A questão do público relaciona-se diretamente às definições de Estado com as quais estaremos trabalhando. Se o Estado não se resume a um aparato técnico e neutro - como gostariam de nos fazer crer certos tecnocratas - nem ao "monopólio da violência legítima" como sugeriu Weber (concepção que segue o caminho clássico do pensamento liberal), é preciso, portanto, sair da dicotomização que ambas as concepções implicam, como se o Estado fosse uma entidade separada da sociedade, onde cada qual - Estado e sociedade - teria qualidades específicas e próprias.
O Estado é, como o mostrou Marx(1), a forma pela qual se organiza a dominação social, dominação que encontra sua base na existência de classes sociais e que não existe historicamente a não ser de forma conflitiva e contraditória. Assim, analisar o Estado exige investigar as condições históricas da sua existência social, não podendo ele ser considerado como algo que encontrasse sua razão de ser em si próprio, numa racionalidade abstrata ou apenas na legitimação do uso da violência.
Virgínia Fontes |
Antonio Gramsci(2) aprofunda a análise, permitindo pensar as formas pelas quais ocorre uma ampliação do Estado à medida que o capitalismo se expande, devendo agora defrontar-se não apenas com os conflitos internos às frações das classes dominantes, mas também com as reivindicações e pressões dos grupos subalternos. Estado ampliado não significa, entretanto, alguma suposição de que este deixaria de ser de classes, como bem demonstrou N. Poulantzas(3). Estado ampliado supõe, em primeiro lugar, uma acomodação complexa dos interesses das diferentes frações das classes dominantes, o que se realiza espraiando-se numa crescente articulação entre o Estado e as formas associativas que os próprios grupos dominantes empreendem ("aparelhos privados de hegemonia"). Essa "ampliação" implica a produção de uma autonomia peculiar do Estado diante de cada uma dessas frações, sem a perda, entretanto, de seu caráter de classe; ao contrário, fortalece o caráter de classe do Estado, ao permitir que as medidas por ele encaminhadas revistam-se de uma caracterização como "interesse geral" ou "nacional". Essa ampliação atinge também os grupos subalternos, na medida em que o Estado passa a conter em seu seio demandas provenientes dos grupos sociais dominados, em estreita relação com sua capacidade de organização e de solidez de suas associações. Esse processo traduz-se na introdução de elementos de democratização - esparsos e tendencialmente subalternizados - e, por que não, de alguma dimensão pública, no âmbito do Estado.
Trocando em miúdos, o Estado procura se apresentar como "técnico, neutro e acima dos interesses de cada grupo específico" em função de duas razões principais. A primeira, porque comporta um volume crescente de demandas contraditórias provenientes das próprias classes dominantes. Para assegurar o conjunto da dominação, para impedir que as lutas internas entre tais frações coloquem sob risco a própria dominação, o Estado permeia-se desses conflitos, incorporando-os como legítimos e necessários(4). A segunda, mais complexa, passa pela articulação entre essas disputas e as demais formas de organização social, seja porque frações das classes dominantes precisam convencer parcelas expressivas da população e apresentam-se como encarnações do verdadeiro "interesse nacional", seja porque as revoltas sociais tornam-se mais prementes e, portanto, impõem uma efetiva ampliação - publicização - desse Estado.
* Trecho de palestra proferida no NPC (Núcleo Piratininga de Comunicação) em 2002.
Reflexões Im-pertinentes; Virgínia Fontes; p.181-183; Bom Texto Editora; 2005.
** Historiadora, doutora em Filosofia Política, professsora da UFF.
1 - Karl Marx e F. Engels, A Ideologia Alemã.
2 - A. Gramsci, Maquiavel a Política e o Estado Moderno.
3 - N. Poulantzas, O Estado, o Poder e o Socialismo.
4 - A instauração do chamado Estado liberal, com a implantação de formas representativas ao longo dos séculos XVIII e XIX, demonstra como é possível o estabelecimento de uma "democracia" de proprietários, contando com um efetivo espaço de disputa e de debate, ao lado do alijamento político da maioria da população. Ver, por exemplo, C.B. Macpherson, A democracia liberal: origens e evolução.
* Trecho de palestra proferida no NPC (Núcleo Piratininga de Comunicação) em 2002.
Reflexões Im-pertinentes; Virgínia Fontes; p.181-183; Bom Texto Editora; 2005.
** Historiadora, doutora em Filosofia Política, professsora da UFF.
1 - Karl Marx e F. Engels, A Ideologia Alemã.
2 - A. Gramsci, Maquiavel a Política e o Estado Moderno.
3 - N. Poulantzas, O Estado, o Poder e o Socialismo.
4 - A instauração do chamado Estado liberal, com a implantação de formas representativas ao longo dos séculos XVIII e XIX, demonstra como é possível o estabelecimento de uma "democracia" de proprietários, contando com um efetivo espaço de disputa e de debate, ao lado do alijamento político da maioria da população. Ver, por exemplo, C.B. Macpherson, A democracia liberal: origens e evolução.
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