, jornais de todo o mundo começaram a publicar documentos confidenciais vazados por Snowden. Os norteamericanos aprenderam que a NSA pode grampear quase qualquer telefone celular no mundo, explorar jogos de computador como Angry Birds para roubar dados pessoais, acessar o e-mail de qualquer pessoa e o histórico de navegação na web, penetrar remotamente em quase todos os computadores e quebrar a grande maioria da criptografia de computador. A NSA usou aplicativos do Facebook e do Google para enviar malware aos indivíduos visados. A NSA filtrou quase 200.000.000 de registros por mês de contas privadas em nuvem de computadores. O Departamento de Justiça de Obama decretou secretamente que todos os registros telefônicos de todos os estadunidenses eram “relevantes” para as investigações sobre terrorismo e que a NSA poderia, portanto, legitimamente apreender os dados pessoais de todo o mundo.

Snowden expôs o estado de vigilância

Snowden revelou como a NSA realizou secretamente “a mudança mais significativa na história da espionagem americana, desde a vigilância direcionada de indivíduos até a vigilância em massa de populações inteiras”. A NSA criou um “repositório capaz de receber 20 bilhões de 'eventos' diariamente e disponibilizá-los aos analistas da NSA em 60 minutos”. A NSA é capaz de capturar e armazenar um bilhão de vezes mais informações do que a polícia secreta Stasi da antiga Alemanha Oriental, uma das agências de espionagem mais odiosas do pós-guerra. Snowden comentou mais tarde: “A vigilância sem suspeita não se torna aceitável simplesmente porque está vitimando apenas 95 por cento do mundo em vez de 100 por cento”.

Buscando neutralizar a controvérsia, Obama justificou a vigilância da NSA como simplesmente “uma troca que fazemos…. Dizer que há uma compensação não significa, de alguma forma, que abandonamos a liberdade. Acho que ninguém diz que não somos mais livres porque temos postos de controle nos aeroportos.”

No Capitólio, a resposta às revelações de Snowden variou do vazio ao tortuoso. O presidente da Câmara, John Boehner, declarou: “Quando você olha para esses programas, há salvaguardas claras. Nenhum americano será espionado de forma alguma, a menos que esteja em contato com alguns terroristas em algum lugar do mundo.” Outros líderes do Congresso rapidamente denunciaram Snowden como um “traidor”. O presidente do Comitê de Inteligência da Câmara, Mike Rogers (R-Mich.) e o ex-chefe da NSA, Michael Hayden, brincaram publicamente sobre o governo eliminar Snowden. Rogers ganhou o prêmio “Estúpido da Semana” ao defender a vigilância ilícita: “Você não pode ter sua privacidade violada se não souber que sua privacidade foi violada”.

Independentemente das provas apontadas por Snowden, os porta-vozes da administração Obama insistiram que a NSA visava apenas indivíduos ligados ao terrorismo, mas a definição da NSA de suspeito de terrorismo era ridiculamente ampla, incluindo “alguém que pesquisa na web por coisas suspeitas”. Se alguém usasse criptografia para seus e-mails, isso por si só justificava a escuta telefônica. Snowden comentou em 2014: “Se eu quisesse obter uma cópia do e-mail de um juiz ou senador, tudo o que eu precisava fazer era inserir esse seletor no XKEYSCORE”, um programa da NSA que não exigia mandado da FISA ou de qualquer outro tribunal.

O presidente Obama procurou encerrar a controvérsia proclamando com audácia: “Não há espionagem para os americanos”. O New York Times intitulou seu relatório sobre o esforço de relações públicas de Obama: “O presidente se move para diminuir as preocupações com a vigilância; fala de uma nova transparência.” Falar era fácil.

O Washington Post analisou um conjunto de 160.000 conversas/tópicos de e-mail secretos (fornecidos por Snowden) que a NSA interceptou e descobriu que nove em cada dez titulares de contas não eram os “alvos de vigilância previstos, mas foram pegos em uma rede que a agência lançou para outros." Quase metade dos indivíduos cujos dados pessoais foram inadvertidamente confiscados eram cidadãos norteamericanos. Os arquivos “contam histórias de amor e desgosto, relações sexuais ilícitas, crises de saúde mental, conversões políticas e religiosas, angústias financeiras e esperanças frustradas”, observou o Post . Se um cidadão escrevesse um e-mail em um idioma estrangeiro, os analistas da NSA supunham que se tratava de estrangeiros que poderiam ser vigiados sem mandado.

As decisões judiciais da FISA “criaram um conjunto de leis secretas dando à Agência de Segurança Nacional o poder de acumular vastas coleções de dados sobre os americanos”, informou o New York Times em 2013. As decisões confidenciais (vazadas por Snowden) mostraram que os juízes da FISA aprovaram apreensões maciças de dados pessoais dos americanos que contradizem flagrantemente as decisões da Suprema Corte sobre a Quarta Emenda. The Times observou que o tribunal da FISA “tornou-se quase uma Suprema Corte paralela, servindo como o árbitro final em questões de vigilância” – e quase sempre dando às agências federais todo o poder que buscavam. A grande maioria dos membros do Congresso não sabia que um tribunal secreto havia anulado secretamente grande parte da Declaração de Direitos. Isso não impediu Obama de proclamar que o tribunal da FISA era “transparente” – embora apenas a Casa Branca pudesse ver.   

As revelações de Snowden indignaram alguns juízes. Em dezembro de 2013, o juiz federal Richard Leon emitiu uma decisão denunciando o regime de vigilância da NSA como “quase orwelliano”: “Não consigo imaginar uma invasão mais indiscriminada e arbitrária do que essa coleta e retenção sistemática e de alta tecnologia de dados pessoais de praticamente todos os cidadãos. para fins de consulta e análise sem prévia autorização judicial.”

Obama procurou suavizar a controvérsia selecionando um painel de especialistas que, segundo esperava, justificaria sua vigilância. Mas o painel relatou que não houve um único caso em que o levantamento de dados telefônicos tenha sido necessário para impedir um ataque terrorista. O relatório do painel também alertou: “Os americanos nunca devem cometer o erro de confiar totalmente em nossos funcionários públicos”. O painel concluiu que a “coleção em massa de registros telefônicos de cidadãos norte-americanos serviu de pouca utilidade no combate ao terrorismo”, informou a ABC News. Richard Clarke, membro do painel, comentou: “Muito poucos dados coletados neste programa foram úteis”. Mas, como observou Snowden, “esses programas nunca foram sobre terrorismo: eles são sobre espionagem econômica, controle social e manipulação diplomática. Eles são sobre poder.”

A governo Obama fez poucas mudanças substanciais em resposta à denúncia de Snowden sobre a ampla atividade criminosa. O autor e especialista da NSA, James Bamford, observou pouco antes da eleição de 2016: “Em seus dois mandatos, Obama criou o estado de vigilância mais poderoso que o mundo já viu”. Apesar dos tumultos sobre as revelações de Snowden, nem o Congresso nem os tribunais federais colocaram un freio no Estado de Vigilância.

Snowden observou: “O consentimento dos governados não é consentimento se não for informado”. Tal consentimento para Washington tornou-se cada vez mais uma miragem. O sigilo generalizado que proliferou na América pós-11 de setembro tornou muito mais difícil para os cidadãos controlar seus governantes. Independentemente da saúde da democracia estadunidense, as advertências de Snowden sobre a “arquitetura da opressão” são mais relevantes do que nunca.

Outra lição de Snowden para nossa democracia é a inutilidade da obediência passiva. Um grande número de norte-americanos presume que estará a salvo de transgressões do governo ou de outros desastres federais se simplesmente mantiverem a cabeça baixa e não reclamarem. Ao arruinar a resistência ao governo, no entanto, a vigilância libera os governantes para provocar maiores danos. Se os políticos arrastarem esta nação para uma grande guerra, manter a boca fechada não irá protegê-lo contra os mísseis que se aproximam.

Os cidadãos não podem consentir com a vigilância ilegal do governo sem renunciar ao seu direito a privacidade. Não há razão alguma para as pessoas confiarem em programas federais secretos mais do que Washington confia nos cidadãos. A maior ilusão é pensar que os cidadãos estadunidenses estarão mais seguros depois que os federais dizimarem ainda mais sua privacidade.

*James Bovard é o autor de Attention Deficit Democracy , The Bush Betrayal , Terrorism and Tyranny , e outros livros. Bovard faz parte do Conselho de Colaboradores do USA Today. Ele está no Twitter em @jimbovard. Seu site é www.jimbovard.com   Este ensaio foi originalmente publicado pela Future of Freedom Foundation.

Fonte: https://www.counterpunch.org/2023/06/08/ten-years-later-snowdens-heroism-shines-ever-brighter/

Edição: Página 1917

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