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segunda-feira, 19 de abril de 2021

Agonia e Morte Lenta de um Revolucionário nas Prisões Fascistas

Em 2021 lembramos os 130 anos do nascimento do revolucionário e dirigente comunista italiano Antonio Gramsci (22/01/1891 - 27/04/1937).

A Vida de Antonio Gramsci*

 Começava o ano de 1933, finalizando para Gramsci um ano de tormentos e prenunciando um outro, igualmente aterrador. Ele o pressentia. A 2 de janeiro escreveu algumas linhas, a título de balanço do ano de 1932:

“O ano que passou não foi exatamente cheio de recordações agradáveis para mim; foi o pior ano que passei na prisão. Nem o ano-novo se apresenta com perspectivas animadoras; se 1932 foi ruim, creio que 1933 será pior. Estou desgastado e ao mesmo tempo as aflições aumentam. A relação entre as forças disponíveis e o esforço a ser mantido é ainda mais aterradora. Todavia, não me sinto desmoralizado. Ao contrário, minha vontade se alimenta justamente do realismo com que analiso os elementos da minha existência e a capacidade de resistir.”



   Desde então, Gramsci já começava a morrer lentamente. Continuava a sofrer de insônia, sentia-se às vezes “como se suspenso no ar, sem equilíbrio físico, como quando se tem vertigem e tontura ou se está bêbado”. Com a queda dos dentes, Gramsci fora atacado de sérios distúrbios gástricos. E ao lado desses tormentos, para completar a catástrofe do corpo, a tuberculose, a arteriosclerose e o mal de Pott (em que as vértebras vão pouco a pouco sendo destruídas, ao mesmo tempo em que se formam abcessos nos músculos dorsais) progrediam.

   Mas, ao menos, no início de 1933, as faculdades críticas e a vontade mantinham-se como que separadas do corpo doente, externas a este e em nada condicionadas pelo sofrimento físico. Continuavam lúcidas, mesmo no máximo de tensão: “Eu atravessei maus momentos em que me senti fisicamente fraco, mas nunca cedi a fraqueza física, e, até onde é possível afirmar tais coisas, creio que não me deixarei abater. Contudo, não posso me ajudar muito. Quanto mais me dou conta de que tenho de suportar maus momentos, divido à fraqueza e ao agravamento das dificuldades, mais me animo na contensão de toda a minha força de votade.” (30 de janeiro de 1933). Era uma vida sofrida e insuportável, mais ainda assim, Gramsci queria vivê-la.

“A cerca de um ano e meio entrei em uma fase de minha vida que posso definir, sem exagero, como catastrófica. Não consigo mais reagir ao mal físico e cada vez mais sinto as forças me abandonando. Por outo lado, não quero me deixar levar pela corrente, isto é, não quero perder nada que, mesmo abstratamente, possa me oferecer uma possiblidade de pôr fim a esse sofrimento. Acho que se deixasse passar alguma possibilidade, isto equivaleria, em um certo sentido, a um suicídio. Estou cheio de contradições, é verdade, mas não a ponto de não compreender estas coisas elementares...”¹

   Era, porém, de carne e osso, um homem, não um pensamento puro. Um pesadelo o torturava: até ali, resistira ao terrorismo fascista, rejeitando o pedido de clemência. Mas se, esmagado pelo sofrimento físico, na hipnose da mente pelo avanço da doença, a vontade cedesse? Anotou em um caderno:

"Ouve-se dizer: 'Resistiu por cinco anos, por que não por seis? Podia resistir mais um ano e triunfar'. De qualquer modo, trata-se de depois, porque no quinto ano o sujeito não sabia que só um outro ano de sofrimento o aguardava. Mas, fora isso, a verdade é que o homem do quinto ano não é o do quarto, nem o do terceiro, nem o do segundo, nem o do primeiro, etc. e sim uma personalidade completamente nova, na qual os anos transcorridos arrasaram os freios morais, as forças de resistências que caracterizavam o homem do primeiro ano. Um exemplo típico é o do canibalismo."

   [...] Gramsci temia passar por uma igual mutação:

                        A personalidade se desdobra: uma parte observa o processo, a outra o sofre, mas a parte observadora (enquanto esta parte existir significa que há um autocontrole e a possiblidade de recobrar o domínio de si próprio) sente a precariedade da própria posição, isto é, prevê que chegará a um ponto o qual a sua função desaparecerá, ou seja, não haverá mais autocontrole,  e sim, que a personalidade como um todo será engolida por um novo ‘indivíduo’, com impulsos, iniciativas e modos de pensar diversos daqueles precedentes.”

São palavras escritas na segunda-feira, 06 de março de 1933.

[...] Na manhã de 7 de março, Gramsci caiu no chão e não conseguiu levantar-se sozinho.

   Delirava. Depois ficou sabendo através de companheiros que o assitiram, revezando-se, em sua cela – o bolonhês Gustavo Trombetti e um operário de Grosseto – de algumas das suas falas, entremeadas de longos trechos em dialeto sardo, sobre a imortalidade da alma. “Parece que falei toda uma noite sobre a imortalidade da alma; a alma em um sentido realista e historicista, ou seja, como uma sobrevivência necessária das nossas ações úteis e necessárias e como uma incorporação delas, fora da nossa vontade, ao processo histórico universal, etc. Havia, a escutar-me um operário de Grosseto que caía de sono e que por certo pensou que eu estivesse louco, segundo a opinião também do guarda de serviço”. Era a consequência da arteriosclerose. As manifestações agudas do mal duraram mais alguns dias:

Falei por muito tempo em uma língua que não era entendida e que sem dúvida é o dialeto sardo, porque há alguns dias atrás [a carta é de duas semanas após o primeiro ataque] me dei conta de que misturava, de forma inconsciente, ao italiano palavras e frases em sardo. As janelas e as paredes do quarto pareciam-me povoadas de figuras, especialmente de rostos, sem nada de notável, apesar de suas poses as mais diversas, e de seu aspecto sempre sorridente. De vez em quando, tinha a impressão de que se formavam no ar massas compactas, mas fluidas, que se acumulavam, precipitavam-se sobre mim, fazendo-me recuar nervosamente na cama. A retina maninha imagens já bem antigas que se sobrepunham as mais recentes, etc. Também tive alucinações auditivas. Se fechava os olhos para descansar, ouvia vozes muito nítidas que perguntavam: ‘Onde está você?’ ‘Está dormindo?’ etc. ou utras palavras soltas.”

   A “parte observadora” de Gramsci, portanto, não desaparecera e ainda podia acompanhar criticamente o processo. Até o dia anterior ao ataque de arteriosclerose, havia nele a preocupação, a dúvida atroz de uma mutação em andamento, de um processo de substituição da velha personalidade por uma nova, sem freios morais, disposta ao gesto repugnante do canibal ( que equivalia à capitulação ao envio de um pedido de clemência). Na realidade, a catástrofe do caráter não correspondia à decadência física.

   [...] Fora a própria Tatiana quem endereçara, a 15 de setembro de 1932, um pedido ao chefe do governo para que um médico de confiança fosse autorizado a visitar Gramsci na prisão. A 20 de março, o doutor Umberto Arcangeli pode ver o enfermo. Na sua opinião, fazia-se necessário, numa tentativa de recuperar a saúde, uma radical mudança das condições ambientais, só possível com um pedido de clemência. Gramsci se opôs e a alusão à clemência foi retirada de certificado que dizia:

                       “Antonio Gramsci sofre de mal de Pott. Tem lesões tuberculares no lóbulo superior do pulmão direito, que provocaram duas hemoptises, uma delas com quantidade notável [de sangue], seguida por forte febre que durou vários dias. Está atacado de arteriosclerose, com hipertensão das artérias. Sofreu de desmaios com perda da consciência e parafasia que duraram vários dias. De outubro de 1932 para cá perdeu sete quilos.”

                           O doutor Arcangeli concluía: “Gramsci não poderá sobreviver por muito tempo nas condições em que se encontra. Julgo necessário a sua transferência para um hospital civil ou para um clínica, a menos que seja possível conceder-lhe a liberdade condicional”. No entanto, durante algum tempo não houve mudanças sensíveis no regime carcerário a que Gramsci estava submetido.

                       [...] A 29 de maio escreveu, repetindo as palavras de Romain Rolland (“O pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade”), que tornaram-se uma máxima para ele:

                       Até há algum tempo atrás, eu era, por assim dizer, pessimista com a inteligência e otimista com a vontade. Isto é, embora percebesse lucidamente todas as condições desfavoráveis, sobretudo no sentido de qualquer melhoria da minha situação (tanto no geral, no que diz respeito à minha posição jurídica, como no particular, no que diz respeito à minha saúde física imediata), acreditava que com um esforço conduzido racionalmente, com paciência e sagacidade, sem deixar de lado nada no que toca à organização  dos poucos elementos favoráveis e procurando imunizar os elementos desfavoráveis, fosse possível obter algum resultado apreciável, conseguir pelo menos viver fisicamente, deter o terrível consumo de energias vitais que aos poucos está me prostrando. Hoje não penso mais assim. Isto não quer dizer que tenha me decidido me render... Significa, porém, que não vejo mais nenhuma saída concreta e não conto com mais nenhuma reserva de forças.”

        [...] Naqueles dias, Tatiana recebera a notícia da morte do pai. O senhor Apolo falecera em Moscou a 29 de maio. Nestas condições de espírito, teve novo encontro com Antonio em 1º de julho. Encontrou um homem vazio de vontade, uma sombra de homem. E no dia seguinte, ele lhe mandou uma carta:

       Estou imensamente cansado. Sinto-me afastado de tudo e de todos. Ontem, no encontro, tive a prova disso. Devo lhe dizer que a visita me pesava como um suplício e que não via a hora de acabar. Quero lhe dizer a verdade com toda a franqueza e brutalidade, se é esta a palavra mais adequada. Não tenho nada a lhe dizer, nem a você nem a ninguém. Estou vazio.[...]”

            Tatiana não desistia. Ela própria também estava muito doente, [...] A vida na aldeia de Turi não era a mais conveniente nas suas condições de saúde. Mas não voltou a Roma, nem mesmo depois desta carta de Antonio. Quatro dias depois, a 6 de julho, recebeu uma outra carta do cunhado:

        Resolvi escrever esta carta extraordinária. Creio que a esta altura você já deve ter recebido a carta que escrevi domingo e acho que ficou muito magoada. Estava meio louco, e não estou certo de que não enlouquecerei totalmente dentro de pouco tempo... Por favor, me acredite, eu não posso aguentar mais. A dor no cerebelo e na caixa craniana me fazem sair de mim. Agravou-se e agrava-se progressivamente a dificuldade do uso das mãos e isto não pode se dever apenas à arteriosclerose... Hoje recebi a visita de um inspetor da administração carcerária, que me assegurou que de agora em diante vou ficar bom... O inspetor me garantiu que o Ministério vai se interessar pelo eu caso. Espero, portanto, que uma coisa tão simples, que é ser mandado para uma enfermaria de prisão organizada modernamente, não seja difícil de obter. É algo que sucede com frequência. Não posso lhe dar maiores indicações, porque as ignoro. Ouvi falar nas enfermarias de Roma, Civitavecchia, mas o lugar não me interessa. Inteessa-me somente sair deste inferno onde morro lentamente.”

          Limitaram-se a mudá-lo de cela. [...] A mudança de cela era porém, uma solução inadequada. Voltou a piorar. Antonio necessitava de um tratamento sério, não de uma simples mudança de um andar para outro. Devia esperar ainda muito tempo (e enquanto isso as doenças progrediam) antes que o ministério resolvesse transferi-lo, sempre como detento, a um local de tratamento. Ele estava condenado a prisão, mas não a pena de morte. Cumpria porém uma pena mais dura do que a pena de morte, já que, deixado sem cuidados médicos, debatia-se em eio a sofrimentos terríveis, morrendo um pouco todo dia. [...] Finalmente o governo fascista, sob pressão da opinião internacional, teve de curvar-se e não deixar Gramsci morrer sem tratamento.

         [...] Meses e anos, talvez decisivos, foram perdidos desde a primeira hemoptise de 3 de agosto de 1931 ao primeiro ataque de arteriosclerose de 7 de março de 1933. No final de outubro, foi escolhida a nova residência, sempre em estado de detenção, em Formia, na clínica do doutor Giuseppe Cusumano.

        [...] Gramsci chegou a Formia a 7 de dezembro de 1933.

        É notável a força de vontade deste homem que, apesar dos pesados sofrimentos, não se deixava prostrar e reagia à degradação física sem desespero, refugiando-se nintaquilo que restava de íntegro em si, o vigor intelectual continuado a estudar e escrever. Correspondem ao período de Formia (1934-35) cinco cadernos iniciados em Turi e 11 inteiramente escritos na clínica Cusumano. [...] Dez meses depois do recebimento do seu pedido de liberdade condicional, ele pode transferir-se para uma outra clínica. Deixou Formia a 24 de agosto de 1935, dirigindo-se para a clínica  “Quisinana” de Roma.

        [...] Parecia, ou talvez estivesse realmente afastado de tudo. Não lhe ocorreu, por exemplo, refazer o contato com Togliatti ou com outros dirigentes ou quadros do partido. Na clínica “Quisinana” ele era relativamente livre, à parte a vigilância externa. Se o desejasse, poderia perfeitamente se comunicar, através dos familiares que o visitavam, com elementos do partido: um bilhete, poucas linhas. Não há indícios de iniciativas desse tipo.

        [...] As energias o abandonavam. O pouco que ainda o mantinha era a perspectiva de uma próxima volta a liberdade. A pena chegaria ao fim a 21 de abril de 1937. Pensava em retornar a Sardenha, para viver no mais completo isolamento.

         [...] É Mea Gramsci quem se recorda daqueles momentos:

         “Quando estava para expirar a pena – relembra – tio Nino nos escreveu. Queria que procurássemos para ele um quarto em Santulussugiu. Esteve ali quando estudante, e o clima lhe agradava. [...] Tio Nino devia chegar no dia 27 de abril, o esperávamos hora após hora. O dia acabou e nada. Ficamos desiludidos. Vovô havia esperado tanto o dia da chegada do filho. Deve chegar amanhã, pensamos. E no dia seguinte, pela manhã, uma mulher irrompe casa a dentro e pergunta: ‘É verdade que  Nino morreu?’. Ficamos petrificadas. ‘Deu no rádio, escutei no rádio’, disse a mulher.[...].



        Nino morreu às 4:10 do dia 27 de abril. Tinha 46 anos. O funeral foi no dia seguinte, à tarde, embaixo de forte chuva. Apenas um carro seguia o féretro, com Tatina e Carlo.

        Francesco Gramsci morreu duas semanas depois, a 16 de maio de 1937. Antes de morrer, havia relido inúmeras vezes as palavras escritas por Nino a mãe, a 10 de maio de 1928, na véspera do processo:

                        Gostaria para ficar mesmo tranquilo, que você não se apavorasse nem se perturbasse, independente da pena que me derem. Gostaria que você entendesse bem, também com o sentimento, que eu sou um preso político, e serei um condenado político, que não tenho e nunca terei porque envergonhar-me desta situação. Que no fundo fui eu mesmo quem quis de certo modo a detenção e a condenação, pois nunca pensei em mudar as minhas opiniões, pelas quais estaria disposto a dar a vida e não só ficar na prisão. E por isso, eu só posso estar tranquilo e contente comigo mesmo. Querida mamãe, gostaria muito de lhe abraçar bem apertado para que sentisse o quanto eu gosto de você e como gostaria de lhe consolar por esse desgosto que lhe dei, mas não podia agir de outro modo. A vida é assim, muita dura, e os filhos algumas vezes tem de dar grandes desgostos às suas mães, se querem conservar a sua honra e a sua dignidade de homens.”

* A Vida de Antonio Gramsci; Giuseppe Fiori; p.339/361; Paz e Terra; 1979.

¹ Carta a Tatiana de 13 de fevereiro de 1933.

   Edição: Página 1917.

       

 

         

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