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segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Carta das Trincheiras*

 Dionysa Brandão**


   Estrada de rodagem de Moscou , 26 de novembro de 1941. Agora estou na região de Ivanov. Nós partimos da região de Vetluga¹ às 2 horas da madrugada e, no dia seguinte, à tarde, já estávamos no local de trabalho. Quando embarcamos, avisaram-nos que íamos ficar duas semanas, mas, como vocês estão vendo, nós já estamos aqui há muito mais. Dizem-nos que vamos embora o mais tardar até 10 de dezembro.

Mulheres soviéticas cavam trincheiras, Moscou, outubro/novembro de 1941.

  Aqui, estamos cavando trincheiras contra os tanques nazistas, numa profundidade de três metros. Trabalhamos das 8 horas da manhã até as 6 da tarde. O trabalho é muito penoso. Diariamente recebemos pão, uma vez sopa e 3 vezes água quente. Duas vezes deram manteiga e açúcar, mas rapidamente acabou. Nós devemos receber produtos de Zarrarino. Estamos esperando-os com grande ansiedade. Perdoem-me pela péssima caligrafia, estou escrevendo rapidamente, à luz de vela, está próxima a acabar.

   Hoje começamos a cavar a nona e décima trincheira. Mas nem todas as trincheiras cavamos até 3 metros. Algumas, só até 1 metro, por causa da presença de água. Às vezes, era impossível cavar: a linha da trincheira passava pelo bosque. Inicialmente, então era derrubado o bosque. Precisavamos continuar o trabalho. Era impossível. Usávamos barras de ferro ("brali lomom"). As raízes das árvores penetravam alguns metros dentro da terra. Além disso, a terra, em alguns lugares, já estava congelada por camadas profundas e era "aquecida" por nós (acendiámos fogueiras). E somente depois usávamos as brali lomom.
   Depois do trabalho, chegávamos exaustos, tomávamos uma caneca de água quente, um pedaço de pão preto e logo íamos dormir.
    Viver aqui é muito difícil. Dinheiro nós não temos, e tão cedo não nos pretendem mandar. Pelo trabalho pagam; mas como no início nós não tínhamos dinheiro, recebemos adiantado vinte rublos e depois mais setenta. Este foi para pagar a sopa e o pão. Estamos todos sem dinheiro, mas de qualquer jeito, viveremos até o fim dos trabalhos. Ainda falta, no máximo meio mês.

Dionysa Brandão

   Sim, agora estou calçando "lápti". Paguei por eles dez rublos e quarenta kopeks. Mandaram-nos Onuchi/portyanki². Na falta destes, usa-se até jornal para aquecer os pés. Durante vários dias, aqui fez muito frio e eu morria de frio, meus pés "congelavam". Usava, ainda, umas botinhas de couro de Moscou, o único calçado. Os cardaços romperam e o frio passava diretamente aos pés. Agora, estou calçada com lápti, não sinto mais frio nos pés. Mas saber usá-los é uma arte. E, a cada dia, um camponês ajuda-me. Ele dorme no estrado, de madeira (nari) embaixo. Nós dormimos nas prateleiras de cima. Aqui todos dormimos em "zemlianka" [abrigo subterrâneo para proteger as populações durante os bombardeios]. À noite faz muito calor, ficamos sufocados. Nas prateleiras inferiores, é de morrer de frio. Antes, estávamos em tendas.

Até breve.
Dionysa

* Carta de Dionysa Brandão dirigida aos seus pais (Octavio e Laura), nunca chegou aos destinatários. Foi censurada e encaminhada aos Arquivos Secretos do Komintern (Internacional Comunista).

** Dionysa Brandão, nasceu no Rio de Janeiro em 10/08/1925, filha de Octavio Brandão e Laura Brandão. Foi deportada, em 1931, pelo governo de Getúlio Vargas, com seus pais e suas irmãspara a Alemanha, de onde seguiram para a União Soviética que lhes concedeu asilo. Durante a Segunda Guerra Mundial foi recrutada para trabalhar nas frentes de trabalho para abrir trincheiras nos arredores de Moscou, ameaçada pelo avanço das tropas nazistas. Permaneceu na União Soviética até 1946, quando retornou ao Brasil.

Notas:

(1) - Em fins de julho de 1941, Dionysa e sua irmã caçula são evacuadas de Moscou para os arredores da cidade de Gorki, num lugar chamado Lesnoi Kurort, à margem do rio Vetluga, onde permaneceram por dois anos aproximadamente.

(2) - Lápti: calçado típico, trançado com a casca da bétula, usado pelos camponeses no interior. O pé e a perna, para serem aquecidos, são envolvidos em alguns tecidos grossos (conhecido como portyanki) e, com tiras também da bétula, prende-se o lápti e o tecido, desde o pé até a perna.

Fonte: Raros Relâmpagos de um Meteorito; Dionysa Brandão; Edição e organização de Marisa Brandão; Rio de Janeiro, 2021.
   
   
     
    

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