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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

A armadilha da lógica capitalista na China

Renildo Souza



A armadilha na China, como a defino, consiste em um conjunto de relações em que a busca e a conquista do desejado e imprescindível desenvolvimento produtivo e tecnológico implicou uma forma específica de curso econômico e social capitalista. Assim, a aceleração do crescimento da economia dependeu predominantemente da regulação através da leio do valor, a despeito da planificação e significativa presença de empresas estatais. (28) Predominaram as transações de mercado, a grande propriedade privada capitalista dos meios de produção, inclusive monopólios e oligopólios, e a integração ao capitalismo global. Constituiu-se o capitalismo monopolista, com poder econômico real da grande propriedade privada e estatal sobre as decisões de investimento, produção e mercado. Isso é diferente do que, em outro contexto, Che Guevara chamou de cavalo de Troia, ao se referir à razão da Nova Política Econômica (NEP) leninista. (29)

[...] Nessa armadilha, o ativismo do Estado Chinês, através de suas acentuadas funções econômicas, se tornou parte automática, necessária, compensatória da vida do capital. O capital se reproduz e, ao mesmo tempo, transforma a sociedade  à sua imagem e semelhança, apesar das particularidades chinesas. Como diria Postone*, desenvolve-se a dialética de transformação e reconstituição, sem lógica trans-histórica, evolutiva e linear. Instalou-se a interdependência, sem prejuízo de conflitos crescentes, entre, por um lado, as contínuas, crescentes e cumulativas expansão, ramificação e poder do capital na estrutura econômica e social do país e, por outro, a dinâmica de políticas, regulamentações e sucessivas concessões governamentais. Desequilíbrios e crises desdobram-se em novas gerações de reformas, com estímulos e liberalizações, os quais são apresentados como sábio aperfeiçoamento institucional. Na verdade, como a legitimidade do regime está ancorada aos limites do nacional-desenvolvimentismo, a política econômica e o planejamento têm de se adaptar à dinâmica contraditória capitalista.

A ação econômica do Estado chinês faz parte da compulsão muda do poder do capital, como a entendo, porque auxilia, em vez de bloquear, a naturalização do automatismo da reprodução capitalista na China. Não é uma compulsão econômica sem o Estado. Ela é mediada pelo próprio Estado chinês.

Tais são os elementos constituintes da armadilha da lógica capitalista nas condições da China.


* Moishe Postone (1942-2018), professor de história na Universidade de Chicago. Teórico pioneiro da chamada vertente marxista da “crítica do valor”. O interesse de suas pesquisas inclui a moderna história intelectual europeia; teoria social, especialmente teorias críticas da modernidade; Alemanha do século XX; antissemitismo; e transformações globais contemporâneas. Moishe Postone propõe uma reinterpretação radical da teoria crítica de Karl Marx, principalmente de O Capital e dos Grundrisse.

Notas

(28) "[...] a lei do valor é a lei fundamental exatamente da produção de mercadoria, portanto, também da forma suprema dela, da produção capitalista. Ela se impõe na atual sociedade do mesmo modo singular como conseguem se impor as leis econômicas numa sociedade de produtores privados: como lei natural inerente às coisas e relações, que atua chega e independentemente da vontade e da inciativa do produtor" (Engels, 2015, p.455)

 (29) O que eu chamo de armadilha na China hoje, Che Guevara chamou de cavalo de Troia, ao se referir à difusão da pequena propriedade privada na União Soviética em razão da NEP leninista. Ver artigo de Helen Yaffe (2007), em que Che é citado: "A NEP não se instalou contra a pequena produção de mercadorias, afirmou Guevara, mas por demanda dela. A pequena produção de mercadoras contém as sementes do desenvolvimento capitalista. Ele tinha certeza de que Lenin teria revertido a NEP se tivesse vivido mais. No entanto, os seguidores de Lenin: 'não viram o perigo e mantiveram o grande cavalo de Tróia no socialismo, o interesse material direto como alavanca econômica.' Essa superestrutura capitalista se arraigava, influenciando as relações de produção e criando um sistema híbrido de socialismo com elementos capitalistas que inevitavelmente provocavam conflitos e contradições cada vez mais resolvidos em favor da superestrutura - o capitalismo voltava ao bloco soviético".

Fonte: A China de Mao e Xi Jinping, pag. 193-198, Renildo Souza, EDUFBA, 2023.

Edição: Página 1917



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