Lucha de Clases (CMI/Venezuela) 12/12/2023
No dia 3 de dezembro, foi realizado na Venezuela um referendo público consultivo, convocado pela Assembleia Nacional, sobre a disputa territorial da região de Essequibo, na Guiana. A escalada do conflito nesta região tem implicações profundamente reacionárias para ambos os povos. É imperativo que os comunistas adotem uma posição internacionalista.
O referendo assumiu a forma de cinco perguntas, que (em ordem) perguntavam aos eleitores se eles: 1) rejeitavam o despojo “fraudulento” da Venezuela de Essequibo na Arbitragem de Paris de 1899; 2) apoiavam o Acordo de Genebra de 1966 para resolver a questão; 3) concordavam com a recusa histórica da Venezuela em reconhecer a “jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ)” sobre a questão; 4) rejeitavam a reivindicação territorial da Guiana; e 5) concordavam com o desenvolvimento de um “plano acelerado” para restabelecer a soberania venezuelana.
Essequibo: petróleo e outras riquezas minerais atiçam cobiça capitalista. |
Embora todos antecipassem uma vitória do “Sim”, o governo do PSUV esperava uma maior participação, dada a sua intensa campanha chauvinista, ao custo de US$ 1 milhão, o que reflete uma apatia geral em relação a todos os processos e instituições políticas, enquanto os trabalhadores e os pobres lutam pelos fundamentos básicos da vida e enfrentam ataques contínuos aos seus direitos.
Interesses em jogo
Depois de um longo período em que a disputa territorial de Essequibo permaneceu arquivada, em 2015 ela ressurgiu como resultado da exploração de petróleo e gás, autorizada pelo governo guianense, na disputada zona atlântica.
A região de Essequibo compreende um território de 159.500 km2 – maior que Portugal – sobre o qual a Venezuela tem reivindicações reconhecidas pela ONU. Esta área permanece sob a jurisdição da República Cooperativa da Guiana, cobrindo até 75% do seu território.
Esta situação é o resultado do Acordo de Genebra (1966), alcançado três meses antes de a Guiana declarar a sua independência do Reino Unido. No acordo, as partes foram instadas a procurar uma solução negociada para a disputa, mediada pelas Nações Unidas, o que, na prática, produziu um impasse, devido à recusa das burguesias guianense e venezuelana em fazer a menor concessão.
Essequibo possui enormes recursos minerais, florestais, hídricos e de biodiversidade, mas o que mais se destaca são os seus recursos energéticos. O investimento direto estrangeiro para a extração de petróleo e gás neste país cresceu até 110% nos últimos anos, o que explica porque a Guiana é hoje a economia com crescimento mais rápido no mundo.
A questão foi agravada pela crise energética mundial, exacerbada devido aos confrontos globais (a guerra na Ucrânia e o bloqueio às exportações de energia russas), e aos conflitos armados em regiões produtoras de recursos energéticos (como a sangrenta ofensiva militar israelense contra o povo palestino de Gaza e a ameaça de uma guerra mais ampla).
O imperialismo norte-americano reforçou as relações com a Guiana, aumentando o número de reuniões de alto nível entre os dois Estados e desenvolvendo exercícios militares conjuntos e internacionais em solo guianense. É evidente que os EUA estão tentando assegurar e ampliar a liderança das suas multinacionais face à concorrência europeia e chinesa.
A Venezuela protestou contra a exploração de tais recursos pela multinacional Exxon Mobil, alegando que viola o Acordo de Genebra e o direito internacional. Algo que o governo venezuelano não diz é que, além da Exxon Mobil, também participam na exploração de recursos nesta área empresas parceiras da PDVSA em joint ventures na Venezuela (a americana Chevron e a chinesa CNOOC).
A Guiana pediu ao TIJ que tomasse medidas preventivas para evitar o referendo venezuelano, considerando-o uma “ameaça”. O tribunal decidiu na sexta-feira, 1 de dezembro, abstendo-se de condenar o referendo, mas pedindo à Venezuela que não tomasse medidas destinadas a agravar a disputa entre os dois países.
História da disputa
O conflito territorial entre a Venezuela e a Guiana está enraizado no colonialismo europeu. A área conhecida como Essequibo fazia parte da Capitania General de Venezuela na colônia espanhola da Grande Colômbia, que iniciou seu processo de emancipação em 1810. A fronteira oriental do território ficava ao longo do rio Essequibo. Em 1814, as províncias sob domínio colonial holandês que faziam fronteira com a Venezuela foram vendidas à Grã-Bretanha.
O Império Britânico reconheceu a independência da Grande Colômbia (da qual a Venezuela fazia parte) em 1825, e, em 1831, (com o colapso da Grande Colômbia) fundiu as províncias holandesas, criando a Guiana Britânica. Anos depois, a descoberta de ouro em Essequibo forçou os primeiros colonos a cruzarem em direção à Venezuela, com resultados sangrentos.
A Venezuela e a coroa britânica chegaram a um acordo em 1850, no qual ambos os países se comprometeram a evitar a ocupação do território em questão, mas esta promessa não foi cumprida pela última, que continuou a se expandir até chegar à foz do rio Orinoco (que atualmente marca a fronteira oriental da Venezuela). Houve até planos para incorporar Apure, que hoje faz parte do Estado venezuelano, à Guiana Inglesa.
A débil burguesia venezuelana depositou sua confiança no imperialismo norte-americano, que emergia como a potência dominante no continente. O governo dos EUA propôs, em 1895, resolver a disputa através da arbitragem, e tanto os americanos como os britânicos concordaram bilateralmente, em 1897, em proceder desta forma.
Assim, em 1899, foi proferida uma Sentença Arbitral em Paris sem a participação da representação venezuelana, com cinco juízes: dois britânicos, dois americanos e um russo. Como era de se esperar, a decisão final (na verdade costurada nos bastidores), proferida em 3 de outubro de 1899, legitimou a desapropriação britânica do extenso território de Essequibo. As autoridades guianenses basearam historicamente a soberania do seu país sobre o Essequibo nesta Sentença.
Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo testemunhou numerosas revoluções e revoltas nas colônias sob domínio europeu na África, na Ásia e nas Américas. Em 1950, o Partido Progressista Popular (PPP) foi fundado na Guiana Inglesa e conquistou a maioria dos assentos em 1953, nas primeiras eleições permitidas para a Câmara da Assembleia.
O seu principal líder, Cheddi Jagan, tornou-se o primeiro-ministro de um governo liderado pelos britânicos. As ideias de esquerda promovidas por Jagan, embora reformistas, preocuparam os britânicos e os americanos em um mundo marcado pelas tensões da Guerra Fria. Meses após as eleições, a Grã-Bretanha enviou tropas para a Guiana, demitiu Jagan e dissolveu a legislatura. Os EUA promoveram, então, segundo linhas raciais reacionárias, uma divisão no PPP liderada por Forbes Burnham, que fundou o partido do Congresso Nacional do Povo (CNP).
Na Venezuela, após a queda do ditador Marcos Pérez Jiménez em 1958, devido a uma insurreição popular, os partidos AD, COPEI e URD chegaram ao Pacto Punto Fijo para, entre outras coisas, garantir a proteção dos interesses dos EUA no nosso país.
Do lado guianense, foram realizadas novas eleições em 1961, que o PPP venceu por uma margem estreita, permitindo a Jagan chefiar mais uma vez um governo limitado. Este governo foi imediatamente desestabilizado por atos de violência racial, fomentados por Washington, com a participação da CIA e colaboração britânica, e com a cumplicidade da burguesia venezuelana.
Segundo o documento 523 do volume XXXI do Gabinete do Historiador do Departamento de Estado, o governo de Raúl Leoni participou de uma conspiração liderada pela CIA para treinar 100 mercenários, financiar a desestabilização da Guiana, dar um golpe de Estado contra Jagan e sequestrar Jagan e sua esposa a serem levados para a Venezuela.
A reivindicação venezuelana sobre a Guiana Essequibo é uma das bandeiras que a burguesia tradicional tem levantado historicamente / Imagem: domínio público |
Estes planos não foram executados e este episódio obscuro é omitido quase inteiramente pela história venezuelana sobre a disputa com a Guiana. É importante compreender como esta reivindicação territorial passou de um protesto justo contra a expropriação colonial e imperialista a uma exigência reacionária contra o processo de libertação nacional do povo guianense.
Após numerosas negociações, em 17 de fevereiro de 1966, a Venezuela, o Reino Unido e a Guiana Britânica, que em breve declararia a sua independência, assinaram o Acordo de Genebra, no qual todas as partes se comprometeram a procurar uma solução pacífica, com quaisquer litígios mediados pela ONU. O acordo estabeleceu uma comissão venezuelana-guianense que tinha um prazo de quatro anos para pôr fim à disputa, mas estagnou quando ambas as burguesias se recusaram a ceder um centímetro nas exigências, uma da outra.
Em outubro de 1966, civis e militares venezuelanos tomaram a ilha de Anacoco. No ano seguinte, a Venezuela participou da realização da Conferência Indígena de Kabakaburi, que apelou ao desenvolvimento do Essequibo sob a soberania venezuelana. Em 1968, a Venezuela expandiu as suas águas territoriais em cerca de 19 quilômetros para dentro da área disputada, um ato que foi condenado pelo governo da Guiana.
Por último, mais uma vez armando as reivindicações dos povos indígenas com intenções reacionárias, o governo venezuelano apoiou a revolta separatista Rupununi, que matou entre 70 e 100 pessoas em 1969. Em vista de tudo isto, a perda de legitimidade histórica da reivindicação territorial venezuelana é evidente.
Nacionalismo exacerbado de ambos os lados
A reivindicação venezuelana sobre Essequibo é uma das bandeiras que a burguesia tradicional tem levantado historicamente para expressar as suas aspirações frustradas de poder e dominação regional. Também tem sido utilizada para desorientar e manipular a população, tanto em períodos de intensificação da luta de classes quanto em eleições.
Vemos como a maioria dos setores do espectro político competem para se apresentarem como os maiores defensores da nação nesta questão. Todos os grupos de oposição pró-imperialistas apoiam a soberania da Venezuela sobre Essequibo, diferindo apenas nos métodos: alguns são a favor do referendo, outros dizem que a questão deve ser resolvida perante o TIJ.
As diferentes frações da oposição são herdeiras do Puntofijismo, que saqueou o país em benefício das elites crioulas e dos seus parceiros estrangeiros, bem como perseguiu e assassinou líderes populares, operários e de esquerda. Desde o início deste século, estas mesmas personagens não tiveram escrúpulos em organizar golpes de Estado, apelar à intervenção militar estrangeira, ordenar incursões de mercenários norte-americanos e promover sanções econômicas contra o seu próprio país. Não nos surpreende o fato deles não terem dúvidas em relação à Guiana.
Por outro lado, temos o governo do PSUV jogando a carta nacionalista, depois de ter pulverizado os salários e os direitos fundamentais da classe trabalhadora, e de ter sido o primeiro a convidar capitalistas de todo o mundo a vir explorar a mão-de-obra mais barata do planeta. A intensificação do conflito deu ao PSUV uma oportunidade para manter a população distraída dos múltiplos problemas que enfrenta. Entretanto, continuam as medidas de ajustamento antipopular, combinadas com a repressão e a violação dos direitos políticos e democráticos.
No que diz respeito ao referendo, Maduro procura exaltar a sua figura de “líder da nação” face à ameaça externa representada pela Exxon Mobil, pelo imperialismo norte-americano e pela Guiana, manipulando e distorcendo o instinto anti-imperialista de amplas camadas da população. Alguns setores da ala esquerda do chavismo capitularam vergonhosamente diante do grupo que pede o abandono das reivindicações e o “cerramento de fileiras” pela pátria.
Do lado guianense as coisas não são diferentes. Em 24 de novembro, o presidente da Guiana, Irfaan Ali, acompanhado por oficiais militares, liderou uma manifestação nacionalista na montanha Pakarampa, a poucos quilômetros do Estado de Bolívar, na Venezuela, onde recitou o “Juramento de Fidelidade Nacional” e hasteou uma bandeira gigante da Guiana.
A administração do PPP levantou a opção de estabelecer bases militares apoiadas por estrangeiros em Essequibo e anunciou a visita de funcionários do Departamento de Defesa dos EUA. Todas estas ações e ameaças constituem perigosos atos de provocação, aos quais nós de Lucha de Clases – a CMI da Venezuela – nos opomos categoricamente.
Assim, estamos testemunhando como os porta-vozes dos governos de ambos os países estão aumentando cada vez mais a aposta retórica, sob o olhar atento das várias potências imperialistas. As classes dominantes da Venezuela e da Guiana estão convidando os trabalhadores a esquecerem os seus problemas, a concentrarem a sua atenção na ameaça que vem do outro lado da fronteira, com a ajuda de campanhas publicitárias de milhões de dólares.
Os trabalhadores urbanos e rurais, guianenses e venezuelanos, estão sendo convidados para um jogo perigoso, onde só nós nos mataremos se o conflito se transformar em um cenário de guerra. É preciso ser claro nesta questão: as elites de ambos os lados da fronteira só acreditam na soberania das suas contas bancárias.
Por uma posição de classe internacionalista
Reconhecemos que o território do Essequibo foi despojado da Venezuela como parte do expansionismo do Império Britânico no século 19, em busca de ouro e de uma posição privilegiada nas margens do rio Orinoco.
As turbulentas primeiras cinco décadas do século 20 introduziram novos elementos na equação. Em particular, a emergência da URSS como ator principal, o desenvolvimento da Guerra Fria e as revoluções no mundo colonial. A combinação de todos os fatores acima referidos transformou a reivindicação venezuelana no seu oposto.
Os trabalhadores guianenses lutaram para conquistar a sua emancipação do Reino Unido, combatendo as intervenções das tropas britânicas, os planos de golpe e os confrontos raciais patrocinados pelos EUA. Ao longo deste processo, a burguesia venezuelana foi uma cabeça de ponte para os interesses imperialistas contra a Guiana. Utilizou a reivindicação do Essequibo como arma para perturbar o processo de libertação nacional de um povo irmão.
Não devemos perder de vista a questão da autodeterminação dos habitantes de Essequibo. Embora tenhamos dito que estes territórios são habitados por vários povos indígenas, alguns dos quais não aderem a nenhuma jurisdição nacional, a maioria absoluta da população sente-se parte da Guiana.
Fazemos a seguinte pergunta aos patriotas de esquerda: estariam dispostos a apoiar a subjugação de uma nação irmã que não quer ser venezuelana? Se a resposta for sim, é surpreendente ver setores que, por um lado, expressam uma solidariedade correta com a Palestina, ao mesmo tempo em que estão dispostos a aceitar que a Venezuela desempenhe um papel semelhante ao de Israel.
Lenin, em sua obra O Direito das Nações à Autodeterminação, disse:
“Os interesses da classe trabalhadora e da sua luta contra o capitalismo exigem a solidariedade completa e a unidade mais próxima dos trabalhadores de todas as nações; exigem a resistência à política nacionalista da burguesia de todas as nacionalidades.” [grifo nosso (CMI)]
E, neste mesmo texto, ele observa:
“Aqueles que procuram servir o proletariado devem unir os trabalhadores de todas as nações e lutar inabalavelmente contra o nacionalismo burguês, interno e externo”.
Não poderia ser mais claro.
Prevendo que as nossas palavras podem ser manipuladas por algum chauvinista, nunca dissemos que os revolucionários venezuelanos de hoje também deveriam ficar do lado do governo guianense, que é subserviente ao imperialismo norte-americano. Se uma base militar dos EUA for instalada na Guiana, as classes dominantes desse país servirão de ponta de lança para a agressão contra o nosso povo.
É por isso que condenamos tão veementemente as manobras do PSUV e o chauvinismo da burguesia tradicional, também repudiamos as ações da burguesia guianense e do seu governo pró-imperialista. Que nunca se esqueça que a questão nacional é antes de tudo uma questão de classe!
Haverá guerra? Uma solução diplomática, satisfatória para todas as partes, é, no mínimo, utópica. Só através de uma guerra é que os venezuelanos poderão alcançar a soberania sobre o Essequibo. Mas dada a aliança militar da Guiana com os EUA, as possibilidades parecem quase nulas. Maduro está, no entanto, sob enorme pressão para se comprometer com o processo que iniciou após este referendo. Nenhum cenário está descartado.
É necessário defender uma posição internacionalista, face ao chauvinismo vergonhoso dos exploradores de ambos os lados e dos chauvinistas de todas as cores. Os trabalhadores, tanto a leste quanto a oeste do rio Essequibo, têm os mesmos inimigos: os abutres imperialistas e as suas burguesias traficantes. A guerra de classes, que visa derrubar o regime social capitalista, é o único tipo de guerra que devemos estar preparados para travar.
O único caminho para uma resolução real e justa reside nos trabalhadores de ambos os países, à frente de todos os oprimidos, derrubando as suas respectivas classes dominantes e avançando para a construção do socialismo. Só neste caminho, livre do jugo daqueles que nos saquearam durante toda a vida, e no quadro de uma Federação Socialista de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, será possível utilizar as riquezas desta região em benefício do toda a população.
Com a mesma coragem de Karl Liebknecht em 1914, os revolucionários consistentes devem levantar a palavra de ordem: “Não à guerra, o principal inimigo está em casa”.
Fonte:https://www.marxismo.org.br/conflito-venezuela-guiana-por-uma-posicao-internacionalista/
Tradução de Fabiano Leite.
Edição: Página 1917
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