Edward W. Said*
2003
[...] Nos Estados Unidos, o endurecimento das atitudes, o estreitamento da tenaz da generalização desencorajante e do clichê triunfalista, a supremacia da força bruta aliada a um desprezo simplista pelos opositores e pelos “outros” encontraram um correlativo adequado no saque, na pilhagem e na destruição das bibliotecas e dos museus do Iraque. O que nossos líderes e seus lacaios intelectuais parecem incapazes de compreender é que a história não pode ser apagada, que ela não fica em branco como uma lousa limpa para que “nós” possamos inscrever nela nosso próprio futuro e impor nossas próprias formas de vida para que esses povos menores os adotem.
[...] Mesmo com todos os seus terríveis fracassos e seu ditador lamentável parcialmente criado pela política americana de duas décadas atrás, o fato é que, se o Iraque fosse o maior exportador mundial de bananas ou laranjas, sem dúvida não teria havido guerra nem histeria em torno de armas de destruição em massa misteriosamente desaparecidas, e efetivos de proporções descomunais do exército, da marinha e da aeronáutica não teriam sido transportados a uma distância de mais de 11 mil quilômetros com o objetivo de destruir um país que nem os americanos cultos conhecem direito, tudo em nome da “liberdade”. Sem um sentimento bem organizado de que aquela gente que mora lá não é como “nós” e não aprecia “nossos” valores – justamente o cerne do dogma orientalista tradicional, tal como descrevo seu surgimento e sua circulação neste livro – , não teria havido guerra.
Portanto, da mesmíssima mesa diretora de
acadêmicos a soldo – aliciados pelos conquistadores holandeses da Malásia e da
Indonésia, pelas armadas britânicas da Índia, da Mesopotâmia, do Egito e da
África Ocidental, pelas armadas francesas da Indochina e do Norte da África –
vieram os consultores americanos que assessoram o Pentágono e a Casa Branca
usando os mesmos clichês, os mesmos estereótipos mortificantes, as mesmas
justificativas para o uso da força e da violência (afinal de contas, diz o coro,
a força é a única linguagem que aquela gente entende), tanto no caso atual como
nos que o precederam. Agora foi juntar-se a essas pessoas, no Iraque, um
verdadeiro exército de empreiteiros privados e empresários ávidos a quem serão
confiadas todas as coisas – da elaboração de livros didáticos e da Constituição
nacional à remodelagem da vida política iraquiana e da indústria petrolífera do
país. Todos os impérios que já existiram, em seus discursos oficiais, afirmaram
não ser como os outros, explicaram que suas circunstâncias são especiais, que
existem com a missão de educar, civilizar e instaurar a ordem e a democracia, e
que só em último caso recorrem à força. Além disso, o que é mais triste, sempre
aparece um coro de intelectuais de boa vontade para dizer palavras
pacificadoras acerca de impérios benignos e altruístas, como se não devêssemos
confiar na evidência que nossos próprios olhos nos oferecem quando contemplamos
a destruição, miséria e a morte trazidas pela mais recente mission
civilisatrice.
Fonte: Orientalismo; 2007; Companhia das Letras.
*Edward Wadie Said (árabe:إدوارد سعيد; Jerusalém, 1 de Novembro de 1935 – Nova Iorque, 25 de Setembro de 2003) foi um professor, crítico literário e ativista político palestino-estadunidense. Docente de literatura na Universidade de Columbia, foi um dos fundadores do campo acadêmico de estudos pós-coloniais. Também foi um dos principais intelectuais da causa palestina e de outras questões do mundo árabe de um modo geral. Sua obra mais importante é Orientalismo [en], publicada em 1978 e traduzida em 36 línguas, que é considerada como um dos textos fundadores dos estudos pós-coloniais.
Em 1977 Said foi eleito membro do Conselho Nacional Palestiniano, o parlamento da Palestina no exílio. Inicialmente partidário da criação de dois estados como forma de solucionar o conflito israelo-árabe, tendo votado nesse sentido num encontro da OLP em 1988 em Alger, Said acabaria por considerar mais oportuna a criação de um único estado binacional que englobasse Israel, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, no qual os judeus e os árabes gozassem dos mesmos direitos.
Em
1991 ele demitiu-se do Conselho Nacional Palestiniano em protesto pelo apoio de
Yasser Arafat a Saddam Hussein durante a guerra do Golfo. Foi um grande crítico
da actuação de Arafat durante as negociações que conduziram aos Acordo de Paz
de Oslo, que na sua opinião não favoreciam o retorno dos refugiados
palestinianos aos locais que habitavam antes da guerra de 1967.
Em
2002 Edward Said, junto como Haidar Abdel-Shafi, Ibrahim Dakkak e Mustafa
Barghouti, participou na criação da Iniciativa Nacional Palestina (ou
Al-Mubadara), numa tentativa de criar uma terceira força política palestiniana
que se afirmasse como alternativa à Autoridade Nacional Palestiniana e ao
Hamas.
Edição: Página 1917
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