Índice de Seções

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Desejo e realidade

Renildo Souza*




Hoje, a liderança chinesa, Xi Jinping à frente, quer - por convicções, palavras e intenções - afirmar o socialismo. Um tanto diferente dos seus antecessores, eles reiteram estridentemente a centralidade do Partido Comunista na direção política do país. Mantêm ostensivamente a referência doutrinária a Marx, Lenin e Mao, inclusive com cursos de marxismo nas universidades e as publicações sistemáticas de obras clássicas. Proclamam abertamente a China como socialista. Tudo isso é muito significativo no contexto da avassaladora hegemonia burguesa no mundo neste início do século XXI, com tenebrosos sofrimentos das massas. Hoje, por toda parte, bilionários tripudiam sobre as dores do povo. Depois da queda da URSS, os aparelhos ideológicos insistem na propaganda da inevitabilidade do capitalismo, sem competidor, sem rival. O comunismo morreu, não funciona, é inevitável, rufam os tambores da mídia, das universidades, dos partidos políticos e dos governos, em cantilena ensurdecedora em todo o planeta, o tempo todo.

Na China, contudo, a bandeira vermelha do comunismo permanece hasteada, garante o PCCh. Na verdade, há uma contradição entre, de um lado, as convicções, desejos e vontade da retórica dos líderes chineses e, de outro, a realidade, os fatos, a vida concreta de massiva, dominante e crescente estruturação econômica  e social do capitalismo dentro da China. A grande tragédia, por trás dos véus da autoilusão e da propaganda, é que a China se agarrou ao capitalismo, nutrindo-o, no seu momento ontológico de desgraças, crueldades e violências contra a verdade, a liberdade, a paz e o bem-estar individual e social.

Ao que parece, instalou-se algo parecido com um involuntário pacto faustiano em que o avanço econômico alcançado - necessário, indispensável e brilhante - teve como contrapartida a dominação do capital. A China tornou-se refém de um tipo específico de processo de modernização econômica que é atrelado e dependente da acumulação capitalista.

Houve um processo de instalação ou ponto de partida da formação capitalista contemporânea na China, o que corresponderia ao pecado original na teologia, diria Marx (2013). Subjugação dos trabalhadores, despojados da vitaliciedade dos empregos e da garantia de serviços sociais, privatizações de empresas, descoletivização da terra e privatização do seu uso e fartos recursos e instrumentos do Estado cumpriram esse papel da assim chamada acumulação primitiva. Um belo resultado foi alcançado: constituíram-se as novas classes sociais de burgueses e proletários na China. Mas como se mantém e se reproduz o que foi inaugurado? Em uma palavra, com mais-valor para acumular mais-valor, sem fim. Mas quem impõe a permanência dessa reprodução do capital? Em uma palavra, a naturalização da dependência dos trabalhadores perante o capital. A necessidade de sobrevivência acorrenta a classe trabalhadora à compulsória venda da força de trabalho ao capital chinês.

No evolver da produção capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e evidentes por si mesmas [...] a coerção muda exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador. A violência extraeconômica, direta, continua, é claro, a ser empregada, mas apenas excepcionalmente. (Marx, O Capital: crítica da Economia Política, Livro I, Boitempo, 2013, p.808-809, grifo nosso)

A julgar pelas intenções socialistas dos discursos dos líderes chineses, o país colheu um resultado não intencional. Mas, dado o conteúdo das reformas, deflagradas por esses próprios dirigentes, o desfecho lógico, previsível, esperado era... capitalismo. Plantou-se capitalismo, colheu-se o que tinha de ser colhido. [...]


Fonte: A China de Mao a Xi Jinping, transformação e limites; Renildo de Souza; pag. 190-192; EDUFBA; 2023.

*Renildo Souza, professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFBA. 

Edição: Página 1917



 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Caro leitor, ajude a divulgar o Página 1917, compartilhe nossas publicações nas suas redes sociais.

Comentários ofensivos e falsidades não serão publicados.