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terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Apontamentos sobre Trotsky — O mito e a realidade

Miguel Urbano Rodrigues*



Transcorridas quase duas décadas sobre a desagregação da União Soviética, pouco se escreve e fala sobre Gorbatchov. A grande mídia internacional quase esqueceu o político e o homem que guindaram a herói da humanidade quando contribuía decisivamente, através da perestroika, para a reimplantação do capitalismo na Rússia.

Paradoxalmente, Trotsky continua a ser um tema que fascina muitos intelectuais da burguesia, alguns progressistas, e dezenas de organizações trotskistas na Europa e sobretudo na América Latina.

Sobre o homem e a obra não foram nas últimas décadas publicados livros importantes que acrescentem algo de significante aos produzidos pelos seus biógrafos, nomeadamente a trilogia do Historiador polaco Isaac Deutscher.

Nem um só dos partidos e movimentos trotskistas conseguiu afirmar-se como força política com influência real no rumo de qualquer país.

Porque então a tenaz sobrevivência, não direi do trotskismo, mas do nome e de algumas teses do seu criador no debate de ideias contemporâneo? Isso não obstante ser hoje pouco frequente a reedição dos seus livros.

A contradição encaminha para uma conclusão: uma percentagem ponderável dos modernos trotskistas desconhece a obra teórica e a trajetória política de Trotsky.

Cabe chamar a atenção para o fato de a maioria dos intelectuais burgueses das grandes universidades do Ocidente que assumem a defesa e a apologia da intervenção de Trotsky na História serem anticomunistas. O seu objetivo precípuo é combater a URSS e o que a herança da Revolução de Outubro significa para a humanidade. Trotsky e Stalin são utilizados por esse tipo de "sovietólogos" como instrumentos na tarefa de combater e desacreditar o comunismo.

Nos movimentos trotskistas confluem jovens com motivações e comportamentos sociais muito diferentes. À maioria ajusta-se a definição que Lenin deu a certos esquerdistas: "pequeno burgueses enraivecidos". Frustrados, expressam a sua recusa do capitalismo na adesão a projetos radicais de transformação rápida da história.

Quase todos, – como aconteceu aos líderes do Maio de 68 parisiense – voltam a integrar-se no sistema após uma breve militância pseudo-revolucionária.

A mitificação de Trotsky

As campanhas anti-Trotsky promovidas pelos partidos comunistas na época de Stalin produziram globalmente um efeito contrário ao visado. Facilitaram o aparecimento em muitos países de organizações trotskistas e criaram condições favoráveis à mitificação de Trotsky.

Intelectuais burgueses e exilados russos, muitos deles ex-comunistas, deram uma importante contribuição para criar e difundir a imagem de um Trotsky imaginário. Os grandes diários do Ocidente, do The New York Times ao Guardian, abriram as suas colunas a essas iniciativas. Compreenderam que a transformação de Trotsky no herói revolucionário puro, vítima da engrenagem trituradora de um sistema monstruoso, daria maior credibilidade às campanhas contra a União Soviética.

A glorificação de Trotsky é um fenômeno tão lamentável, por falsificar a História, como a diabolização da União Soviética, inseparável da visão da época de Stalin como um tempo de horrores.

Cabe aos epígonos de Stalin – repito – uma grande responsabilidade pelo êxito no Ocidente da tentativa de utilizar a vitimização de Trotsky como arma do anticomunismo.

A historiografia soviética não se limitou a negar a Trotsky um papel minimamente importante na preparação da Revolução de Outubro e na sua defesa. Nos Processos de Moscou, Trotsky é acusado em alguns depoimentos de agente de Hitler que teria levado a sua traição ao ponto de preparar com o III Reich nazi o desmembramento da jovem república soviética.

Esse tipo de calúnias é tão absurdo, como expressão de um ódio irracional, como o esforço realizado por escritores anticomunistas e alguns governos para criminalizarem o comunismo como sistema comparável ao fascismo. A falsificação das estatísticas foi levada tão longe que alguns autores acusam Stalin de ter exterminado ou enviado para campos siberianos mais de cem milhões de pessoas [1] . A atribuição do Nobel de Literatura a um escritor reacionário tresloucado como Solzenitzyn (que se orgulhava de odiar a Revolução Francesa) traduziu bem a necessidade que a burguesia sentia no Ocidente de satanizar a União Soviética, negando a herança progressista e humanista da Revolução de Outubro.

É nesse contexto que se insere o reverso da medalha, isto é a reinvenção de Trotsky.

Duas obras do próprio Trotsky e a trilogia de Deutscher – o Profeta Armado, o Profeta Desarmado e o Profeta Banido – funcionaram também como estímulos na fabricação do mito [2] .

Trotsky, em "A Minha Vida" [3] , a sua autobiografia, não atribui grande significado às divergências entre ele e Lenin durante os anos que precederam a Revolução de Fevereiro de 17. E na sua "História da Revolução Russa" [4] valoriza muito as convergências desde o início da Revolução de Outubro e são escassas as referencias a questões fundamentais em que assumiram posições diferentes, por vezes antagônicas. Somente nos ensaios editados sob o título de "A Revolução Permanente" [5] , ao responder a criticas de Karl Radek e Stalin, reconhece que Lenin o criticou por divergirem no tocante ao papel dos sindicatos e ao Gosplan, mas subestima a importância dessas discordâncias. Simultaneamente, ao identificar em Lenin o grande líder da Revolução e expressar profunda admiração pelo ideólogo, o estrategista e o estadista, encaminha, com habilidade, o leitor para a conclusão de que, no tocante aos problemas fundamentais da construção de uma sociedade socialista na Rússia revolucionária, existiu entre ambos nos últimos anos da vida de Lenin uma confiança mútua e uma grande harmonia no trabalho.

Tal conclusão deforma a História.

Deutscher, que se assume como um admirador entusiástico de Trotsky e confessa odiar Stalin, projeta uma imagem distorcida do biografado. Não esconde as divergências dele com Lenin, mas, procurando ser objetivo no relato dos fatos, esforça-se por persuadir os leitores de que, nos últimos meses da sua vida, pressentindo a proximidade da morte, Lenin via em Trotsky o membro do Politburo mais indicado para lhe suceder na chefia do Estado Soviético.

A conclusão carece de fundamento, é puramente subjetiva.

O próprio Deutscher sublinha que a velha guarda bolchevique, embora reconhecendo o talento de Trotsky como estadista, nunca viu nele um homem do Partido. O seu passado, como menchevique, não fora esquecido. O caráter de Trotsky, a sua vaidade, o estilo autoritário, a sua tendência para a crítica demolidora quando discordava de companheiros de luta inspiravam desconfiança e até rancor.

É significativo que logo após a morte de Lenin, Olminski, muito ligado a Stalin, tenha proposto a publicação de uma carta datada de 1912, encontrada nos arquivos da Policia Czarista, na qual Trotsky, dirigindo-se a Tchkeidzé, um destacado contra-revolucionário, descrevia Lenin como "um intrigante" um "desorganizador" e um "explorador do atraso russo". [6]

A sugestão não foi então atendida, mas na campanha contra Trotsky a recordação do seu passado anti-bolchevique tornou-se permanente e desempenhou um papel importante.

A carta de Lenin ao Congresso

Na fase final da sua doença, Lenin aproximou-se de Trotsky, mas não por ter reformulado a opinião que formara sobre ele. Quando Stalin na primavera de 1922 foi eleito secretário-geral do jovem Partido Comunista da União Soviética, Lenin, para lhe contrabalançar a influência, propôs a nomeação de quatro vice-presidentes para o Conselho dos Comissários do Povo, ou seja o governo. Trotsky foi um deles, Rikov, Tsurupa e Kamenev os outros.

Trotsky recusou. A simples ideia de partilhar o cargo de vice de Lenin com três camaradas – dois dos quais já o exerciam – feriu o seu desmesurado orgulho. Lenin sentiu decepção, mas por duas vezes insistiu sem êxito. Quando ele recusou novamente, Stalin levou o Politburo a aprovar, em Setembro de 22, uma resolução censurando Trotsky por indiferença perante o cumprimento do dever.

Lenin, defensor tenaz do papel dirigente do PCUS, era partidário de uma separação de tarefas entre o Partido e o Estado para evitar problemas graves que principiavam a esboçar-se.

Inválido, sentindo a proximidade da morte, ditou entre 23 e 31 de Dezembro de 1922 uma Carta ao XIII Congresso do Partido Comunista. Nessa importante mensagem transmitiu opiniões que iriam suscitar muita polêmica, ao esboçar o perfil dos cinco camaradas que, com ele integravam o Politburo: Zinoviev, Kamenev, Stáline, Bukharine e Tomski (Kalinine e Piatakov eram suplentes e Molotov assessor). [Em 1922 Trotsky era membro desse Politburo (nota do Página 1917)]

Esse explosivo documento foi lido aos delegados ao Congresso, realizado em Maio de 1924, pela companheira de Lenin, Krupskaya, quatro meses após a sua morte.

Mas, por iniciativa de Stalin aprovada pelo Politburo, a Carta não foi publicada. O povo soviético somente tomou conhecimento do seu conteúdo após o XX Congresso.

Lenin expressava muita preocupação pelo tenso relacionamento entre Stalin e Trotsky por identificar nele um perigo para a estabilidade do partido.

"O camarada Stalin – afirmava – tendo-se tornado secretário-geral, concentrou nas suas mãos um poder imenso, e não estou certo de que saiba sempre utilizar este poder com suficiente prudência. Por outro lado, o camarada Trotsky, como o demonstrou já a sua luta contra o CC a propósito da questão do Comissariado do Povo das Vias de Comunicação, não se distingue apenas pela sua destacada capacidade. Pessoalmente é talvez o homem mais capaz do atual CC, mas peca por excessiva confiança em si próprio e deixa-se arrastar excessivamente pelo aspecto puramente administrativo das coisas". [7]

Num adendo à carta de 24 de Dezembro, datada de 4 de Janeiro de 1923, Lenin lamenta que Stalin seja demasiado rude e acrescenta: "este defeito, plenamente tolerável no nosso meio e nas relações entre nós, comunistas, torna-se intolerável no cargo de secretário-geral. Por isso proponho aos camaradas que pensem na forma de transferir deste lugar e de nomear para este lugar outro homem que em todos os outros aspectos se diferencie do camarada Stalin apenas por uma vantagem, a saber: que seja mais tolerante, mais leal, mais cortês e mais atento para com os camaradas, menos caprichoso, etc."

Mas não sugeriu qualquer nome para a substituição de Stalin.

Quando Trotsky conversou com ele pela última vez, Lenin, cuja doença evoluiu rapidamente para o desfecho que todos temiam, pediu-lhe que colaborasse numa ação conjunta contra a burocratização do Partido e do Estado e de condenação da política repressiva que Stalin e Ordjonikidze tinham executado na Geórgia.

Mas são do domínio da fantasia as afirmações que atribuem a Lenin o desejo de ver Trotsky à frente do Partido ou do Estado.

Tal ideia – contra o que sugere Deutscher – nunca lhe terá aflorado o pensamento.

Via nele o mais dotado intelectualmente dos líderes do Partido, mas incapaz de controlar "uma autoconfiança excessiva".

O Choque humano e ideológico

Durante muitos anos, desde o início do século até à Revolução de Fevereiro, Lenin criticou Trotsky com dureza e este retribuiu sempre.

Lenin, admirando o seu talento, identificava nele um oportunista e um conciliador. A sua relação com os mencheviques, partido a que pertenceu, inspirava-lhe profunda desconfiança. Não lhe apreciava o caráter, marcado por uma impulsividade e uma arrogância que o levavam a assumir posições imprevisíveis e com frequência contraditórias em bruscas reviravoltas.

A troca de acusações exprimiu-se em determinados períodos por uma veemência verbal pouco comum.

Após a expulsão de Trotsky do Partido, essas opiniões de Lenin, emitidas em reuniões do Partido Bolchevique, em documentos, e cartas pessoais, foram tornadas publicas na URSS e amplamente divulgadas em países estrangeiros.

Trotsky, como já recordei, tenta nos livros publicados no exílio ocultar ou desvalorizar o significado das suas divergências com Lenin, pondo toda a ênfase na colaboração entre ambos a partir da Revolução de Fevereiro de 1917.

Os seus biógrafos afirmam que após a Conferência de Zimmerwald, que condenou a guerra imperialista, as suas posições quase coincidiram com as assumidas pela fracção bolchevique do Partido Operário Social-Democrata da Rússia-POSDR. Não é essa a opinião de Lenin. Numa carta a Boris Souvarine, datada de Dezembro de 1916, Lenine lembra que Trotsky acusara os bolcheviques de "divisionistas". "Em Zimmerwald – sublinha – recusou incorporar-se na esquerda local e juntamente com a camarada Roland Horst (uma holandesa) representou o "centro" [8]

Trotsky, vindo do Canadá, regressou à Rússia antes de Lenin. Numa carta à sua intima amiga Ines Armand, datada de 19 de Fevereiro de 1917, Vladimir Ilitch incluiu o seguinte desabafo: "Chegou Trotsky e este canalha entendeu-se imediatamente com a ala direita do “Novi Mir” contra os zimmerwaldistas de esquerda. Tal como lhe digo! Assim é Trotsky! Sempre fiel a si mesmo, revolve-se, trafulha, finge de esquerdista e ajuda a direita quando pode." [9]

Escritores trotskistas como Alfred Rosmer e Rosenthal omitem que meses depois da sua adesão ao Partido Bolchevique, quando já exercia funções de grande responsabilidade, como dirigente, Trotsky divergiu de Lenin em questões de grande importância em momentos cruciais.

A participação de Trotsky em Brest Litowski continua a ser tema polêmico. Então Comissário do Povo para as Relações Exteriores, chefiou a delegação russa nas negociações de paz com os alemães.

Sobre o tema, dirigindo-se ao VII Congresso Extraordinário do Partido Bolchevique da Rússia, Lenin declarou:

"Devo referir-me agora à posição do camarada Trotsky. Na sua atuação devemos distinguir duas fases: quando iniciou as negociações de Brest, utilizando-as excelentemente para a agitação, todos estivemos de acordo com ele. Trotsky citou parte de uma conversa comigo, mas devo acrescentar que concordamos manter-nos firmes até ao ultimato dos alemães, mas cederíamos após ele. Os alemães nos enganaram, porque de sete dias nos roubaram cinco. A tática de Trotsky foi correta enquanto se destinou a ganhar tempo; tornou-se equivocada quando se declarou o fim do estado de guerra, mas não se assinou a paz. Eu tinha proposto com toda a clareza que se assinasse a paz de Brest". [10]

A transcrição (parte de uma intervenção extensa) é esclarecedora porque a posição assumida por Trotsky ("nem paz nem guerra"), ignorando as instruções de Lenin, levou os alemães a romper a trégua e desencadear uma ofensiva de consequências desastrosas, ocupando enormes extensões do país. Quando o Tratado de Paz foi finalmente assinado, as condições impostas foram muito mais severas do que as inicialmente apresentadas pelo Império Alemão.

Lenin criticou então duramente Trotsky. Mas não era rancoroso.

Transferiu-o do Comissariado das Relações Exteriores para o das Questões Militares. Conhecia as qualidades de organizador de Trotsky e este na sua nova tarefa teve um papel fundamental na organização do Exército Vermelho, na condução vitoriosa da Guerra Civil e na derrota da intervenção militar das potências da Entente.

Mas logo em 1920, Trotsky e Lenin divergiram profundamente durante o debate sobre os Sindicatos e a sua função na Rússia soviética, e no tocante ao monopólio do Comércio.

Trotsky publicara um folheto intitulado "O papel e as tarefas dos sindicatos". Lenin submeteu as teses por ele defendidas e a posição que sobre o assunto assumira no Comitê Central a uma crítica duríssima [9] . Manifestou espanto perante "quantidade de erros teóricos e de evidentes inexactidões", estranhando que no âmbito de uma discussão tão importante no partido Trotsky tivesse produzido "algo tão lamentável em vez de uma exposição cuidadosamente meditada". Nessa critica alertou para divergências de fundo de ambos quanto aos "métodos de abordar as massas, de ganhar as massas, de nos vincularmos às massas".

Concluindo, Lenin, que criticou simultaneamente, com idêntica veemência as posições assumidas por Bukharin, afirmou: "As teses do camarada Trotsky são politicamente prejudiciais. A base da sua politica é a pressão burocrática sobre os sindicatos. Estou certo de que o Congresso do nosso Partido a condenará e repudiará" [11] .

Assim aconteceu.

Julgo útil chamar a atenção para o fato de que Lenin manteve a sua confiança em Trotsky como principal responsável pelas operações em que o Exército Vermelho estava então envolvido em múltiplas frentes.

A contradição aparente facilita a compreensão do caráter profundamente democrático da ditadura do proletariado na Rússia soviética nos anos posteriores à Revolução de Outubro.

As Revoluções Russas, a partir de 1905, forjaram gerações de revolucionários profissionais com um talento, uma criatividade, uma coragem e uma tenacidade que assombraram os Historiadores. Dificilmente se encontra um precedente para essas gerações que, aliás, tiveram continuidade na que se bateu contra o Reich nazi e o destruiu, salvando a humanidade de uma tragédia.

O estabelecimento de consensos na época revolucionária foi sempre difícil. Sem o imenso prestigio e o gênio de Lenin – é a palavra adequada para o definir – eles não teriam sido possíveis, como ficou transparente nas jornadas de Brest Litowski.

Deutscher, um trotskista assumido, recorda que a estabilidade no Politburo e no CC nascia da "autoridade incontestável de Lenin e da sua capacidade de persuasão e habilidade táctica que, em geral, lhe permitiam conseguir a maioria de votos para as propostas que apresentava à medida que surgiam os problemas". [12]

Tinha o dom raríssimo, quando transmitia um projeto polêmico a camaradas, de os levar a admitir que haviam sido eles e não ele, Lenin, que o haviam concebido.

Nos cinco anos gloriosos posteriores à vitória da Revolução, Lenin foi colocado algumas vezes em minoria, perdendo na discussão de questões importantes. Submeteu-se nessas ocasiões à maioria. Assim funcionava então o centralismo democrático. Mas quase sempre os seus camaradas acabavam por reconhecer que ele estava certo.

Chamo a atenção para a importância da excepcionalidade de Lenin porque ela lhe permitiu uma colaboração harmoniosa com um feixe de revolucionários tão heterogéneo como o da sua época. Ele conseguiu que formassem uma equipe – não os poupando a severas criticas quando necessário – dirigentes como Stalin, Trotsky, Bukharine, Kamenev, Zinoviev, Preobrazhensky, Alexandra Kolontai, Dzerzhinski, Rikov, Piatakov, Tomski, Sverdlov, Lunacharski, Molotov, Kalinine, Vorochilov, Budiony, Kirov, Rakovski, Rabkrin, etc.

Essa unidade na ação e no pensamento, mesmo entre os membros da velha guarda bolchevique, desapareceu quando Lenin morreu. Sem ele, era impossível.

Não se pode escrever algo sobre Trotsky sem citar Stalin. Incluo-me entre os comunistas, poucos, que recusam simultaneamente a glorificação ou a satanizarão de ambos.

A burguesia persiste em projetar de Stalin somente a imagem negativa, porque ao apresentá-lo como um ditador satânico facilita a criminalização da União Soviética e do comunismo como ideologia monstruosa.

Terei sido dos primeiros comunistas portugueses a criticar o dogmatismo subjetivista de Stalin num livro apreendido pela ditadura brasileira em 1968 [13] . Mas a minha discordância da sua postura perante o marxismo e a condenação dos seus métodos e crimes não me impedem de reconhecer que Stalin foi um revolucionário cuja contribuição para a transição do capitalismo para o socialismo na União Soviética foi decisiva. Sem a sua ação à frente do Partido e do Estado, a URSS não teria sobrevivido à agressão bárbara do Reich nazi, sem ela a pátria de Lenin não se teria transformado em poucas décadas na segunda potencia mundial, impulsionando um internacionalismo que apressou a descolonização, incentivou e defendeu revoluções no Terceiro Mundo e estimulou poderosamente a luta dos trabalhadores nos países desenvolvidos do Ocidente.

No lado oposto do quadrante, recuso também a mitificação de Trotsky.

A sua transformação em herói revolucionário, tal como a sua satanizarão como contra-revolucionário, deformam a História.

São caluniosas as acusações (nomeadamente nos Processos de Moscou) que o apresentam como cúmplice dos projetos de Hitler para destruição da URSS.

Dotado de um talento incomum, brilhante escritor e polemista, distinguiu-se desde a juventude por uma oratória que empolgava as massas e o levou aos 25 anos à presidência do Soviete de Petrogrado durante a Revolução de 1905.

A sua adesão ao Partido Bolchevique, pouco antes da Revolução de Outubro, assinalou o início de uma viragem na sua trajetória política e humana. Foi com o pleno apoio de Lenin que nas jornadas que precederam a insurreição de Outubro voltou a presidir ao Soviete de Petrogrado e posteriormente cumpriu tarefas da maior responsabilidade como Comissário para as Relações Exteriores e Comissário para as Questões Militares, missão que na prática fez dele o chefe do Exército Vermelho.

Mas a tentativa dos seus epígonos e de Historiadores burgueses de o guindar a "companheiro de Lenin", colocando-o ao nível do líder da Revolução, falseia grosseiramente a História.

Trotsky não foi nem o revolucionário puro que os trotskistas veneram como herói da humanidade, nem o traidor fabricado por Stalin.

Mas com o rodar dos anos o mito nascido da sua vitimização tomou forma, resistiu e sobrevive.

Enquanto Gorbatchov, que abriu caminho como secretário-geral do PCUS à destruição da URRS, tende – repito – a ser esquecido, o mito Trotsky permanece. Poucos lêem hoje os livros em que condensou o seu pensamento e escreve sobre a sua participação na História. Mas a atitude dos milhares de pessoas que anualmente visitam a casa de Coyoacan, na capital do México, onde viveu e foi assassinado, ilumina bem o enraizamento desse mito.

Não é fácil compreender o fenômeno, porque o trotskismo, como ideologia e instrumento de ação revolucionária, fracassou, não correspondendo minimamente às aspirações do seu criador. [14]

Admito que Trotsky não se reveria em qualquer das dezenas de partidos trotskistas que hoje em muitos países o tomam por inspirador e guia.

Serpa e Vila Nova de Gaia, Novembro de 2008

*Miguel Urbano Rodrigues: (Moura, 2 de agosto de 1925 – Vila Nova de Gaia, 27 de maio de 2017) foi um jornalista, escritor e político português. Foi redator do Diário de Notícias entre 1949 e 1956, chefe de redação do Diário Ilustrado (1956 e 1957), antes de se exilar no Brasil, onde foi editorialista principal de O Estado de S. Paulo (1957 a 1974) e editor internacional da revista brasileira Visão (1970 a 1974). Após a Revolução dos Cravos retornou a Portugal, foi chefe de redação do Avante! em 1974 e 1975 e diretor de O Diário entre 1976 e 1985. Assistente de História Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1974-75), presidente da Assembleia Municipal de Moura em 1977 e 1978, deputado pelo Partido Comunista Português entre 1990 e 1995 e deputado às Assembleias Parlamentares do Conselho da Europa e da União da Europa Ocidental, tendo sido membro da comissão política desta última.

NOTAS:

1. Jean Salem, Lenin e a Revolução, Ed. Avante, Lisboa, 2007

2. Isaac Deutscher, Trotsky, Ed. Civlizaçao Brasileira,1968, São Paulo.

3. Leon Trotsky, Histoire de la Revolution Russe, Ed Seuil, Paris, 1950.

4. Leon Trotsky, My Life, Ed. Penguin, London, 1988

5. Leon Trotsky, La Revolución Permanente, Ed Yunque, 2ª edición, Buenos Aires, 1977

6. Isaac Deutscher, O Profeta Desarmado, Obra citada, pág 44

7. Existem traduções em diferentes línguas da Carta de Lenin ao XIII Congresso do PCUS. As diferenças entre os textos que conheço são formais, mínimas. Utilizei nas citações feitas, a tradução de Edições Avante, 1979.

8. V.I.Lenin, Textos extraídos das Obras Completas de Lenine, Ed. Estampa, Lisboa 1977, pág 260

9. Obra citada, pág 269

10. Obra citada, pág 270/271

11. Obra citada, pág 300

12. Isaac Deutscher, Obra citada, pág 88

13. Miguel Urbano Rodrigues, Opções da Revolução na América Latina, Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1968

14. Ver Leon Trotsky, Revolução e Contra-revolução, Ed. Laemmert, Rio de Janeiro, 1968.

Neste livro, que enfeixa ensaios redigidos em 1930 e1931, em Prinkipo, na Turquia, onde estava exilado, Trotsky, numa atitude de esquerdismo profético, identifica na crise iniciada em 1929 o prólogo de uma era de revoluções cujo desfecho seria o socialismo.

Transcrevo dessa obra algumas passagens expressivas de uma teimosa fidelidade à sua concepção da "revolução permanente":

a) "É muito provável que o desenvolvimento progressivo da revolução espanhola dure por um período de tempo mais ou menos longo. E, por aí, o processo histórico abre, de algum modo, um novo crédito ao comunismo espanhol". (pág.20)

b) "A situação na Inglaterra pode também não, e não sem justas razões, ser considerada como pré-revolucionária, se se admitir com rigor, que entre uma situação pré-revolucionária e uma situação imediatamente revolucionária pode mediar um prazo de vários anos, período em que se produzirão fluxos e refluxos". (pág 20)

c) "É inevitável e relativamente próxima uma mudança na consciência revolucionária do proletariado americano, a qual já não será mais “um fogo de palha” que se apaga facilmente, mas o inicio de um verdadeiro e grande incêndio revolucionário. (pág 24)

d) A aventura iniciada pelo czar na Manchúria provocou a guerra russo-japonesa; a guerra provocou a Revolução de 1905. A aventura japonesa atual na Manchúria pode acarretar uma revolução no Japão. (pág 24)

A evolução da História nesses quatro países desmentiu quase imediatamente as previsões de Trotsky.

Fonte: https://resistir.info/mur/apontamentos_trotsky.html

Edição: Página 1917


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