Renildo Souza*
Na China, contudo, a bandeira vermelha do comunismo permanece hasteada, garante o PCCh. Na verdade, há uma contradição entre, de um lado, as convicções, desejos e vontade da retórica dos líderes chineses e, de outro, a realidade, os fatos, a vida concreta de massiva, dominante e crescente estruturação econômica e social do capitalismo dentro da China. A grande tragédia, por trás dos véus da autoilusão e da propaganda, é que a China se agarrou ao capitalismo, nutrindo-o, no seu momento ontológico de desgraças, crueldades e violências contra a verdade, a liberdade, a paz e o bem-estar individual e social.
Ao que parece, instalou-se algo parecido com um involuntário pacto faustiano em que o avanço econômico alcançado - necessário, indispensável e brilhante - teve como contrapartida a dominação do capital. A China tornou-se refém de um tipo específico de processo de modernização econômica que é atrelado e dependente da acumulação capitalista.
Houve um processo de instalação ou ponto de partida da formação capitalista contemporânea na China, o que corresponderia ao pecado original na teologia, diria Marx (2013). Subjugação dos trabalhadores, despojados da vitaliciedade dos empregos e da garantia de serviços sociais, privatizações de empresas, descoletivização da terra e privatização do seu uso e fartos recursos e instrumentos do Estado cumpriram esse papel da assim chamada acumulação primitiva. Um belo resultado foi alcançado: constituíram-se as novas classes sociais de burgueses e proletários na China. Mas como se mantém e se reproduz o que foi inaugurado? Em uma palavra, com mais-valor para acumular mais-valor, sem fim. Mas quem impõe a permanência dessa reprodução do capital? Em uma palavra, a naturalização da dependência dos trabalhadores perante o capital. A necessidade de sobrevivência acorrenta a classe trabalhadora à compulsória venda da força de trabalho ao capital chinês.
No evolver da produção capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e evidentes por si mesmas [...] a coerção muda exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador. A violência extraeconômica, direta, continua, é claro, a ser empregada, mas apenas excepcionalmente. (Marx, O Capital: crítica da Economia Política, Livro I, Boitempo, 2013, p.808-809, grifo nosso)
A julgar pelas intenções socialistas dos discursos dos líderes chineses, o país colheu um resultado não intencional. Mas, dado o conteúdo das reformas, deflagradas por esses próprios dirigentes, o desfecho lógico, previsível, esperado era... capitalismo. Plantou-se capitalismo, colheu-se o que tinha de ser colhido. [...]
Fonte: A China de Mao a Xi Jinping, transformação e limites; Renildo de Souza; pag. 190-192; EDUFBA; 2023.
*Renildo Souza, professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFBA.
Edição: Página 1917
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