Miguel Urbano Rodrigues*
Outubro/2016
Miguel Urbano Rodrigues |
Li em l961, na Guiné Conakri, a tradução
francesa da História do Partido Comunista (bolchevique) da URSS**, revista e
aprovada em 1938 pelo Comitê Central do PCUS. Em Portugal, por iniciativa do
camarada Carlos Costa, a referida História foi publicada em 2010 com o
subtítulo Breve Curso e um prefácio, muito elogioso, de Leandro Martins, então
chefe da redação do «Avante!». A iniciativa gerou polémica no PCP.
Olhares
incompatíveis sobre a história
Tenho na minha biblioteca de Gaia a citada
História do Partido Comunista (bolchevique), diferentes edições da História da
União Soviética, editadas em espanhol pela Editorial Progresso de Moscou, e a
tradução portuguesa da História da Grande Revolução Socialista de Outubro da
mesma editora, editada em l977.
A História do PCUS publicada em 1938 e
aprovada pelo Comitê Central do Partido foi traduzida em 67 línguas e dela
foram vendidos mais de 42 milhões de exemplares. Mas, após o XX Congresso, foi
retirada das livrarias e bibliotecas soviéticas.
Não foi sem uma sensação de mal-estar que
decidi expressar a minha opinião sobre essa obra, a da Revolução de Outubro e
uma das Histórias da Rússia e da URSS, a elaborada pelos historiadores A.
Fadeiev, Bridsov, Chermensky, Golikov e A. Sakharov, membros da Academia das Ciências
da União Soviética. Foi editada em espanhol, também pela Progresso, em 1960.
Por
que o mal-estar?
Por estar consciente da extrema
dificuldade de estabelecer fronteiras entre o positivo e o negativo, entre a
evocação da História e a deturpação da História que, por vezes no mesmo
capítulo, ora coincidem ora se fundem ou cruzam em confusão labiríntica.
Na História do Partido Comunista
(bolchevique) os primeiros três capítulos são dedicados ao combate pela criação
de um partido operário revolucionário (o futuro Partido Operário Social
Democrata da Rússia - POSDR, inicialmente marxista), à luta dos bolcheviques
contra os mencheviques e à primeira revolução russa (1904/1907). A narrativa é
interessante, com destaque para o papel decisivo que Lenin desempenhou nessa
fase histórica.
Os capítulos 4, 5 e 6 incidem sobre o
período que vai da reação stolypiana à Revolução de Fevereiro de 1917 que
derrubou a autocracia czarista. Uma informação muito rica e inédita para os
leitores do Ocidente valoriza essas páginas que iluminam a ascensão e o
fortalecimento contínuo do Partido bolchevique e a importância da obra teórica
de Lenin como ideólogo. As Teses leninistas de Abril, que implicaram uma
mudança decisiva na linha do Partido, merecem atenção especial. Ao exigir «todo
o Poder aos Sovietes», Lenin sepultou a ideia da longa duração da revolução
democrático-burguesa, mobilizando o Partido e os trabalhadores contra o Governo
Provisório da Rússia, esboçando a estratégia da revolução proletária rumo ao
socialismo.
No capítulo 7 os autores da História do
Partido evocam os acontecimentos que precederam a Revolução de Outubro e a
preparação desta, com muitas citações de Lenin que facilitam a compreensão das
lutas travadas contra o Governo de Kerenski e no próprio Soviete de Petrogrado.
Mas a linguagem do livro, a partir do 4º
capítulo, dedicado à reação stolypiana no período que precedeu o início da
guerra de 1914/18, muda muito e distancia-se do rigor, da serenidade e isenção
exigíveis a historiadores responsáveis, como são acadêmicos soviéticos de
prestígio mundial como Evgueni Tarlé.
Para caracterizar o
oportunismo dos mencheviques, dos economicistas, dos empiriocriticistas e
denunciar e criticar os erros de Kamenev, Zinoviev, Rikov, Preobrazhensky,
Trotsky e demonstrar a sua incompatibilidade com o leninismo, os autores da História do Partido Comunista
(bolchevique) da URSS recorrem a uma adjetivação agressiva e insultuosa e
deturpam grosseiramente a História.¹
Repetidamente,
Stalin começa a aparecer em muitas páginas, sendo-lhe atribuídas decisões e
iniciativas importantes numa época em que era ainda um dirigente pouco
destacado do Partido, embora próximo de Lenin.
Não é verdade que Trotsky tenha aderido ao
Partido para o minar por dentro, com o objetivo de o destruir.
Kamenev e Zinoviev assumiram nas vésperas
da insurreição de Outubro posições que levaram Lenin a qualificá-los de
traidores, mas a atitude de Trotsky, que era presidente do Soviete de
Petrogrado, não suscitou então qualquer crítica de Lenin.
Relativamente às negociações de Brest
Litovsk os autores da História do Partido Comunista deturpam também os
acontecimentos. Lenin censurou Trotsky,
que era o chefe da delegação soviética, por não ter cumprido as instruções para
assinar a paz com os alemães, mas nunca chamou traidores a ele e a Bukharin,
que assumira uma posição ultraesquerdista, nem a Radek e Piatakov. Afirmam
os referidos historiadores que eles formavam um grupo anti bolchevique que
travou «no seio do partido uma luta furiosa contra Lenin». É falso que
planeavam «prender V.I. Lenin, J.V. Stalin e I.M. Sverdlov, assassiná-los e
formar um novo governo de bukharinistas, trotskistas e sociais revolucionários
de esquerda».
É falso que Trotsky, tendo
«como lugar tenentes na luta Kamenev, Zinoviev e Bukharin, tentava «criar ma
URSS uma organização politica da nova burguesia, partido da restauração
capitalista».
A
prova de que não tinham agido como conspiradores e traidores foi a nomeação
posterior de todos eles para tarefas da maior responsabilidade, precisamente
por indicação de Lenin. Trotsky foi Comissário da Defesa durante o período mais
dramático da guerra civil e da intervenção militar das potências da Entente,
dos EUA e do Japão; Zinoviev assumiu a presidência da III Internacional com a aprovação
de Lenin; Bukharin foi chefe da redação do Pravda de l924 a 1929, com o aval de
Stalin.
No
capítulo 9 a deturpação da História prossegue.
Ainda em vida de Lenin,
Trotsky, durante o debate sobre os Sindicatos e a função da NEP assumiu
posições que foram duramente criticadas por Lenin, mas continuou no Politburo
com a aprovação deste.
Nas páginas dedicadas ao
XIII Congresso do Partido, a breve referência à Carta que Lenin, já inválido,
lhe dirigiu a 24 de dezembro de 1922, meses antes de sofrer o último e
devastador derrame cerebral, omite o conteúdo e significado desse documento
fundamental.
Os autores da História
afirmam que «Nos acordos tomados pelo XIII Congresso foram levadas em conta
todas as indicações feitas por Lenin nos seus últimos artigos e cartas».
Trata-se de uma
indesculpável inverdade.
A Carta de Lenin e o adendo
do dia 4 de Janeiro de 1923 foram lidas a muitos delegados mas não publicadas. Somente foram publicamente divulgadas na
URSS em 1956.
Porquê?
Nessa Carta Lenin transmitia
ao Congresso a sua opinião sobre os mais destacados membros do Comitê Central,
cuja ampliação ele propunha.
A
CARTA DE LENIN AO XIII CONGRESSO
Pela sua importância
transcrevo a seguir excertos da extensa carta de Lenin ao XIII Congresso na
qual chamava a atenção para o grave perigo que ameaçava o Partido se não fossem
introduzidas alterações na sua estrutura de direção:
«O camarada Stalin, tendo
chegado a secretário-geral, tem concentrado nas suas mãos um enorme poder, e
não estou seguro de que o utilizará sempre com suficiente prudência. Por outro
lado, o camarada Trotsky, como já demonstrou a sua luta contra o CC devido ao
problema do Comissariado do Povo para as Vias de Comunicação, não se destacou
apenas pela sua grande capacidade. Como pessoa, embora seja o homem mais dotado
do atual CC, tem demasiada confiança em si mesmo e é excessivamente atraído
pelas facetas puramente administrativas das coisas».
Esboçava depois em poucas
linhas os perfis de Kamenev, Zinoviev, Piatakov, e Tomsky que eram então, com
Bukharin, Trotsky, Stalin e ele, membros do Politburo. A Bukharin apontava as
fragilidades, mas elogiava-o também muito.
Sobre Stalin advertia nesse
adendo: “É demasiado brutal e esse defeito, perfeitamente tolerável nas
relações entre nós, comunistas, não o é nas funções de secretário-geral.
Proponho portanto aos camaradas que estudem uma forma de o transferir e nomear
para esse lugar uma outra pessoa que somente tenha em todas as coisas uma única
vantagem, a de ser mais tolerante, mais leal, mais educado, e mais atento para
com os camaradas, de temperamento menos caprichoso, etc. Essas características
podem parecer apenas pormenores, mas pelo que disse antes das relações entre
Stalin e Trotsky, não são ínfimos pormenores, mas pormenores que podem assumir
uma importância decisiva».
Contrariando especulações
frequentes em historiadores do Ocidente, a hipótese de Trotsky ser nomeado
secretário-geral é absurda. A velha guarda do Partido nunca o aceitaria.
Há leves discrepâncias entre
as traduções em inglês, francês, português e espanhol da Carta de Lenin ao
Congresso e do adendo posterior. Mas são irrelevantes.
A
EPOPEIA DA RECONSTRUÇÃO DA RUSSIA E DA INDUSTRIALIZAÇÃO
O
capítulo 10 é o melhor do livro.
A Rússia saíra arruinada da
guerra mundial, da civil e da agressão das potências da Entente. Dezenas de
cidades e centenas de aldeias tinham sido destruídas. A produção na agricultura
e na indústria caíra para níveis muito inferiores aos de 1913. Durante a
catastrófica seca de1921/22 milhões de pessoas morreram de fome.
O governo soviético
enfrentou tremendos desafios.
As fábricas existentes eram
obsoletas.
Transcrevo da História do
Partido:
«Era necessário construir
toda uma serie de setores industriais desconhecidos na Rússia czarista;
construir novas fábricas de máquinas e ferramentas, de automóveis, de produtos
químicos e metalúrgicos; organizar uma produção própria de motores e de
materiais para a instalação de centrais elétricas; aumentar a extração de
metais e carvão, pois assim o exigia a causa do triunfo do socialismo na URSS.
Era necessário criar uma
nova indústria de guerra, construir novas fábricas de artilharia, de munições,
de aviões, de tanques e de metralhadoras, porque assim o exigiam os interesses
de defesa da URSS nas condições do cerco imperialista.
Era necessário construir
fábricas de tratores, fábricas de máquinas agrícolas modernas para abastecer a
agricultura, para dar a milhões de pequenos camponeses individuais a
possibilidade de passarem à grande produção kolcosiana, porque assim o exigiam
os interesses do triunfo do socialismo no campo».
Essas tarefas gigantescas
exigiam milhares de milhões de rublos. Ora os cofres do Tesouro estavam vazios.
Como o Poder soviético havia
anulado todas as dívidas a países capitalistas contraídas pela autocracia
czarista, o crédito estrangeiro era uma impossibilidade absoluta.
Os excedentes da agricultura
eram a única fonte a que o Poder soviético podia recorrer. Mas para os obter
era indispensável que a agricultura estivesse em condições de os produzir.
Um duplo desafio se
colocava: empreender a coletivização das terras e modernizar em tempo mínimo a
agricultura, dotando os kolkhoses e os sovkhoses (fazendas do Estado) de meios
técnicos adequados.
O Poder Soviético, contra as
previsões de Paris, Londres e Washington, que consideravam impossível a sua
sobrevivência, ganhou essa batalha épica.
Ela coincidiu com intensas
lutas internas no Partido (Trotsky foi expulso em 1927 e deportado para o
Cazaquistão, Kamenev e Zinoviev também foram expulsos, embora tenham sido
posteriormente readmitidos) e exigiu a destruição dos kulaks que tinham
enriquecido enormemente durante a NEP.
Não há precedentes na
História da Humanidade para transformações tão profundas e rápidas como as que
então ocorreram na URSS.
En l926/27 foram investidos
na indústria mil milhões de rublos, três anos depois 5 mil milhões. Nesse breve
período foram construídas a Central Elétrica do Dnieper, o caminho-de-ferro que
ligou o Turquestão à Sibéria, a gigantesca fábrica de tratores de Stalingrado,
a fábrica de automóveis AMO.
Em 1928 a superfície dos
kolkhoses era de 1 390 000 hectares; em 1929 ultrapassava 4 262 080 hectares e
em 1930 15 milhões de hectares.
No triénio l930/33 a
indústria cresceu o dobro.
Esses
êxitos foram porem manchados por graves desvios dos princípios e valores
leninistas.
Na coletivização das terras
não foram apenas os kulaks o alvo da repressão. Ela atingiu também e brutalmente, milhões de pequenos camponeses que
resistiram à integração nos kolkhoses.
Stalin criticou os «excessos
esquerdistas» de quadros do Partido num artigo em que denunciou os «graves
erros daqueles que se tinham desviado da linha do Partido» através de medidas
de coação administrativa».
São obviamente fantasistas
as estatísticas forjadas no Ocidente segundo as quais dezenas de milhões de
camponeses russos e ucranianos foram mortos no processo de coletivização.
Mas é inegável que cabem a
Stalin grandes responsabilidades por crimes cometidos nesse período.
A História do Partido
Comunista (bolchevique) é omissa a esse respeito.
As ideias de Lenin sobre a
coletivização eram incompatíveis com a política de Stalin para a agricultura e
com os métodos a que recorreu num contexto de exacerbada luta dentro do Comitê
Central.
Mas, a minha discordância
frontal da estratégia do secretário-geral do PCUS, já investido do enorme poder
que Lenin temia e denunciou, não me impede de reconhecer que ele foi um
revolucionário excecionalmente dotado que realizou em menos de uma década uma
obra colossal.
Distancio-me totalmente dos
elogios insistentes e ditirâmbicos a Stalin, mas registo que, terminado com
êxito antes do prazo o I Plano Quinquenal, a Rússia se transformara de país
agrário atrasado, com estruturas medievais, num grande país industrial. Um país
em que quase 75% da população adulta era analfabeta tornou-se um país instruído
e culto com uma rede impressionante de escolas superiores, secundárias e
básicas em que eram ensinadas as línguas de dezenas de nacionalidades que
conviviam no espaço soviético do Báltico e do Mar Negro ao Pacífico; o primeiro
país do mundo em que o Estado garantia a saúde a educação gratuita a todos os
cidadãos.
CONCLUSÕES
No capítulo das Conclusões
os autores da História do Partido (bolchevique) tentam apresentar o regime
soviético no final dos anos 30 como a concretização do leninismo. Stalin seria
o seu intérprete fiel.
O andamento da História
demonstrou a falsidade dessa aspiração.
Já na época, o culto da
personalidade de Stalin era incompatível com o projeto de Lenin.
Somente em 1956 no XX
Congresso do PCUS foi levantado o tema.
Khrushchov,
que nunca havia dirigido a mais leve crítica ao secretário-geral, esboçou dele
um perfil medonho. Posteriormente soube-se que o famoso
Relatório ao Congresso estava semeado de informações falsas. Mas o culto da
personalidade de Stalin, por ele estimulado, foi uma realidade.
A chamada desestalinização
não pode esconder que a chegada ao poder de Khrushchov assinalou o início da
política revisionista que conduziu à destruição da URSS.
Quem enterrou o Socialismo
na União Soviética foi Gorbatchov, mas quem abriu a cova foi Khrushchov.
SOBRE
A HISTÓRIA DA GRANDE REVOLUÇÃO SOCIALISTA DE OUTUBRO
A versão portuguesa,
publicada em 1977 pela Progresso foi preparada por um grupo de acadêmicos, mas
a editora soviética não cita os seus nomes.
Pelo estilo, pela linguagem
e pelas fontes consultadas (que ocupam 71 páginas no índice) é uma obra muito
diferente da História do Partido Comunista (bolchevique) de 1938.
As primeiras referências a
divergências na fração bolchevique do POSDR aparecem somente nas páginas 152 e
163. Os autores sublinham que Trotsky, Kamenev e Zinoviev não acreditavam na
«vitória da revolução socialista na Rússia», Os dois últimos denunciaram mesmo
num artigo a preparação da insurreição do 7 de novembro (25 de Outubro no
calendário Juliano, ainda vigente) o que levou Lenin a acusá-los de
«traidores».
A III Parte da História em
apreço é dedicada à Edificação do Estado Soviético e a Transformações
Revolucionárias no País.
Nas 200 páginas que ocupa
são frequentes as críticas a Kamenev e Zinoviev e escassas as referencias a
Stalin e Trotsky.
As críticas a Trotsky surgem
a propósito das posições contraditórias que assumiu como chefe da delegação
soviética nas negociações de paz de Brest Litovsk com os alemães e os
austríacos.
Mas a linguagem dessas
críticas não é agressiva. Os autores escrevem que «Tal como os comunistas “de
esquerda” (então liderados por Bukharin), Trotsky não acreditava na
possibilidade de conservar o Poder Soviético sem o apoio das revoluções nos
países da Europa ocidental. Lenin tinha dado instruções para assinar o tratado
de paz se os alemães apresentassem um ultimato».
E Trotsky, como chefe da
delegação, ignorou as indicações de Lenin, refugiando-se na fórmula absurda
«nem paz nem guerra!» Mas quando os alemães retomaram a ofensiva a 18 de
Fevereiro, Trotsky, na reunião de emergência do Comitê Central, votou com Lenin
pela assinatura imediata do tratado imposto pelos alemães, o que se fez a 3 de
Março.
Os autores não referem
sequer a expulsão de Trotsky do Partido em 1927 e a sua deportação para a Ásia
Central.
Esse grupo de historiadores
são obviamente seguidores disciplinados da linha revisionista adotada pelo PCUS
após o XX Congresso. E refletem na sua História um tipo de sectarismo tão
condenável como o dos redatores da História do Partido Comunista (bolchevique).
A escassez de referências a
Trotsky não se justifica.
Se é falso que ele tenha
sido o cérebro de um plano tenebroso que visaria desmembrar a URSS, entregando
o Extremo Oriente aos japoneses e a Ucrânia a Hitler, é indesmentível que o
fundador da IV Internacional conspirou permanentemente no exílio contra a União
Soviética.
UMA HISTÓRIA DA URSS TAMBÉM
POLÊMICA
A História da URSS preparada
pelos cinco membros da Academia das Ciências citados no início deste artigo é
também uma obra polémica na qual a deturpação dos acontecimentos históricos
reflete o espirito do revisionismo khrushchoviano.
É um manual pouco ambicioso
destinado à juventude. O título é aliás incorreto porque os autores tentam
condensar em quatrocentas e poucas páginas a história dos povos que desde o
paleolítico se instalaram ao longo dos séculos no espaço da futura União
Soviética.
O Capítulo I, de Bridsov e
A. Sakharov, é dedicado às comunidades primitivas e ao período da escravidão.
No Capítulo II, de Sakharov,
o tema é o feudalismo e abrange a fundação do Estado Russo, as invasões mongóis,
a desintegração da Horda de Ouro, e finda com o desenvolvimento na Rússia das
relações capitalistas.
A perspectiva marxista não é
facilmente identificável nessas páginas que contêm informações muito
interessantes, ausentes nos trabalhos de historiadores ocidentais sobre esses
períodos. O nome de Stalin aparece pela primeira vez na página 141, incluído
numa lista de bolcheviques que lutavam contra os mencheviques. Kamenev é citado
na página 202 como líder dos «oportunistas de direita». Bukharin e Preobrazhensky
na página 206 como «capituladores».
Trotsky é criticado (pág.
212) por «ter violado as instruções do CC do Partido e do governo soviético,
negando-se a assinar as condições de paz».
O Stalin é atribuído, com
Vorochilov, o êxito da vitória sobre Krasnov (pág. 231) em Tsaristsin (futura
Stalingrado).
O trotskismo volta a ser
citado criticamente na pág. 258. Bukharin e Rykov são qualificados de «grupo
anti partido de oportunistas» (pág. 261)
Nas páginas dedicadas à
coletivização da agricultura a violação dos princípios do Partido é atribuída a
funcionários e aos sovietes locais e valorizada como importante a crítica de
Stalin a esses desvios. Mas não há referências aos crimes cometidos e à
deportarão maciça de camponeses.
O
Historiador não alude sequer aos processos dos anos 30 que findaram com os
fuzilamentos de Kamenev, Zinoviev, Rakovsky, Bukharin, Preobrazhensky e outros
velhos bolcheviques.
As primeiras referências ao
culto da personalidade de Stalin aparecem na página 281. O autor do capítulo
afirma que «a idolatria a Stalin infligiu graves danos ao Partido Comunista e à
sociedade soviética» e sublinha que os êxitos obtidos pelo Partido e as massas
populares foram injustamente atribuídos a Stalin.
No capítulo dedicado à II
Guerra Mundial salienta-se que Stalin «assumiu a direção militar, econômica e política
do país, concentrando nas suas mãos a plenitude do Poder do Estado» (pág. 287).
No Capítulo IV, o académico
F. Golikov dedica largo espaço (página 312 e seguintes) ao XX Congresso,
informando que nele foi discutido o relatório do primeiro secretário,
Khrushchov, sublinhando que «a questão de superar o culto da personalidade de
Stalin e as suas consequências» mereceu especial atenção.
«O Congresso – escreve Golikov
- revelou audaz e sinceramente as faltas e as deficiências no trabalho,
resultantes da idolatria a Stalin, sobretudo nos últimos anos da sua vida e
atividade. Alheio ao espirito do marxismo-leninismo e à natureza do regime
socialista da sociedade, a idolatria travou o desenvolvimento da democracia
soviética e impediu o avanço da União Soviética para o comunismo.
Mas, ao criticar os «aspetos
errôneos da atividade de Stalin» a nova direção do Partido afirma que «como
fiel marxista-leninista e firme revolucionário Stalin ocupará o seu devido
lugar na História».
Na sessão plenária do CC de
junho de 1957 salienta-se que «foi derrotado e desmascarado o grupo anti
partido integrado por Malenkov, Kaganovitch, Molotov, Bulganin e Shepilov».
Seguem-se páginas apologéticas
dos extraordinários êxitos que o PCUS sob a direção de Khrushchov estaria
alcançando e que permitiriam à URSS «ocupar nos próximos 15 anos o primeiro
lugar no mundo tanto quanto ao volume global da produção como à produção per
capita. No país será criada a base material e técnica do comunismo».
Para mal da humanidade, essa
previsão otimista foi desmentida pela História.
Pelo estilo e linguagem, no
Ensaio em apreço transparece com clareza a mentalidade revisionista que
empurrou a URSS para a sua desagregação e a reimplantação na Rússia do
capitalismo.
É um trabalho que não
contribuiu para o prestígio da historiografia soviética.
Transcorridas décadas, é
minha convicção firme que a História do Partido Comunista (bolchevique) de
1938, a História da Grande Revolução de Outubro e as diferentes Histórias da
URSS editadas nos anos 70 deturparam todas, com objetivos opostos, a História
real de acontecimentos que deixaram marcas inapagáveis no caminhar da
humanidade.
É
útil recordar que a grande maioria dos historiadores ocidentais, epígonos do
capitalismo, longe de contribuírem para iluminar a história real da União
Soviética, a deturpam com perversidade para demonizar o marxismo e Lenin.
Em vésperas das comemorações
do centenário da Revolução de Outubro, sinto a necessidade de afirmar que, não
obstante as graves deformações que desnaturaram o projeto de Lenin, o
desaparecimento da URSS configurou uma tragédia para a humanidade. A vitória da Revolução Socialista foi o
maior acontecimento da História e a sua herança confirma que foi a experiência
mais justa e ambiciosa de libertação do homem da sua exploração milenária.
*Miguel Urbano Tavares Rodrigues (Moura, 2 de agosto de 1925 – Vila Nova de Gaia, 27 de maio de 2017) foi um jornalista, escritor e político português. Foi redactor do Diário de Notícias entre 1949 e 1956, chefe de redacção do Diário Ilustrado (1956 e 1957), antes de se exilar no Brasil, onde foi editorialista principal de O Estado de S. Paulo (1957 a 1974) e editor internacional da revista brasileira Visão (1970 a 1974). Após a Revolução dos Cravos retornou a Portugal, foi chefe de redacção do Avante! em 1974 e 1975 e director de O Diário entre 1976 e 1985. Assistente de História Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1974-75), presidente da Assembleia Municipal de Moura em 1977 e 1978, deputado pelo Partido Comunista Português entre 1990 e 1995 e deputado às Assembleias Parlamentares do Conselho da Europa e da União da Europa Ocidental, tendo sido membro da comissão política desta última.
**História do Partido
Comunista (bolchevique) da URSS, Edição de Para a História do Socialismo,
Portugal, Agosto de 2010, 527 páginas.
História da Grande Revolução Socialista de Outubro, Edições Progresso, Moscou, 1977, 676 páginas.
Historia de la URSS (Ensayo), publicada em 1960 pelas Edições Progresso, de Moscou, 422 páginas.
Notas:
¹ Grifos do editor.
Edição: Página 1917
Fonte: https://www.odiario.info/reflexao-sobre-historias-polemicas-do-pcus/
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