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quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Amnésia Seletiva

A Doença Senil do Reformismo

Ney Nunes

     Nos últimos meses observamos um fenômeno inusitado, trata-se de uma amnésia seletiva que vem contaminando setores da chamada “esquerda”. Diferentemente da “justiça seletiva”, que é uma prática da institucionalidade burguesa para alijar adversários políticos e jogá-los na cadeia sem culpa formada, conforme sucedido com o ex-presidente Lula, essa amnésia seletiva constitui-se numa operação de propaganda, visando encobrir na história recente, tudo aquilo que exponha contradições de determinada vertente político-ideológica.

    Segundo definição médica, amnésia seletiva é a incapacidade de lembrar certos fatos que aconteceram num determinado período de tempo, podendo estar relacionada ao estresse prolongado ou ser consequência de um evento traumático.  Na política isso se chama oportunismo. É justamente com essa “incapacidade de lembrar” que nos deparamos em alguns artigos e pronunciamentos recentes sobre os governos Lula e Dilma. Os autores, com seus esquecimentos seletivos, dão a entender que nesse período estávamos vivendo num quase paraíso, onde liberdade, justiça social e prosperidade imperavam.


Repressão contra a greve dos profissionais do ensino, setembro 2013, RJ.
   

     Não temos a pretensão, nestas poucas linhas, de trazer à luz tudo o que essa amnésia seletiva insiste em ocultar, mas podemos destacar alguns pontos. O primeiro está relacionado às expectativas criadas após vitória do Lula em 2002, derivadas da origem classista do PT e do discurso desse partido quando fazia oposição, todo ele centrado na crítica ao neoliberalismo e à corrupção. Mas antes mesmo de assumir, Lula divulgou sua famosa “carta aos brasileiros”, que pelo teor deveria ser denominada “carta aos banqueiros”. Ali foi delineado o que estaria por vir em termos de política econômica, ou seja, nos seus pontos essenciais nada seria mudado. A indicação do ex-presidente do BankBoston, Henrique Meirelles, com carta branca para dirigir o Banco Central, onde permaneceria durante os dois mandatos de Lula, atendeu plenamente aos interesses do setor financeiro e do imperialismo. As privatizações realizadas por Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, antes criticadas, foram todas elas mantidas. A escandalosa entrega dos nossos recursos seguiu em frente através dos leilões dos campos de petróleo. O mesmo se deu com o mecanismo extorsivo da dívida interna, consumindo algo em torno de 40% do orçamento federal para alegria dos banqueiros e grandes investidores. Não por acaso, "como nunca antes na história desse país", o lucro do oligopólio bancário disparou nos 13 anos em que o PT esteve à frente do governo.


     

     Outra lembrança que não deveria ser apagada refere-se à política agrária. Nos tempos em que estava na oposição, o PT fazia a defesa da Reforma Agrária, dos trabalhadores sem-terra, dos pequenos produtores rurais e de uma agricultura sustentável, voltada principalmente para garantir o consumo interno. Depois que assumiu o governo a coisa mudou. Lula e Dilma se notabilizaram por uma aliança explícita com o agronegócio, que foi coroada pela entrega do ministério da agricultura para ex-presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), a pecuarista e senadora Kátia Abreu, desde sempre uma ferrenha inimiga do MST. O setor continuou a ser abastecido por crédito farto e subsidiado, além de favorecido por medidas provisórias (422 e 458), que ficaram conhecidas como as “MPs da grilagem”, deixando mais de sessenta milhões de hectares de terras públicas na Amazônia a disposição dos grileiros. Enquanto os grandes proprietários de terra eram agraciados com essas medidas, os assentamentos de famílias de trabalhadores sem-terra não tiveram avanço significativo, diminuindo sensivelmente durante o governo Dilma, até mesmo quando comparados com o período de FHC.

Manifestantes cercados em Belo Horizonte, Copa do Mundo 2014.
      

     Existem lacunas na memória dos acometidos por essa amnésia que estão relacionadas aos ataques às liberdades democráticas.  Não falam, por exemplo, da repressão aos movimentos grevistas, dos assassinatos de lideranças rurais e da violência das operações policiais nas áreas mais pobres das grandes cidades. Silenciam sobre a Lei Antiterrorismo, a aplicação do decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e o gigantesco aparato repressivo usado contra as manifestações populares na Copa do Mundo 2014 e no Jogos Olímpicos 2016. Mesmo fatos mais recentes, ocorridos após o golpe parlamentar que afastou Dilma, não são lembrados, como o voto favorável do PT e dos seus aliados à cláusula de barreira e à proibição das coligações proporcionais, essa última aprovada também pelo PSOL.

    O reformismo senil esperou, provavelmente sentado, por uma “autocrítica” do PT, como ela não veio e novas eleições se aproximam, essa amnésia seletiva parece bastante oportuna.


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