Quando a Esquerda Assume o Discurso Neoliberal
Francesc Xavier Ruiz Collantes*
No atual panorama político e
ideológico, encontramos o fato de que a direita tem duas posições extremistas.
Uma é a posição da direita nacional-nativista ou mesmo nacional-etnista, nesse
sentido temos casos como Trump, Bolsonaro, Le Pen, etc. Outra posição
extremista é a do neoliberalismo. O liberalismo mudou nas últimas décadas para
um liberalismo extremo que busca a extensão da lógica do mercado, controlada
pelas elites, em todas as esferas da vida política e social e a substituição da
sociedade e do Estado pelo mercado global.
Na ausência da esquerda no
palco do debate, a disputa política e ideológica está se estabelecendo entre as
duas posições extremas da direita. A esquerda dos países ocidentais e
desenvolvidos parece ter identificado o nacional-nativismo como seu principal
inimigo e, nessa situação, começou a assimilar o discurso do neoliberalismo em
alguns aspectos fundamentais. Se trata de um passo a mais no caminho do seu desaparecimento
como alternativa.
Biden e Harris, o neoliberalismo ditando o discurso da esquerda pós-moderna. |
Temos visto como, diante da disputa entre o nacional-nativismo e o neoliberalismo nas últimas eleições presidenciais norte-americanas, a esquerda internacional optou pelos representantes do neoliberalismo, Biden e Harris. É bem possível que em alguns casos fosse para apoiar o "mal menor", mas nesta operação foi assumido o discurso próprio daquele que se considera "mal menor".
A atribuição de um discurso
político ou social a uma determinada ideologia baseia-se em algumas
características fundamentais desse discurso. Por exemplo: quais personagens,
individuais ou coletivos, aparecem; quais funções cada um desses personagens
desempenha; quais valores sustentam a estrutura do discurso, seu
desenvolvimento e suas conclusões, como esses valores são compreendidos, etc.
A
esquerda dos países ocidentais e desenvolvidos identificou o nacional-nativismo
como seu principal inimigo e começou a assimilar o discurso neoliberal
Uma das operações
fundamentais na construção ideológica do discurso é o uso de certas categorias
e não de outras. A categoria é uma forma de classificação para definir
personagens e qualidades que aparecem em todo discurso. Por exemplo: se em um
discurso aparece a categoria “classe trabalhadora” ou “classes trabalhadoras”,
como categorias antagônicas em relação às categorias “burguesia” ou
“oligarquia”, sabemos que será um discurso que apresentará o mundo da maneira
que o enxerga a esquerda; porém, se aparecem as categorias “empreendedores”
versus “assalariados subsidiados pelo estado esbanjador”, então sabemos que por
meio desse discurso nos é apresentado um mundo visto pelo prisma neoliberal.
Uma das categorias de maior
sucesso, na raiz da luta entre o nacional-nativismo e o neoliberalismo, é a dos
"homens brancos sem estudos universitários". É uma categoria que, por
exemplo, tem sido amplamente utilizada nos diferentes meios de comunicação,
liberais e de esquerda, para designar um setor da população norte-americana que
tem dado seu apoio majoritário a Donald Trump.
Na verdade, o constructo
"homens brancos sem estudos universitários" visa estigmatizar o setor
social a que se refere. "Homem" se refere a uma posição de poder
comparada a "mulher" e "branco" se refere a uma posição de
poder comparada a "negros" ou outros grupos étnicos. Portanto,
constrói-se a imagem de uma posição dominante que na cultura de esquerda se
considera ilegítima: aquela que se baseia no gênero e na raça. Mas a categoria
conclui com uma característica que remete a uma carência: “sem estudos
universitários”. As vezes se diz apenas “sem estudos”, que é mais radical. Esta
carência supõe uma falta de educação, cultura, conhecimento, etc. Assim temos a
representação de um setor social que detém um poder ilegítimo e, além disso,
esse poder é exercido de forma inculta, ignorante, com pouco ou nenhum
conhecimento do mundo atual, etc.
Vamos ver o setor social a
que se refere a categoria mencionada por outro ângulo. "Homens brancos sem
estudos universitários", quem são eles? Simplesmente uma parte muito
importante da classe trabalhadora americana e europeia. Em um país como os
Estados Unidos, onde apenas 30% da população possui estudos universitários e
onde a maioria da população ainda é branca, apelar ao homem branco sem estudos
como parte natural do sujeito antagonista da esquerda é algo realmente
irresponsável e supõe lançar para o lixo a própria ideologia de esquerda. Esse
processo já foi denunciado por Owen Jones quando aludiu à demonização da classe
trabalhadora.
O discurso liberal
categorizou um setor social com base em critérios de gênero, raça e nível de
escolaridade; o discurso de esquerda deveria fazê-lo por meio de sua posição no
sistema de produção e falaria de "uma parte da classe trabalhadora".
A esquerda assimilou as categorias do discurso neoliberal. E isso ocorre por
preguiça intelectual, por falta de discurso próprio ou porque não quer
reconhecer o fracasso que significa o fato de haver uma parte importante de um
setor social com o qual a esquerda tem o dever de se conectar, mas que tem sido
conquistado por um dos polos da extrema direita.
Para entender o absurdo que
o uso desta categoria representa para a esquerda, basta imaginar o que
implicaria, por exemplo, na Espanha, os dirigentes do Podemos declarassem que,
entre outros setores sociais, querem fazer políticas inclusivas a favor dos
"Homens brancos sem estudos" em vez de dizer que querem fazer
políticas para os diferentes setores das classes trabalhadoras. Mas, ao ritmo
que avançamos, logo virá.
O constructo “homens brancos sem educação universitária” visa estigmatizar. "Homem branco" refere-se a uma posição de poder perante outros grupos étnicos e à "mulher"
No que diz respeito ao
contexto norte-americano, existe outra categoria bastante curiosa:
"Afro-americanos". Essa é uma categoria que os próprios negros
norte-americanos acolhem positivamente, já que se refere à sua origem. Porém,
para os brancos norte-americanos, não foi gerada uma categoria como
“Euro-Americanos”. Conclui-se que os brancos americanos são simplesmente
americanos ou, de modo mais geral, americanos. E, assim, se esconde uma
história de conquista e saque de terras e riquezas e de extermínio dos povos
indígenas originários. É verdade que existem termos como ítalo-americano ou
anglo-americano, mas raramente são usados. A primeira, aliás, apenas para
histórias em que a máfia é a protagonista. Na América Latina, também existem
categorias como "Afro-colombiano", “Afro-peruano” ou
“Afro-boliviano”, mas as categorias “Euro-colombiano”, “Euro-Peruano”, etc. não
são utilizadas. Na verdade, a esquerda deveria assumir a categoria "Euro-americano".
Outra categoria que a
esquerda assumiu no discurso neoliberal refere-se à "igualdade". A
igualdade é um valor fundamental na ideologia de esquerda e refere-se à
igualdade entre os humanos, seja qual for sua atividade de trabalho, sua
nacionalidade, sua raça, seu gênero, sua religião, etc. As categorias são
flexíveis e podem ser reduzidas ou ampliadas para cobrir mais ou menos áreas. O
interesse da ideologia neoliberal é que a categoria "igualdade"
diminua ao máximo e afete o menos possível os interesses fundamentais das
elites econômicas.
Durante boa parte da
história da esquerda, desde a Revolução Francesa, o discurso da igualdade
centrou-se na igualdade entre os setores socioeconômicos e, assim se colocava
em primeiro plano a igualdade no acesso a bens e recursos pelas classes
trabalhadoras com relação a outras classes sociais, ou mesmo, na supressão de
classes sociais. Mas por muito tempo não se atendeu devidamente a igualdade
entre gêneros, entre raças, entre culturas, etc.
O discurso liberal categorizou com base em critérios de gênero, raça e nível de escolaridade; o discurso da esquerda deveria fazê-lo por meio de sua posição no sistema de produção
Hoje a situação se inverteu e há um uso majoritário crescente da categoria “igualdade” que faz com que o espaço dessa categoria seja ainda mais restrito. Cada vez mais o termo “igualdade” é usado para se referir apenas à igualdade de gênero. Só para dar um exemplo, muito sintomático, no atual governo da Espanha existe um chamado "Ministério da Igualdade" e este ministério se dedica apenas a questões relacionadas com a igualdade de gênero. Esta é uma prática corrente. Em nossas universidades, por exemplo, quando há um cargo ou um plano dedicado à “igualdade”, geralmente também se refere apenas à igualdade de gênero. O caso do “Ministério da Igualdade” é especialmente problemático porque, em primeiro lugar, para um governo de esquerda, igualdade, incluindo igualdade de gênero, deve ser objetivo de todos os ministérios, não de um específico e, em segundo lugar, a igualdade deve ser entendida como igualdade entre os gêneros, mas também entre classes sociais, raças, línguas, culturas ou nacionalidades. Um termo como "Ministério da Igualdade" é em si um discurso ideológico e é um discurso que, quer aqueles que o promovem queiram ou não, também joga no lixo boa parte da tradição ideológica da esquerda. Por outro lado, é um discurso que reduz a demanda por igualdade a áreas que não incomodam muito as elites socioeconômicas por não atingir aos seus interesses mais importantes. Na verdade, o neoliberalismo se apresenta hoje acompanhado de um feminismo que, embora seja um feminismo liberal, é um feminismo que defende o acesso das mulheres, sempre burguesas ou pertencentes as elites sociais e culturais a cargos empresariais e políticos de responsabilidade.
Diante do “homem branco sem estudos universitários”, a construção da categoria oposta resultaria em: “mulher negra com estudos universitários”. E aí temos Kamala Harris como vice-presidente. Um profissional culto e neoliberal como Biden. O discurso neoliberal se veste de progressista e isso por meio de operações discursivas realmente sofisticadas e eficazes, tanto que a esquerda fica deslumbrada e, sem um discurso tão sofisticado e eficaz como esse, vai percorrendo o caminho que o neoliberalismo lhe indica até chegar a sua mimetização e a sua definitiva anulação.
* Francesc Xavier Ruiz Collantes, professor do Departamento de Comunicacão da Universitat Pompeu Fabra. Seu último livro é "La Construcción del Relato Político"(Aldea Global).
Edição e tradução: Página 1917.
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