07/05/23
Houve um tempo em que as "recomendações" do FMI sobre como reorganizar a economia eram lidas, defendidas e executadas como se fossem divinamente mandatadas. Eram os anos 90 do século passado quando, de cada estudo dos rumos da economia mundial ou acordo alcançado com este ou aquele país, não só emanava um otimismo histórico substancial com o que se propunha, como também era acompanhado por uma difusão colossal, categórica e eficiente, que ia de ministros da economia a parlamentares; assessores econômicos de governos; renomados empresários locais; universidades de prestígio a comentaristas de televisão e jornais; acadêmicos a comentadores de café, que lambiam os lábios a cada frase, a cada dado, a cada sugestão dessa organização internacional.
Eram os tempos do "grande consenso social" tecido por uma profusa rede de opinião pública dedicada a consentir que os sacrifícios coletivos da perda de direitos, da expropriação de bens públicos e do abandono estatal, seriam redimidos com o brilhante sucesso individual de se tornar empresário, acionista ou diretor de empresa. Privatizar tudo, desproteger tudo e deixar que o livre mercado cuidasse do resto foram os credos fundadores de um novo mundo de empreendedores, que imediatamente os clérigos dessa religião acompanharam, no meio de memoriais e incensos, com frases ocas como "encolher o Estado para ampliar a nação", "país dos vencedores", "distribuição a conta-gotas" ou "fim da história".
Mas, no alvorecer do século XXI, tudo começou a fraturar-se. A pobreza, escondida sob o tapete do "empreendedorismo", saltou pelo ar. Desigualdades brutais quebraram consensos e o livre mercado correu a ajoelhar-se diante do Estado para exigir resgates financeiros ou subsídios; primeiro, diante da crise das hipotecas subprime; depois, frente ao grande confinamento da COVID-19; depois, diante do poder produtivo da China; depois, diante do aumento do preço dos combustíveis; depois, diante de falências bancárias; depois, face às alterações climáticas. A excecionalidade tornou-se a regra.
E agora acontece que, desse grande princípio ordenador supremo do capitalismo tardio, o "livre mercado", não resta nada além da nostalgia. Em 2020, o Estado salvou as empresas e bolsas de valores das grandes economias do Norte. O comércio mundial e o capital transfronteiriço abrandaram estruturalmente o seu crescimento. Os subsídios à energia, aos alimentos e ao consumo deslocaram a livre oferta e a procura. A "segurança nacional" ou o expansionismo geopolítico mataram a lei da oferta e da procura para definir os preços dos combustíveis, das redes de telecomunicações, dos microprocessadores ou da transição energética. Europeus e norte-americanos recompensam com dinheiro público empresários que retraem as suas cadeias de valor para cada país e punem a eficiência da externalização de custos. O globalismo está a ser substituído pelo nacionalismo econômico e pela geopolítica.
O FMI sabe disso. E arrepende-se infinitamente. Num estudo recente (Fragmentação geoeconómica e o futuro do multilateralismo), ele relata esse recuo catastrófico do livre mercado. Mostra como, depois de um longo fluxo globalista que vai de 1980 a 2010, entrou num refluxo que pode durar décadas. Para isso, fornece dados sobre a contração do comércio mundial de bens, serviços e finanças, em relação ao PIB, de 45% para 33%. O aumento mundial, em até 400%, de medidas restritivas e protecionistas. Dá conta de estatísticas que revelam o aumento substancial da desconfiança social com a globalização (50%) e o crescimento da procura de medidas projetivas (33%). O estudo também fornece dados sobre o terremoto no imaginário coletivo que acompanha tudo isto, vendo como as palavras "segurança nacional", "nearshoring" ou "deslocalização" estão a substituir esmagadoramente o velho léxico mercantilista em instituições internacionais, grandes acionistas e diretores de empresa. Para completar este quadro adverso, o último relatório de abril sobre a economia mundial (World Economic Outlook), mostra como o investimento estrangeiro direto caiu de 5% do PIB em 2008, para menos de 2% em 2022. Para ofuscar o efeito desses eventos, os relatórios também indicam que esses "infortúnios" trarão uma possível queda do PIB mundial da ordem de 2 a 7% nos anos seguintes. Mas, apesar disso, só pode admitir que, longe de ser uma curva no caminho que será corrigida por um regresso imediato e triunfal do livre mercado, essa "desaceleração" é um fato estrutural e de longo prazo.
Dizer estas coisas a uma instituição que durante décadas foi o oráculo do triunfo inevitável do livre mercado não é fácil. Traz traumas internos, frustrações existenciais e uma cascata de contradições quase paranoicas.
Isso já era evidente em 2020, quando, no fim do "grande confinamento", perante a pandemia, o FMI recomendou que os governos dos países aumentassem os impostos sobre os ricos e aumentassem o investimento público, tanto na proteção social como no capital (World Economic Outlook, 2020). Exatamente o oposto daquilo que exigiu durante os 40 anos anteriores. Ainda mais desconcertante é comparar as imposições anteriores aos países "em desenvolvimento" para levantar barreiras tarifárias, abrir os seus mercados e aceitar um mundo sem fronteiras "prejudiciais", com a nova teoria monetarista do semáforo de "compromissos diferenciais" (Outlook, 2023) em que cada país poderá escolher, de forma "pragmática", acordos comerciais irrestritos onde haja acordos globais (sinal verde); acordos regionais, onde não há alinhamento alargado de preferências (semáforo amarelo); e medidas protetoras unilaterais, em que cada governo opta pelos seus próprios interesses internos (sinal vermelho).
Mas onde essa inversão lógica do mundo atinge antinomias grosseiras é quando, no mesmo documento, dois caminhos antagônicos são oferecidos para o mesmo problema. Diante da crise da dívida soberana que nos últimos 5 anos disparou em todo o mundo, o FMI exige, de um lado, "consolidação fiscal", eufemismo para reduzir o investimento público, cortar gastos sociais e despedir trabalhadores, como tenta impor na Argentina.
Mas, por outro lado, dedica-lhe um capítulo inteiro para demonstrar que, pela experiência histórica comparativa em 33 economias de mercado emergentes e 21 economias desenvolvidas, entre 1980 e 2019, os casos de contração fiscal não geraram uma redução significativa do endividamento. E, ao contrário, os dados factuais mostram que a expansão dos gastos fiscais visando o aumento do PIB por meio de um "choque positivo de oferta e procura" reduz significativamente os índices da dívida pública em até um terço. Isto é certamente uma coisa óbvia. Só com o crescimento da economia e das receitas que o Estado tem, é que se podem reduzir as percentagens da dívida e pagar os créditos. Ainda mais num mundo em que há uma retirada estrutural do investimento estrangeiro que está a optar por se refugiar nos países economicamente mais fortes, devido às altas taxas de juros que concedem e à incerteza econômica que corroeu qualquer indício de confiança no futuro.
Milton Friedman, guia espiritual dos tempos neoliberais, recomendou saber "quando a maré está a virar" para tornar efetiva uma doutrina econômica. Significava ter a sensibilidade de entender as mudanças na opinião pública, na atmosfera intelectual e nas pessoas comuns. Ele soube percebê-lo nos anos 70, quando o quadro keynesiano estava a desmoronar-se e, junto com outros, foi capaz de difundir o novo credo econômico. Mas é claro que hoje, para entender a nova "viragem da maré", os seus acólitos do FMI não o fazem com perspicácia suficiente.
Mas onde o desarranjo cognitivo é muito maior, é nos filhos ideológicos dos organismos internacionais da ordem globalista. Portadores de um entusiasmo liberal que compensa um talento reduzido, todo o exército de "analistas econômicos", consultores, professores, políticos e promotores do livre mercado que beberam do dogma derramado do FMI ou do Banco Mundial, ficaram desnorteados. A sua terra plana está a afundar-se e eles não entendem o porquê.
Alguns optaram pelo estupor paralisante. Sentem-se traídos por uma realidade que não se conformava com as suas profecias e mudava as perguntas para as suas respostas. O resultado é a perplexidade diante de uma sociedade que perdeu o rumo. Outros tornaram-se espectros chorosos de uma ordem econômica que se esvaiu juntamente com as suas certezas e, diante das evidências, só podem apegar-se às memórias melancólicas de compromissos para os quais a história ainda não estava preparada.
E finalmente há as crianças zumbis, que são criaturas implacáveis nascidas e alimentadas por um tempo histórico, paradigmas e circunstâncias econômicas que já não existem hoje. O consenso e o otimismo globalista que lhes deram vida morreram como eles. Mas eles ainda não perceberam ou não aceitam; e perambulam furiosamente engolindo os estilhaços corrompidos da velha ordem carregada pela inércia e pelo vento. Ao contrário do espectro, que só vagueia pelos cantos das consciências patéticas, o zumbi é violento e destrutivo. Como já não procura seduzir com o livre mercado, mas impor e sancionar os seus detratores, propõe "dinamitar" as regras econômicas; compete pela velocidade das "terapias de choque" e, há mesmo quem ressuscite propostas mal sucedidas de "vouchers" educativos. São iliberais dispostos a defender um liberalismo à paulada.
Em suma, eles representam a memória fóssil de um fracasso que levou às explosões continentais de 2001-2003. Com a agravante de que, ao contrário de então, prometem não ser "brandos" e pôr os revoltosos na ordem, ou seja, mais desastres em espiral. Talvez seja isso que Gramsci quis dizer quando falava das expressões mórbidas ou monstruosas de uma hegemonia em agonia, própria de um "interregno".
Fonte: http://www.cubadebate.cu/opinion/2023/05/07/el-fmi-y-sus-huerfanos-ideologicos/
Edição: Página 1917
Nenhum comentário:
Postar um comentário