Segundo definição médica, amnésia seletiva é a incapacidade de lembrar
certos fatos que aconteceram num determinado período de tempo, podendo estar
relacionada ao estresse prolongado ou ser consequência de um evento
traumático. Na política isso se chama
oportunismo. É justamente com essa “incapacidade de lembrar” que nos deparamos
em alguns artigos e pronunciamentos recentes sobre os governos Lula e Dilma. Os
autores, com seus esquecimentos seletivos, dão a entender que nesse período
estávamos vivendo num quase paraíso, onde liberdade, justiça social e
prosperidade imperavam.
Repressão contra a greve dos profissionais do ensino, setembro 2013, RJ. |
Não
temos a pretensão, nestas poucas linhas, de trazer à luz tudo o que essa
amnésia seletiva insiste em ocultar, mas podemos destacar alguns pontos. O
primeiro está relacionado às expectativas criadas após vitória do Lula em 2002,
derivadas da origem classista do PT e do discurso desse partido quando fazia
oposição, todo ele centrado na crítica ao neoliberalismo e à corrupção. Mas
antes mesmo de assumir, Lula divulgou sua famosa “carta aos brasileiros”, que
pelo teor deveria ser denominada “carta aos banqueiros”. Ali foi delineado o que
estaria por vir em termos de política econômica, ou seja, nos seus pontos
essenciais nada seria mudado. A indicação do ex-presidente do BankBoston,
Henrique Meirelles, com carta branca para dirigir o Banco Central, onde
permaneceria durante os dois mandatos de Lula, atendeu plenamente aos
interesses do setor financeiro e do imperialismo. As privatizações realizadas
por Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, antes criticadas, foram
todas elas mantidas. A escandalosa entrega dos nossos recursos seguiu em frente
através dos leilões dos campos de petróleo. O mesmo se deu com o mecanismo
extorsivo da dívida interna, consumindo algo em torno de 40% do orçamento
federal para alegria dos banqueiros e grandes investidores. Não por acaso,
"como nunca antes na história desse país", o lucro do oligopólio
bancário disparou nos 13 anos em que o PT esteve à frente do governo.
Outra lembrança que não deveria ser apagada refere-se à política
agrária. Nos tempos em que estava na oposição, o PT fazia a defesa da Reforma
Agrária, dos trabalhadores sem-terra, dos pequenos produtores rurais e de uma
agricultura sustentável, voltada principalmente para garantir o consumo
interno. Depois que assumiu o governo a coisa mudou. Lula e Dilma se
notabilizaram por uma aliança explícita com o agronegócio, que foi coroada pela
entrega do ministério da agricultura para ex-presidente da Confederação
Nacional da Agricultura (CNA), a pecuarista e senadora Kátia Abreu, desde
sempre uma ferrenha inimiga do MST. O setor continuou a ser abastecido por
crédito farto e subsidiado, além de favorecido por medidas provisórias (422 e
458), que ficaram conhecidas como as “MPs da grilagem”, deixando mais de
sessenta milhões de hectares de terras públicas na Amazônia a disposição dos
grileiros. Enquanto os grandes proprietários de terra eram agraciados com essas
medidas, os assentamentos de famílias de trabalhadores sem-terra não tiveram
avanço significativo, diminuindo sensivelmente durante o governo Dilma, até
mesmo quando comparados com o período de FHC.
Manifestantes cercados em Belo Horizonte, Copa do Mundo 2014. |
Existem lacunas na memória dos acometidos por
essa amnésia que estão relacionadas aos ataques às liberdades democráticas. Não falam, por exemplo, da repressão aos movimentos
grevistas, dos assassinatos de lideranças rurais e da violência das operações
policiais nas áreas mais pobres das grandes cidades. Silenciam sobre a Lei
Antiterrorismo, a aplicação do decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e o
gigantesco aparato repressivo usado contra as manifestações populares na Copa
do Mundo 2014 e no Jogos Olímpicos 2016. Mesmo fatos mais recentes, ocorridos
após o golpe parlamentar que afastou Dilma, não são lembrados, como o voto
favorável do PT e dos seus aliados à cláusula de barreira e à proibição das
coligações proporcionais, essa última aprovada também pelo PSOL.
O reformismo senil esperou, provavelmente
sentado, por uma “autocrítica” do PT, como ela não veio e novas eleições se
aproximam, essa amnésia seletiva parece bastante oportuna.
Caro leitor, ajude a divulgar o Página 1917, compartilhe nossas publicações nas suas redes sociais.
Importantes reflexões.
ResponderExcluir